Opinião

O indivíduo vitimado pelo crime e o ANPP

Autores

  • Gustavo Dias Kershaw

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco mestrando em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Edimburgo e em Perícias Forenses pela Universidade de Pernambuco especialista em Direito do Estado pela Faculdade Estácio do Pará (FAP) e em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e professor especialista I no Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau/Recife)

  • Valéria Cristina Meira de Oliveira

    é assistente judicial de Entrância Inicial do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas bacharela em Direito e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia - Fibra.

14 de setembro de 2021, 7h04

Apesar de ser afetada pela prática delituosa, durante muito tempo a vítima tem sido deixada em segundo plano. Por anos, seus anseios e necessidades foram negligenciados, sendo o acusado o centro das atenções da maioria das produções legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais. Assistimos a uma gradual incorporação de mecanismos de solução consensual de conflitos na seara criminal sendo os acordos de não persecução penal o mais recente mecanismo.

Em um Estado democrático e de Direito, deve-se dar voz às vítimas de crimes e respeitá-las. O presente trabalho busca analisar a importância, a participação e o papel das vítimas de crimes no processo penal brasileiro, especificamente no que diz respeito aos acordos de não persecução penal (ANPP) firmados pelo Ministério Público e os acusados de crimes.

O novel artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP) trouxe tímidas — porém relevantes — providências quanto à participação da vítima no ANPP. Citemos, por exemplo, que uma das possíveis condições do ANPP, conforme disposto no inciso I do referido artigo, é o agente "reparar o dano ou restituir a coisa à vítima", donde se dessume que o legislador quis privilegiar, a priori, o ressarcimento da vítima, eis que ela é diretamente atingida pela prática do delito.

Contudo a participação da vítima não deve se restringir aos aspectos de ressarcimento: ela tem direito a um processo penal democrático, no qual se inclui, por exemplo, o direito de ser acolhida e ouvida pelo sistema de justiça criminal. É necessário reanimar o papel da vítima no processo penal e na realização efetiva da justiça criminal sem, contudo, alimentar qualquer tipo de revanchismo ou vingança, fugindo, portanto de um discurso de enfrentamento e ódio entre acusados e vítimas.

O tema encontra relevância uma vez que, dentro das perspectivas de justiça criminal negociada e de garantismo penal integral, não se pode mais restringir a relação processual penal entre Estado-acusação e acusado, daí porque a necessidade cada vez maior de inclusão da vítima no processo negocial-decisório.

Sob a perspectiva acima mencionada, de um garantismo penal integral, busca-se o entendimento de que na aplicação e interpretação dos direitos fundamentais não se pode esquecer da garantia de eficiência e segurança do cidadão. Com efeito, a garantia de segurança tem status constitucional (artigo 144) e esse dever do Estado se aplica tanto no âmbito individual quanto coletivo — segurança ao cidadão e à sociedade. Como ensina Douglas Fischer, não basta evitar as condutas criminosas, mas também apurar devidamente o ato ilícito e a punição do responsável [1]. No contexto de garantias fundamentais das vítimas, é importante destacar que a devida apuração e punição do crime é um compromisso internacional de Direitos Humanos e o Brasil tem sido reiteradamente chamado às instâncias internacionais por não investigar e punir delitos [2].

Para Francisco Dirceu Barros, um dos princípios estruturantes dos acordos criminais é o da minimização dos danos causados à vítima, porquanto "no direito criminal consensual, a vítima tem um olhar diferenciado, e o princípio em estudo defende que a negociação deve priorizar a restauração dos danos materiais, emocionais e psicológicos causados à vítima" [3].

Dentre os crimes possíveis de celebração dos acordos de não persecução penal temos: estelionato, furto, acidentes de trânsito, dano ao patrimônio e diversos outros, nos quais há ofensa ao bem jurídico de alguém. Logo, é neste contexto que urge relevante a participação da vítima na celebração do ANPP. Afinal quem mais "competente" para dizer o quê e/ou de que forma foi afetado pelo crime que não a própria vítima?

Noutras palavras, devem-se empenhar esforços no intuito de ter a participação conjunta e ativa da vítima — empoderando-a — na busca de resultados restaurativos, isto é, na celebração do acordo de não persecução, de modo que ele cumpra os fins aos quais fora proposto: de correção, de reparação de danos, de restabelecimento de paz social e de, descongestionamento do Poder Judiciário.

Como dito alhures, uma das condições para a celebração do ANPP e que poderá, portanto, materializar uma de suas cláusulas é a reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo (artigo 28-A do CPP). Esta condição já se fazia presente na Resolução 181/2017 do CNMP em seu artigo 18, inc. I.

A inviabilidade do ressarcimento pode ser jurídica, por exemplo, nos crimes de perigo, sem lesão efetiva causada — ou mesmo econômico-financeira quando o acordante não ter dispõe de recursos para ressarcimento do lesado [4] ou "vulnerabilidade financeira" [5]. Cumpre ressaltar que cabe ao próprio acusado o ônus de provar a impossibilidade [6]. Nesta hipótese, devem ser intensificadas as demais condições como, por exemplo, a prestação de serviços à comunidade.

Portanto, havendo vítima, é importante que o membro do Ministério Público leve em consideração os aspectos abaixo mencionados.

1) Identificar a(s) vítima(s)
Inicialmente, quando da recepção de autos de procedimentos investigatórios, é fundamental que se identifique a(s) vítima(s) do delito que, como se sabe, pode ser uma pessoa física, um conjunto de pessoas, uma pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, exceto nos casos de crimes vagos, isto é, "aqueles que não possuem um sujeito passivo determinado, figurando no polo passivo, em geral, a sociedade" [7].

