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Opinião: Sobre o Código de Processo Administrativo

14 de setembro de 2021, 13h06

Por Franco Valenzuela De Figueiredo Neves Sinhori, Claudio Rozza, Sílvia Carolina Rozza Krug

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Projetada e decantada há anos, com participação de vários setores jurídicos do Paraná, foi publicada, louvada e cantada a Lei 20.656, de 3/8/2021, criadora do código que estabelece normas gerais e procedimentos especiais sobre atos e processos administrativos no âmbito do estado do Paraná.

A meta do Código de Processo Administrativo, antagônica, ousada, mas bem-intencionada, é a tentativa da simultânea conciliação de proteção aos direitos fundamentais dos "administrados" e o melhor cumprimento dos fins da Administração.

As normas legais emanam os fluidos do ambiente que as geraram. Sensíveis, os destinatários captam tais fluidos misturados aos aromas do ambiente em que são as normas proclamadas. Quando se tenta delinear quais os fins da Administração, a visão se turva diante de neblinosas perspectivas de atender às necessidades dos cidadãos sem provocação de déficit fiscal-orçamentário.

Em tempos em que dinamismo e celeridade devem identificar o atendimento ao cidadão pela Administração Pública, com apoio no princípio do formalismo moderado, há a corrente de quem propaga que códigos engessam o caminho, fazem prevalecer o formalismo sobre os fundamentos da Justiça e derrubam, emperram e obstaculizam o exercício de direitos em prol de balizas temporais, meros rituais, condições, pré-requisitos, formalidades e preclusões lógicas e ilógicas.

De outra banda, desde que de acordo com os postulados constitucionais, os códigos de processo administrativo traçam caminhos seguros para salvaguardar direitos dos cidadãos que, ao longo da vida, vinculam-se necessariamente ao Estado e enredam-se cada vez com maior intensidade em sua teia burocrática.

A ausência de codificação poderia abrir uma cambiante armadilha de insegurança jurídica e tecer uma colcha com retalhos formados por leis esparsas, nem sempre unívocas e de sentido convergente, num arranjo que só facilitaria o administrador, manipulador, dono de todas as entranhas das mais estranhas e recônditas regulamentações que, em profusão vulcânica, são  tendentes a confundir, embaralhando as ações dos "administrados", impondo condições e requisitos tais que impeçam a formulação, e tornam distantes o reconhecimento de seus direitos e o atendimento de suas pretensões pela Administração Pública.

A Lei do Código de Processo Administrativo, quando projeto, foi amparado por idealistas, obstinados trabalhadores e instituições que batalham em prol da excelência do Direito Administrativo e, quando sancionada, como na canção de Aldir Blanc e João Bosco,  lembra, a um tempo, o progresso e o retrocesso, "dois passos pra lá e dois pra cá".

Entre as expectativas atendidas dos que, de longa data, pugnavam pelo Código de Processo Administrativo, evidencia-se a instrução com a característica da transparência. Ou seja, que o cidadão não fique à mercê, perdido em meio às secretas manifestações, acórdãos publicados em redes internas ou de difícil acesso, pareceres sem decisão definitiva, por medo ou receio de responsabilização, em casos em que tenha que ser reconhecido o direito do cidadão em detrimento do interesse da Administração (aquele "gasto a mais", considerado interesse "secundário", como se fosse "nós contra eles" na atual visão dualística prevalecente).

Louve-se a menção legal a meios eletrônicos, sítio oficial para transmissão eletrônica com clara observação de onde, como e quando peticionar e recorrer. Queira Deus que pela posterior regulamentação não sejam criados impeditivos à instrução que a lei preconiza como facilitadora do relacionamento entre "administrado" e Administração Pública.

O código, para análise da atuação e controle dos agentes estatais, incorpora a visão atualizada sobre as leis de responsabilização que passam obrigatoriamente pela interpretação preconizada por recentes alterações promovidas pelas Normas de Introdução ao Direito Brasileiro. Descreve, entre outras considerações que, para apreciação da regularidade da conduta, devem ser observadas as circunstâncias práticas, superando a originária, vetusta e vingativa visão da lei de improbidade como metralhadora giratória a atingir bem e mal-intencionados. Acertadamente, foca como necessários ingredientes para a responsabilização funcional o dolo/erro grosseiro.

No entanto, permanece no texto o bolor dos projetos que, retirados das gavetas, ainda continuam a tratar o cidadão com a expressão "administrado" (inclusive com letra minúscula em contraposição à poderosa Administração Pública), poluindo ares modernos com raciocínios e visões que correspondem à submissão, como a tratar cidadão de súdito diante de senhores mandantes de sesmarias e capitanias hereditárias, donos de poder. Nesse aspecto, o texto esconde o grito da vítima, frente ao silêncio dos vencedores, na teia das relações sociais dos subordinados ao poder público.

