Garantias do consumo

A volta à baila dos planos de saúde

Autor

  • Maria Stella Gregori

    é advogada de Gregori Sociedade de Advogados professora de Direito do Consumidor da PUC-SP diretora do Brasilcon e ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

15 de setembro de 2021, 8h00

A Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, marco da regulação da saúde suplementar, fixa as regras para as operadoras de planos de assistência à saúde e para os próprios planos, regulados e fiscalizados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Esta lei prevê a cobertura assistencial de todas as doenças previstas na Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial de Saúde (OMS), a partir de um rol de procedimentos fixado pela ANS, de acordo com a segmentação do plano adotada, isto é, ambulatorial (Consultas, exames e tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral), hospitalar (internação); hospitalar com obstetrícia (internação e assistência a parto), odontológica (procedimentos realizados em Consultório) e referência (ambulatorial e hospitalar com padrão enfermaria).

Nestes 23 anos, de regulação dos planos de saúde, muitos avanços foram alcançados, mas como o direito, tal qual os movimentos da sociedade, é dinâmico, ainda se observam pontos de dissonância, especialmente, em relação à proteção do Consumidor estruturada no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que acabam sendo dirimidos pelo Poder Judiciário.

A judicialização da saúde no Brasil, tanto a pública como a suplementar, tem aumentado muito nos últimos anos. Segundo o Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar, da Universidade de São Paulo (USP) [1], que acompanha os dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há alguns anos, ao divulgar análise em fevereiro de 2020, demonstra que houve um crescimento de 387% em oito anos.

Além do Judiciário, a sociedade, também, busca a satisfação de seus direitos, no âmbito administrativo, por meio dos Departamentos Estaduais de Proteção e Defesa do Consumidor (Procons), Consumidor.gov e das agências reguladoras. Segundo dados de 2020 o Sindec/MJ e o Consumidor.gov[2][3], receberam respectivamente 1.1% e 0.6% de reclamações referentes aos planos de saúde. A ANS, por sua vez, também recebeu, em 2020, mais de 150 mil reclamações de consumidores que não são atendidos adequadamente por suas operadoras.

O setor de saúde suplementar, especialmente, no que tange à proteção do Consumidor é conflituoso, e nesse cenário, o Poder Judiciário, nas questões relativas aos planos de saúde, assume um papel ativo, porque tem a última palavra e a responsabilidade de pacificar os conflitos.

A insegurança jurídica que permeia o setor é um dos fatores preponderantes que ocasiona a crescente judicialização. Isso se dá porque se trata de um tema complexo, em que a solução dos problemas não está clara nas regras vigentes e, também, por ser uma relação de Consumo diferenciada, ao afetar um bem constitucionalmente indisponível que é a vida.

A prestação da saúde envolve uma série de questões que tem impacto econômico e social, especialmente, com o aumento do desemprego e perda da renda dos consumidores, o envelhecimento da população, somada a uma expectativa positiva de vida mais longa, os custos assistenciais subindo rapidamente em função da vertiginosa incorporação de novas tecnologias, levando-se em conta que os recursos são finitos e agravados pela pandemia global do novo coronavírus decorrente da doença Covid-19. Acrescente-se, as informações não são compartilhadas entre operadoras, prestadores e consumidores, o que agrava os frequentes conflitos entre os atores do setor.

Essa mecânica de funcionamento do setor faz com que não haja perspectiva de solução dos conflitos; ao invés, perpetuam-se.

 Por conta disso, vez ou outra, surgem iniciativas de alteração da Lei dos Planos de Saúde e, recentemente o debate volta à baila com o renascimento do Conselho de Saúde Suplementar (Consu) e com a criação de nova Comissão Especial dos Planos de Saúde, na Câmara dos Deputados.

O Consu, órgão deliberativo de representação interministerial, que tem como atuação definir diretrizes e políticas públicas para elaboração de ações pela ANS, mas desde os primórdios da regulação ficou inerte delegando competência à ANS. O Ministério da Saúde, no início deste ano, apresentou ao Consu proposta de "Política Nacional de Saúde Suplementar Para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19" (PNSS-Covid-19), a ser executada pela ANS, que foi aprovada e colocada em consulta pública.

Os que se posicionam na defesa dos consumidores se manifestaram contrariamente à proposta, por entenderem que o texto apresentado era impreciso e abria espaço, por exemplo, para a extinção dos prazos máximos de atendimento ao consumidor pelos prestadores de serviços em saúde e para a proliferação de planos subsegmentados, mais baratos e com redução de cobertura, que se apoiam no Sistema Único de Saúde (SUS) para a realização dos procedimentos mais caros e complexos. Outro grave problema era a ideia de ampliar o poder de interferência das operadoras nas relações entre médicos e consumidores/pacientes, inclusive exigindo mais requisitos para autorizar procedimentos e tratamentos. A proposta também, desestimulava o atendimento de consumidores de planos de saúde pelo SUS, o que viola a garantia constitucional do acesso universal à saúde pública a que todo cidadão brasileiro faz jus.