Analisando o Código Penal, por exemplo, detectamos os seguintes exemplos de crimes em que há vítima e, em tese, passíveis de ANPP: furto (artigo 155) e furto qualificado (artigo 155 §§ 4º, 5º, e 6º); dano qualificado; apropriação indébita (artigo 168) e apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A); receptação (artigo 180) etc.

Neste sentido, urge destacar que o ANPP sofre vedação no que tange às infrações penais com violência ou grave ameaça contra a pessoa. Comungamos do entendimento de que a violência ou grave ameaça que impede a celebração do ANPP é a intencional, e não a involuntária (culposa). No mesmo sentido, encontramos o Enunciado nº 23 do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG), in verbis:

É cabível o acordo de não persecução penal nos crimes culposos com resultado violento, uma vez que nos delitos desta natureza a conduta consiste na violação de um dever de cuidado objetivo por negligência, imperícia ou imprudência, cujo resultado é involuntário, não desejado e nem aceito pela agente, apesar de previsível.

2) Notificar e Ouvir a vítima: fase de pré-celebração do ANPP
É fundamental a escuta da vítima previamente ao ANPP para compreender a extensão dos danos sofridos — sejam materiais, sejam morais. Para tanto, a vítima deve ser notificada quanto à possibilidade de sua participação nas tratativas do acordo, o que garante, ademais, a transparência da negociação [8]. A oitiva inicial da vítima deve se dar de forma separada do acusado, ainda que posteriormente possa também estar presente na celebração do acordo. Neste sentido:

Parece fortemente recomendável ouvir a vítima previamente às tratativas. Afinal, (…), o acordo de não persecução penal possui objetividade negocial híbrida ou mista (protege tanto a vítima quanto a sociedade, por mesclar características da composição civil dos danos e da transação penal), o que confere grande legitimidade ao instrumento consensual. Portanto, para não faltar à sistemática do acordo a sua objetividade negocial híbrida e a legitimidade desejadas, é preciso conferir especial atenção aos interesses da vítima, ouvindo-a previamente à audiência extrajudicial de acordo [9].

Nesta fase, o membro ministerial terá a possibilidade de aferir a extensão do dano e mensurar, tanto quanto possível, o valor de ressarcimento ao dano material e moral. Deve-se garantir o maior ressarcimento possível ao dano causado, no que se incluem os danos materiais, os danos morais etc.

A escuta da vítima não tem por finalidade colher dela sua anuência quanto à celebração do acordo, mas, numa perspectiva de acolhimento e de participação mais efetiva no sistema de justiça criminal. Assim, "a oitiva acima não tem por finalidade colher a aquiescência da vítima sobre a adoção, ou não, de mecanismos consensuais. Em outras palavras, a vítima não possui a prerrogativa de vetar o acordo de não persecução penal" [10].

3) Intimação da homologação (fase pós-celebração)
Nos termos do artigo 28-A, §9º, do CPP, a vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento. Este ato possibilitará que a vítima acompanhe o cumprimento das condições ajustadas entre o Ministério Público e o acusado, dentre as quais, a reparação do dano. Permite-se, assim, que a vítima tome a real percepção dos efeitos do ANPP — mais céleres do que eventuais sanções penais dependentes do tramite regular de uma ação penal.


[1] CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo Penal Integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017, p. 71.

[2] Conforme noticiado no Consultor Jurídico, o exemplo mais recente se refere ao caso do médico Abdelmassih: https://www.conjur.com.br/2021-fev-07/corte-interamericana-julgar-brasil-abdelmassih Acesso em 15/04/2021.

[3] BARROS, Francisco Dirceu. Acordos Criminais. Leme, SP: JH MIzuno, 2020, p. 65.

[4] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao Pacote Anticrime. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020, p. 362

[5] LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei Nº 13.964/19 — artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 231

[6] CAVALCANTE, André Clark Nunes et al. Lei Anticrime Comentada. Leme, SP: Jh Mizuno, 2020, p. 203.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 636

[8] BARROS, Francisco Dirceu. Acordo de não persecução penal: teoria e prática. Leme, SP: JH Mizuno, 2019, p. 36.

[9] MESSIAS, Mauro. Acordo de não persecução penal: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 77.

[10] MESSIAS, Mauro. Acordo de não persecução penal: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 78.

 

Referências bibliográficas
BARROS, Francisco Dirceu. Acordos Criminais. Leme, SP: JH Mizuno, 2020.

Acordo de não persecução penal: teoria e prática. Leme, SP: JH Mizuno, 2019.

CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo Penal Integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017.

CAVALCANTE, André Clark Nunes et al. Lei Anticrime Comentada. Leme, SP: Jh Mizuno, 2020.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único. 8. ed.rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2020.

Pacote Anticrime: Comentários à Lei Nº 13.964/19 — artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2020.

MESSIAS, Mauro. Acordo de não persecução penal: teoria e prática. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao Pacote Anticrime. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020.

Autores

  • é promotor de Justiça do Ministério Público de Pernambuco, mestrando em Criminologia e Justiça Criminal pela Universidade de Edimburgo e em Perícias Forenses pela Universidade de Pernambuco, especialista em Direito do Estado pela Faculdade Estácio do Pará (FAP) e em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professor Especialista I no Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau/Recife)

  • é assistente judicial de Entrância Inicial do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, bacharela em Direito e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia - Fibra.

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