Expressivos de uma visão superior da Administração são os deveres do "administrado", impostos no código como que na intenção de não incomodar a Administração Pública com pedidos impertinentes. E, ainda que aceito o requerimento, que o "administrado" não atrapalhe o andamento dos processos. Embora atribua o dever com o advérbio "injustificadamente", por subjetivo, o contexto também poderá dar margem a reprimenda aos que ousarem buscar os seus direitos. Que "administrado" já não enfrentou dificuldades, filas, guichês, jogo de empurra-empurra, morosidade na tentativa de arregimentar provas e fundamentos em alguns casos justamente quando apenas disponíveis à Administração ou de difícil acesso ao requerente?

Entre vários exemplos de condicionantes, numa regulamentação profusa, complexa, cambiante e contraditória que beira a perplexidade de um manicômio judiciário, pode ser apontado o difícil relacionamento com o Fisco.

Ainda que tenha um específico procedimento, não deixa de partilhar do mesmo espírito poderoso e soberano que compõe a Administração Pública, revelador de traumática relação entre poder público, ao lidar com o sujeito passivo, na mesma órbita do "administrado", subjugado. Assim, em alguns estados, ao exigir do sujeito passivo, contribuinte, "administrado", provas a que só a Administração Tributária tem total acesso, como às notas fiscais no sistema eletrônico na cadeia que vai da produção ao consumo na substituição tributária para frente afim de que se reconheça o direito ao ressarcimento, de acordo com o Tese 201-STF ("É devida a restituição da diferença do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para a frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida"), acaba, com tais e tantas  exigências, forçado a que abdique deste direito. Não raramente, multado.

Há de se louvar a incorporação de meios eletrônicos como meio de agilizar o processo administrativo, todavia, a Administração Pública, por vezes, impõe restrições às solicitações do "administrado". Por exemplo, o não reconhecimento do pedido se não houver especificação correta ou não seja da competência do órgão.

Ora, respeito ao cidadão compreende, tal qual consta do Código de Processo Civil, nesse ponto não copiado pelo Código de Processo Administrativo, a orientação e o encaminhamento, pela própria Administração, ao órgão competente.

O Código insiste mais de uma vez sobre a oposição de resistência do cidadão, que qualifica de "injustificada", exemplo de "má-fé", tal qual o proceder de modo temerário. Poderá a Administração, até "legalmente", esquivar-se de atendimento à solicitação com tal argumentação, subjetiva, arbitrária, quando, na verdade ao olhar do "administrado", seria legítimo seu proceder, eis que convicto de que realmente busca a concretização de seu direito.

O código favorece à Administração a fuga ao debate. O pedido deve ser analisado e não anatematizado, condenado sem decisão. Ainda mais quando o "administrado" não conseguir provas, muitas vezes por impeditivo da própria Administração Pública, a impingir-lhe de dolosa a perseguição a direito que o requerente considera legítimo.

Ponto importante a ser destacado positivamente, no aspecto disciplinar, é a indicação da sindicância como procedimento investigativo, e ainda que mantido o prazo exíguo de 15 dias (em exceção aos demais prazos constantes do código). Deixa, acertadamente, para eventual consequente processo administrativo disciplinar, qualificado pelo contraditório e pela ampla defesa, a responsabilização e penalização.

Poderia, no entanto, ter avançado para um processo de maior qualificação democrática estabelecendo meios para indicação da competente autoridade instrutora consentânea com o princípio do juiz natural e aprimorar a impessoalidade e a imparcialidade. Desse modo, evitar-se-ia a designação a dedo, por encomenda, da comissão processante. A clara e objetiva indicação da comissão processante deve ser anterior aos fatos que vierem a lhe serem submetidos à apreciação.

Ao tratar das provas orais, pode ser visualizado algum exagero ao "ensinar" à comissão processante estratégias, induzindo-a na arte de como bem elaborar as perguntas, sem olvidar de certa malícia, como no parágrafo único, artigo 166: "As perguntas devem ser formuladas com precisão e habilidade, podendo, em certos casos, serem reformuladas, para que se possa avaliar a segurança das alegações do depoente".

No tocante à sindicância, apresenta o ponto positivo de determinar a oitiva dos implicados como de há muito já recomendava a doutrina e a jurisprudência. Explicitamente, elabora um roteiro, o que não o faz para o processo administrativo disciplinar, mais profundo, complexo e submetido ao contraditório.