Após análise das contribuições recebidas, por meio da consulta pública, o Ministério da Saúde apresentou nova proposta ao Consu, que aprovou a Resolução 1, de 2 de setembro de 2021, não incluindo os principais pontos controversos. Entretanto ainda há divergências, no que tange à competência do Consu, pois tal normativo estabelece que cabe a ele definir as ações propostas pela ANS. Ocorre que a atuação do Consu, de acordo com o artigo 35-A, da Lei 9.656/1998, se restringe a fixar diretrizes gerais para a implementação de normas no setor de saúde suplementar, especialmente quanto aos aspectos econômico-financeiros da regulação, bem como, supervisionar e acompanhar as ações, que devem ser definidas pela ANS, desde que respeitadas suas diretrizes. Deste modo, esta norma editada pelo Consu é anacrônica, editada mais de um ano após o início da pandemia, ao definir uma política que extrapola a Lei dos Planos de Saúde e sem a participação da ANS, violando sua autonomia que, em tese, foi fortalecida pela Lei das Agências Reguladoras [4].

Portanto, o Consu deveria revisitar o PNSS para adequá-lo aos limites legais que a lei impõe, e deveria sim, definir diretrizes que incentivassem a ANS a tomar medidas que beneficiassem os consumidores, especialmente: a ampla testagem dos consumidores de planos de saúde; a inclusão no rol de procedimentos da ANS de todos os exames para detecção de Covid-19; a proibição de suspensão ou rescisão de contratos.

Paralelamente à retomada do Consu, foi instaurada a Comissão Especial dos Planos de Saúde, com o objetivo de analisar o Projeto de Lei 7.419/2006 e seus 247 projetos apensados, apresentar parecer ou projeto de lei substitutivo, propostas de alterações, inclusões e aperfeiçoamentos à lei originária.

Cabe salientar, que, em 2016, a Câmara dos Deputados já havia criado Comissão Especial sobre os Planos de Saúde, em regime de urgência, para analisar esse projeto de lei e seus apensados. Entretanto, as conclusões apresentadas pelo relator não foram apreciadas pela comissão, tendo sido muito criticadas pelas entidades de defesa do consumidor, entidades médicas e defensorias públicas, por retrocederem nos direitos dos consumidores, especialmente, quanto à diminuição do poder coercitivo da ANS ao reduzir o valor e gradação das multas; a modificação da sistemática do ressarcimento ao SUS e a extinção de projetos de lei que ampliam as garantias de coberturas assistenciais.

Observa-se que esses recentes movimentos, tanto do Poder Executivo, quanto do Legislativo, têm como ideia central que seja autorizada legalmente a possibilidade do oferecimento de planos sub-segmentados, os chamados, populares, acessíveis, modulares, "pay per view". Estes planos visam coberturas reduzidas e delimitadas, podendo ter somente consultas, exames, tratamento de alguma doença determinada ou internação hospitalar ou atendimento de pronto socorro. Propõem-se também a liberação de reajustes de mensalidades dos planos individuais, maiores prazos para prestar o atendimento, o fim do ressarcimento do SUS, a redução de multas aplicadas pela ANS e o enfraquecimento de sua atuação.

Os defensores dessas propostas sustentam que a oferta de menor cobertura, implicará planos mais baratos, ampliará o acesso ao consumidor e viabilizará, às operadoras, a volta do oferecimento de planos individuais no mercado e, consequentemente, desafogará o SUS. Destaca-se que há alguns anos as operadoras adotaram a estratégia de deixar de oferecer os planos individuais por entenderem que as regras atuais são muito mais flexíveis aos planos coletivos, que hoje representam cerca de 80% do que é comercializado.

Decerto é importante o aperfeiçoamento da regulação da saúde suplementar para harmonizar as relações entre as operadoras de planos de assistência à saúde e seus consumidores. Entretanto esse aperfeiçoamento deve se dar a partir dos avanços alcançados, com a reavaliação dos pontos negativos, especialmente os que não se harmonizam com o Código de Defesa do Consumidor. Não se pode concordar com propostas que pretendem reduzir ou delimitar coberturas da assistência à saúde, pois além de que os serviços de assistência à saúde não serem um produto passível de ser fatiado ou compartimentalizado, as necessidades em saúde levarão ao aumento da judicialização e a procura desordenada pelo SUS, especialmente nos níveis de alta complexidade.

