Trabalho contemporâneo

Proteção e judicialização do trivial da vida humana

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14 de setembro de 2021, 16h02

"5h — Acordo cansado. Levanto, tomo banho, faço a barba e a higiene matinal, gasto 25 minutos a um custo de R$ 3 diários (gastos com xampu, sabonete, água, espuma de barba, gilete, pasta de dente e manutenção da escova).
5h25 — Coloco a roupa do trabalho, com meias e gravata. Tempo: 10 minutos. Custo: R$ 5 (gastos com manutenção da roupa — sabão em pó, passadeira e arrumadeira — e equivalente diário do custo de aquisição).

Spacca
5h35 — Saio de casa rumo ao aeroporto para viagem a trabalho. Tempo: 1h25. Gasto: vale-transporte já pago pela empresa.
7h — Chego ao
check in'da companhia aérea. Tempo: 30 minutos. Sala de embarque até entrar no avião. Tempo: 50 minutos. Gasto: R$ 8 (uma garrafa de água).
Entro no avião, sou recebido por uma comissária de bordo sem maquiagem, com os cabelos desarrumados, uniforme em desalinho. Fico em dúvida se ela lavou o rosto e escovou os dentes após acordar. Olho em volta e reparo que todos os comissários de bordo estão com a mesma apresentação. Não sei se ainda estou sonolento ou se no meio de um filme apocalítico, algo como "The Walking Dead".
Sento na minha poltrona e fecho os olhos, pensando que tudo deve ser má impressão de quem está constantemente cansado. Adormeço. Sinto alguém me cutucando, acordo e levo um susto: um comissário com a barba por fazer, gravata sem nó e camisa semiaberta pergunta se quero um lanche. Melhor não, penso, colocando em questão a higienização do ambiente a julgar pelo que presenciava.
Puxo assunto com o passageiro ao meu lado. Era uma mulher bem vestida, maquiada, cabelos penteados, unhas feitas, pernas depiladas. Pergunto se estaria delirando ou se ela também estranhara os fatos ao redor.
Muito sorridente, dentes brancos e exalando uma leve fragrância de flores, ela me explica que a companhia área, cumprindo um precedente da Justiça do Trabalho, resolveu não mais exigir qualquer tipo de vestimenta ou padrão de apresentação de seus empregados, a fim de evitar condenações.
Por sorte, minha companheira de viagem é advogada e me explica que a decisão da empresa buscou evitar o risco trabalhista.
Conecto meu celular à internet de bordo e pesquiso. Tudo começou com um caso em que a empresa Gol foi condenada, em ação movida pelo Ministério Público do Trabalho, a indenizar suas empregadas diante da exigência de maquiagem, com a alternativa de parar de fazer tais demandas para o serviço. Encontro o marco zero do desalinho.
Compreendida a situação, continuo meu caminho refletindo e anotando todos os gastos da minha vida. Vai que… Tempo de voo: três horas. Gasto: R$ 50 (conexão à internet)…"
.

A história dessa narrativa é fictícia, claro, salvo quanto à ação civil pública que resultou na condenação da empresa Gol. Não se trata aqui de criticar a decisão judicial, mesmo porque a notícia que transitou na mídia dá elementos sólidos para se justificar a condenação.

A reflexão, entretanto, concerne a tantos casos que já pude presenciar na Justiça do Trabalho, em que os pedidos dizem respeito à tentativa de impor ao empregador os custos por gastos que fazem parte do cotidiano normal das pessoas, assim como o pagamento do tempo despendido para atividades corriqueiras. Uma verdadeira "judicialização" do trivial da vida humana.

Os exemplos são muitos. Tempo de deslocamento da casa para o trabalho e vice-versa, tempo para troca de uniforme, horas extras por jogar futebol na empresa no time do chefe, incluindo o tempo gasto no churrasco de confraternização regado a cerveja, ressarcimento de gastos com uso da mala do automóvel, por ter que transportar material de trabalho da empresa, aluguel de espaço na estante da sala, por levar alguns objetos da empresa para casa, gastos com maior quantidade de uso de banheiro para trabalho em home office, sabão em pó para lavar as roupas usadas no serviço etc. etc.