Nas subseções que tratam da instrução, a primeira faz menção ao interrogatório do indiciado (assim didática e pleonasticamente qualificado), como se antecedente aos demais atos processuais.

Este Código de Processo Administrativo, às vezes prolixo em determinadas seções, ora sucinto em outras, ora atualizado, como ao referir-se à utilização de procedimentos eletrônicos, ora trazendo em seu bojo aspectos de vetustas e ultrapassadas expressões, conceitos e procedimentos, é a um tempo, avanço em alguns aspectos e retrocesso em outros, como é o caso, por exemplo, de se iniciar o processo com o interrogatório.

Originados em tempos, por alguns considerados ditatoriais, no Código de Processo Penal, e também a Lei 6.174/70, Estatuto dos Servidores Civis do Paraná, cujos artigos de processo disciplinar são ora revogados, o interrogatório era considerado mais um meio de prova (tão importante, cuja confissão por vezes era extraída mediante tortura).

Desde 2008, com alteração pela Lei 11.719, o Código de Processo Penal, salientando o princípio da dignidade da pessoa, passa a qualificar o interrogatório mais como meio de exercício da defesa do que somente como meio de prova:

"CPP, artigo 400 Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo máximo de 60 dias, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, à inquirição de testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, neta ordem, ressalvado o disposto no artigo 222 deste Código, bem como dos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado" (grifo dos autores).

Ainda que sujeito a requisitos, exaltam-se como ponto positivo do Código de Processo Administrativo os procedimentos conciliatórios, preconizando o ajuste de conduta mediante termos de acordo, inclusive na esfera disciplinar.

Direitos e deveres do artigo 5º da Constituição Federal compreendem, além dos expressos, também os que se explicitam em normatividade dita infraconstitucional que adquirem o status de mesmo nível constitucional pela abertura dada pelo seu parágrafo 2º. Ou seja, os direitos e garantias expressos não excluem outros decorrentes do regime e princípios adotados pela Constituição, formando, portanto, um bloco de constitucionalidade, implicando inclusive em cláusula pétrea impeditiva de deliberação proposta tendente a abolir direitos e garantias.

Todavia, ao longo do ciclo histórico, percebe-se movimento pendular ora pendendo para períodos de tonalidade mais repressiva destacados pela interpretação denominada "pela lei e pela ordem", ora com cores abrandadas pela denominada corrente garantista.

Como exemplo, não muito distante no tempo, e do estado do Paraná, constava da Lei Complementar 92/2002, Estatuto dos Auditores Fiscais, ao tratar de processo administrativo disciplinar, que, entre a autoridade instrutora (comissão processante) e a autoridade julgadora e ao mesmo tempo competente para aplicação de penalidade, um conselho colegiado paritário representativo da autoridade (membros por ela indicados) e dos servidores (membros eleitos pela classe). Ainda que o presidente, com a faculdade do voto de minerva, fosse indicado exclusivamente também pela autoridade, havia relatoria indicada por sorteio, revisor e espaço para sustentação oral por parte da defesa.

Nesse caso do Conselho Superior dos Auditores Fiscais, o pêndulo entre garantistas e justiceiros, "nós e eles", pendeu para o retrocesso. Pela Lei Complementar 192/2015, extinguiu-se a competência disciplinar desse Conselho Superior de deliberar sobre os processos disciplinares. Em consequência, extinguiram-se também direitos/garantias que espelhavam na prática os ditames constitucionais em homenagem aos princípios da ampla defesa e do contraditório, espancando direito fundamental aos olhares atônitos e plácidos de quem, ao ver invasores, usurpadores, carrascos, causarem estrago na casa ao lado, nem chegou a se indignar pois o jardim era do vizinho.

Assim, entre progressos e retrocessos, mistura de antigos e novos conceitos, como que reunidos para formar um todo e atender a antigos reclamos de várias instituições, em seu conjunto, o Código de Processo Administrativo, criado pela Lei 20.656, de 3 de agosto de 2021, representa um avanço, com saldo positivo.

Os retalhos, assim divergentes, reunidos no mesmo texto do Código de Processo Administrativo, deverão ser submetidos a análises mais profundas, à interpretação, filtragem e otimização constitucional para superar certo ranço autoritário comum nestes tempos. Assim, passos sempre à frente na seara do processo administrativo, será instrumento apto para representar concretamente evolução rumo à altura e ao nível que respeite e viabilize ao cidadão o exercício e o gozo da expressão máxima de sua dignidade em seus vínculos frente à Administração Pública.