Como o consumidor poderá ter plano de saúde que contemple apenas consulta? Ou somente exames? Imagine se, porventura, na consulta ou nos resultados dos exames for verificado alguma necessidade de atendimento de urgência ou emergência, a quem o consumidor deverá procurar? E se o consumidor tiver qualquer problema de saúde que envolva maior complexidade, como será o seu atendimento? Será que há alguma vantagem para ele adquirir plano de saúde que não cubra todas as doenças? A lógica da oferta de planos de saúde passa justamente pela impossibilidade fática de o consumidor planejar seus cuidados em saúde, dada a imprevisibilidade da doença e do agravamento de seu quadro clínico. O consumidor visa contratar um plano de saúde para ter atendimento assistencial que dê conta das incertezas futuras e com qualidade do atendimento.

Desse modo, parece óbvio tratar-se de retrocesso às conquistas até agora alcançadas e levar adiante qualquer debate pautado na possibilidade de planos de saúde com cobertura reduzida e menor custo. Mais do que isso, é promessa ilusória de assistência adequada ao consumidor. No garimpo, isso se dá o nome de "ouro do tolo".

O que a sociedade deseja é o aperfeiçoamento da regulação dos planos de saúde, com o foco da atenção centrado no consumidor e voltado para a produção de saúde, com o cuidado assistencial integrado e a gestão assistencial eficiente.

Quais são os desafios que se deve percorrer na direção de mais avanços na regulação dos planos de saúde?

É primordial invocar a sustentabilidade do setor de saúde suplementar com uma visão holística, na busca do equilíbrio de um produto economicamente viável e uma entrega justa. Em questões ligadas à saúde, o consumidor deve ser considerado pelo fornecedor como paciente, parceiro e aliado, jamais pode ser tratado como adversário, inclusive por ser ele fonte de recursos para a operadora, com geração de renda para a economia como um todo.

A prestação da atenção à saúde deve ser humanizada, pois o material que os fornecedores trabalham é o humano, a pessoa, que deve ter respeitada sua dignidade. O paciente/consumidor, nessas circunstâncias, está fragilizado, pelo que necessita de um tratamento diferenciado e integrado. Nesse campo a informação é essencial e deve ser a mais clara e transparente possível.

É necessário que alguns pontos das regras vigentes sejam repensados, com vista a compatibilizá-los com o Código de Defesa do Consumidor, especialmente nas diferenças entre os planos individuais e os coletivos. O consumidor não tem conhecimento das peculiaridades legais entre estes planos e acaba sendo induzido a contratar planos coletivos, principalmente, pelo reduzido preço inicial, compensado posteriormente por robustos reajustes. Portanto, é essencial um rigor maior da regulação para estes contratos, especialmente os chamados falsos coletivos, que congregam poucas pessoas.

Importante também incluir, na discussão para a incorporação ao marco legal, temas como: a obrigatoriedade da implantação de prontuário eletrônico; a permissão definitiva da realização de teleconsultas, já adotadas em vários países; a tipificação dos crimes contra a fraude e desvios de recursos na saúde; a indução de novos modelos de remuneração dos prestadores de saúde.

Outro tema a ser levado em conta é o aprimoramento da dinâmica de incorporação de tecnologias em saúde ao rol de procedimentos editado pela ANS, atualizando procedimentos com mais celeridade e que já tenham evidências científicas e eficácias comprovadas.

O que não se pode é aceitar qualquer redução das garantias assistenciais em um mercado onde as reclamações dos consumidores são persistentes.

Desse modo, para que os desafios propostos sejam alcançados faz-se urgente a ampliação do debate com a participação e o envolvimento de todos os atores desse setor, no intuito da consolidação de um mercado de saúde responsável, transparente, ético e justo, para a efetiva construção de um setor virtuoso, com ganhos positivos, em que todos os agentes possam se beneficiar, buscando o tão almejado equilíbrio.

Cabe comentar que, infelizmente, na Comissão Especial dos Planos de Saúde o debate, até o momento, demonstra-se desproporcional, pois apenas houve a participação de uma entidade de defesa do consumidor versus representantes da ANS e de todas as entidades das operadoras e de médicos.

É importante que esse debate retomado tanto pelo Consu quanto pelo Congresso Nacional, tenha a participação ativa da sociedade, do poder público, das operadoras, dos prestadores de saúde e, especialmente, dos órgãos e entidades de defesa do consumidor, para aperfeiçoar a regulação dos planos de saúde, a fim de se garantir os avanços conquistados e rechaçar qualquer forma de retrocesso ao marco regulatório setorial de duas décadas.


[1] Mario Scheffer. Cresce o número de ações judiciais contra planos de saúde no Estado de São Paulo. GEPS-DMP/FMUSP São Paulo: 2020.

[4] Lei 9.986, de 18 de julho de 2000, alterada pela Lei 3.848, de 25 de junho de 2019.

Autores

  • é advogada do escritório Gregori Sociedade de Advogados, professora de Direito do Consumidor da PUC-SP, diretora do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

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