Opinião

PL 10.887/18 e acordo de não persecução cível: desafios a serem superados

Autores

  • Camilo Zufelato

    é professor de graduação e de pós-graduação da FDRP-USP mestre em Master Universitario II Livello - Università degli Studi di Roma Tor Vergata e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (Faculdade de Direito do Largo de São Francisco) e coordenador do Observatório Brasileiro de IRDRs da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

  • Lucas Vieira Carvalho

15 de setembro de 2021, 17h10

Em janeiro de 2020, logo após a publicação da Lei 13.964/19, a Lei "Anticrime", comentamos a respeito das alterações legislativas propostas em relação à improbidade administrativa, especificamente na previsão autocompositiva trazida pelo diploma legal, que passou a prever o instrumento de "acordo de não persecução cível" [1].

Na ocasião da Lei 13.964/19, em razão de diversos vetos da presidência da República, a disciplina do acordo de não persecução cível gerou — e ainda gera — diversos questionamentos de sua aplicabilidade e ainda mais dúvidas, já que ausente regulamentação mínima de como o procedimento deveria se desenvolver, bem como quais os limites e condições a serem observados.

Como consequência da ausência de parâmetros legais, diversas entidades acabaram regulando internamente a disciplina dos acordos de não persecução cível, a exemplo da Advocacia-Geral da União, com sua Portaria Normativa AGU nº 18/2021 [2], e da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, por meio da Resolução PGE 20/2020 [3].

Em conclusão à opinião da época, esperávamos que, em um cenário de reforma legislativa específica a respeito da improbidade administrativa — e não acidental, como na Lei 13.964/19 —, a ausência dos contornos constantes no acordo de não persecução cível fosse suprida.

Diante desse cenário, em junho deste ano uma das propostas de alterações legislativas específicas quanto à improbidade administrativa ganhou destaque, com a aprovação, na Câmara dos Deputados, do PL 10.887/18 — atualmente em tramitação no Senado Federal como PL 2.505/21 —, visando a reformar diversas disposições da Lei 8.429/92.

Especificamente quanto ao acordo de não persecução cível, o PL 10.887/18 propõe a inclusão do artigo 17-B, em que não somente se confirma a possibilidade de solução autocompositiva, bem como se oferecem regulações mínimas de tais acordos.

Entre as — antecipe-se, parcas — regulamentações para os acordos de não persecução cível, o PL 10.887/19 propõe, na redação do novo artigo 17-B: 1) a obrigação que do acordo advenha o integral ressarcimento do dano e a reversão da vantagem obtida à pessoa jurídica lesada; 2) a necessidade de oitiva (e não necessariamente concordância) do ente federativo lesado, a aprovação do acordo pelo órgão responsável do Ministério Público e a homologação judicial; 3) a observância de aspectos como a personalidade do agente, gravidade e repercussão do ato para a celebração do acordo; 4) a possibilidade de celebração do acordo em qualquer fase investigatória ou processual, inclusive durante a execução de sentença condenatória; e 5) a impossibilidade de celebração de novo acordo por cinco anos em caso de descumprimento.

Chama bastante atenção, porém, uma das supressões do texto inicial do PL 10.887/18 para o texto aprovado e encaminhado ao Senado. Enquanto o projeto original previa que o acordo devesse resultar no integral ressarcimento do dano, na reversão da vantagem à pessoa jurídica lesada e no pagamento de multa, o texto encaminhado para a aprovação do Senado deixa de consignar o último requisito. Na prática, possibilita-se a celebração de acordos em que o agente improbo não sofreria absolutamente qualquer prejuízo financeiro.

Esse ponto do prejuízo ainda leva a uma sensível questão pela qual a disciplina do acordo de não persecução cível do PL 10.887/18 é silente: em conduta de improbidade administrativa, pode ser realizado acordo que não preveja a aplicação das penalidades constantes no artigo 37, §4º, da Constituição Federal, a exemplo da perda da função pública e da suspensão dos direitos políticos, ou a não observância desses elementos ensejaria o reconhecimento da inconstitucionalidade desses acordos?

Em nossa leitura, o problema do PL 10.887/18 repousa justamente nas ausências e nas generalidades sobre temas fulcrais. Observa-se que o texto, em verdade, não traz quaisquer parâmetros a serem observados pelo Ministério Público no momento da celebração de eventual acordo. O único elemento apresentado é a genérica necessidade de observância de personalidade do agente, circunstâncias do ato, vantagem do interesse público. Essa concessão de uma carta branca absolutamente discricionária ao Parquet nos parece medida perigosa, e que deve ser vista com maior cautela.

O texto é silente, inclusive, sobre a ausência dos benefícios que podem ser concedidos aos celebrantes, a eventual proporção dessa concessão ou mesmo um critério minimamente objetivo pelo qual se demonstre um controle do legislador a respeito da medida autocompositiva, a exemplo do que ocorre no artigo 16, §2º, da Lei 12.846/13. A adoção de filtros e parâmetros, mesmo que mínimos, quanto à autocomposição em sede de improbidade administrativa, além de conferir maior legitimidade democrática à celebração do acordo, assegura a maior possibilidade de controle do administrado a respeito dos atos firmados.

Caminhando em sentido praticamente contrário ao que se observa no PL 10.887/18, tramita no Senado Federal o PL 3.359/19, de autoria do senador Flávio Arns. Pode-se dizer que, enquanto o PL 10.887/18 deixa em aberto — e, consequentemente, ao alvedrio do Ministério Público — praticamente todos os elementos do acordo de não persecução cível, o PL 3.359/19 é mais detalhista em estabelecer requisitos a serem observados na ocasião de celebração do acordo. Nesse sentido, prevê, por exemplo, a necessidade da submissão do interessado na celebração do acordo a uma das sanções previstas pelo artigo 12 da Lei 8.429/92.

Embora o PL 3.359/19 seja silente sobre importantes disposições a respeito da dinâmica autocompositiva — a exemplo de eventual diferenciação entre acordo firmado de forma prévia ou concomitante, como ocorre na Lei 12.529/11 —, em nossa visão [4], ainda assim, seria mais promissor que o PL 10.887/18, por prever maiores contornos para a celebração dos acordos, conferindo maior legitimidade e poder de controle dos atos do administrador.

Dessa forma, almejamos que, na ocasião da apreciação do PL 2.505/21, o Senador Federal leve em consideração elementos relevantes do PL 3.359/19, especialmente quanto à delimitação de parâmetros mínimos para a celebração dos acordos de não persecução cível.


[1] ZUFELATO, Camilo. CARVALHO, Lucas Vieira. "Lei Anticrime" prevê acordos em ações de improbidade administrativa. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2020-jan-08/lei-anticrime-preve-acordos-acao-improbidade-administrativa>.

[2] BRASIL. Advocacia-Geral da União. Portaria Normativa AGU nº 18, de 16 de julho de 2021. Regulamenta o acordo de não persecução cível em matéria de improbidade administrativa no âmbito da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral Federal. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-normativa-agu-n-18-de-16-de-julho-de-2021-332609935>.

[3] SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Resolução PGE nº 20, de 13 de agosto de 2020. Dispõe sobre procedimento para atuação judicial em matéria de proteção à probidade administrativa. Disponível em: <http://www.pge.sp.gov.br/TEMP/695d1658-165c-4f72-9add-42efffdc16fe.pdf>.

[4] MARRARA, Thiago. Acordos de leniência no processo administrativo brasileiro: modalidades, regime jurídico e problemas emergentes. Revista Digital de Direito Administrativo. v. 2, n. 2, 2015, pp. 509-527, p. 517.

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