Se por um lado há de se cuidar para o empregador não invadir o tempo livre ou impor custos aos trabalhadores, por outro há de se ter um mínimo de compreensão de que há certos afazeres e gastos que são naturais, que aconteceriam de qualquer forma, fazendo parte da vida humana.

A judicialização de cada minúcia do cotidiano de um trabalhador produz um efeito nefasto, que começa pela necessidade de mudanças na legislação, que precisa tecer minúcias para tentar coibir todas as possibilidades, e termina na proliferação de ações e pedidos perante a Justiça.

A questão chegou a tal ponto que a reforma trabalhista, tentando colocar limites em vários desses temas, precisou dizer o óbvio sobre o tempo que se contabiliza como de serviço para o empregado. Basta ver a nova redação do artigo 4º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu segundo parágrafo, em que atividades que o empregado faz por interesse próprio não são consideradas como tempo à disposição.

Precisaríamos, realmente, de lei para regulamentar isso? Não seria consenso que se o empregado permanece na empresa sem ordem do empregador, sem estar trabalhando, lá adentrando por interesse próprio, para atividades particulares, o tempo gasto não deveria ser computado como jornada de trabalho?

Parece que não. E as múltiplas condenações demonstraram isso ao longo dos anos. Chegamos ao ponto, ainda, de precisar de lei para afirmar que o empregador possui o direito de fixar o uniforme que o empregado vai utilizar. E que o fato de o uniforme possuir logomarcas não gera lesão à imagem do trabalhador. Novidade da reforma trabalhista, para tranquilidade geral, que inclusive acabou com as horas in itinere.

O fato é que trilhamos um caminho onde cada vez mais o empregador se vê acuado e desestimulado, pois até mesmo exigir alguma tarefa nova, que não esteja expressamente prevista no contrato, e muitas vezes em substituição a outras, pode gerar condenação em acúmulo de funções. E com arbitramento de percentuais a critério de cada julgador, de 10% a 40%.

A premissa seria no sentido de que nenhuma nova atribuição de afazeres ao trabalhador poderia ocorrer, como se no ato da admissão houvesse um retrato estático, ignorando que o natural é irem surgindo novas necessidades dentro da relação de emprego, diante da dinâmica de um contrato de trato sucessivo.

Presenciei casos em que o adicional de acúmulo de função, somado ao salário original, superava o valor do salário da própria função alegadamente cumulada. Pior, ainda, quando a tarefa sustentada pertence a uma função com salário inferior à executada. Plus salarial por gastar tempo em função com salário menor?

Nem vale citar casos pitorescos, como o do trabalhador que recebeu carro da empresa para usar em serviço e postulou acúmulo de função como motorista de si mesmo…

Em pouco tempo, se continuarmos com essa mentalidade, precisaremos de uma legislação que diga quais ordens podem ser dadas pelo empregador validamente, ou quem sabe a jurisprudência se encarrega disso, quais os itens da higiene pessoal pode o empregador exigir e por aí vai. Um roteiro para vivermos.

A verdade é que a única forma de se ter tranquilidade e segurança quanto ao custo trabalhista pode acabar sendo a migração para a automação e a inteligência artificial. De tanto esgarçarmos o equilíbrio da já complexa relação de emprego, findaremos destruindo sua própria existência. A largada já foi dada, e a pandemia acelerou o processo, como é possível ler aqui.

Mais do que nunca, portanto, precisamos lembrar que o pilar do Direito do Trabalho, o princípio da proteção, não significa tratar o trabalhador como uma entidade fora do mundo e blindado dos fatos cotidianos da vida, mas que sua afirmação determina a busca da almejada igualdade jurídica entre empregado e empregador. Nem mais nem menos. Proteção, sim, mas na medida adequada.

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  • Brave

    é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e diretor da escola associativa da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT).

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