Opinião

Independência funcional e anarquia funcional

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

14 de setembro de 2021, 15h06

No Brasil, até a Constituição de 1967, a atuação do Ministério Público se limitava, em regra, à defesa do interesse público secundário (patrimonial) do Estado, o que resultava na ausência de garantias institucionais como a independência funcional. Com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público Federal assume a roupagem atual de órgão independente, dotado de diversas garantias e prerrogativas na defesa dos interesses da sociedade (interesse público primário), atentando, muitas vezes, contra os anseios (interesse público secundário) do Estado.

Para poder exercer plenamente seu novo papel normativo, uma série de direitos e garantias foram alcançados pelo Ministério Público e por seus integrantes, entre os quais está a independência funcional, que surgiu no Brasil em 1981, com a Lei Complementar n° 40.

Em sede constitucional, a independência funcional dos membros do Ministério Público foi consagrada pela primeira vez na Constituição Federal de 1988. O Ministério Público passa a ser enquadrado como função essencial à Justiça, desvinculado dos três poderes do Estado e dotado de uma série de direitos e garantias para exercer livremente suas atribuições, como os princípios institucionais da unidade, da indivisibilidade e da independência funcional.

Esses princípios devem ser interpretados de maneira harmônica, buscando um atuar institucional norteado pelos princípios da igualdade, da segurança jurídica, da impessoalidade e da economicidade. Ocorre que a interpretação adotada atualmente no Brasil sobre a independência funcional gera, em muitos casos, situações totalmente contraditórias e muitas vezes teratológicas, ferindo a unidade do Ministério Público.

Em outros países, como é o caso de Portugal, Argentina e Peru, a independência funcional do membro do Ministério Público não autoriza, por exemplo, uma atuação institucional que não seja uniforme. O membro do Ministério Público que discorde das diretrizes institucionais fixadas, poderá, de maneira fundamentada, sustentado nos ditames legais postos, deixar de observar a orientação fixada. Busca-se assegurar a unidade institucional.

Deve-se ter em mente que a independência funcional, consistente na liberdade de atuação funcional dos membros do Ministério Público, sem qualquer relação de subordinação hierárquica dentro da instituição ou mesmo em face dos poderes constituídos, devendo o membro se subjugar apenas aos ditames da Constituição e da lei, não deve se confundir com a ideia de "anarquia funcional".

Os membros do Ministério Público, enquanto agentes políticos, exercem parcela da soberania do Estado e possuem, como atribuição precípua, a materialização dos interesses e anseios da sociedade. Ou seja, os membros do Ministério Público não devem se pautar pela defesa de convicções e interesses pessoais, sejam eles de qual natureza forem, devem atuar na defesa e proteção dos interesses que transcendam a individualidade. Outrossim, a atuação ministerial não pode ocorrer de maneira contraditória, sob pena de se violar o princípio da unidade institucional. Evita-se, por meio desse entendimento, situações teratológicas quando, em um mesmo caso, o Ministério Público atua de maneira contraditória em razão da concepção individual dos membros.

Ocorre que muitos membros do Ministério Público interpretam a garantia da independência funcional como a "liberdade total" de atuação, muitas vezes focada em convicções ideológicas pessoais, que acabam afrontando com atuações da própria instituição. A independência funcional não é um escudo protetivo adquirido pelo membro do Ministério Público, ao ingressar na instituição, para "fazer o que bem entender". Essa interpretação, além de ferir muitas vezes o princípio da isonomia (tratamento diferente de situações idênticas), atenta contra o papel constitucional do Ministério Público de guardião da sociedade e gera, em verdade, um contexto de "anarquia funcional", não no sentido clássico do movimento anárquico de ausência de hierarquia, mas no sentido popular de ausência da lei e da ordem.

A independência funcional deve se pautar pelas ideias de unidade institucional e proteção do interesse público primário, o que não significa "liberdade total" (ausência da parâmetros uniformes de atuação). À magistratura, por exemplo, que também possui a garantia da independência funcional, são estabelecidos parâmetros legais e normativos de atuação, buscando a uniformidade, como é o caso dos entendimentos fixados em súmula vinculante e a previsão normativa da força obrigatória dos precedentes (artigo 927 do Código de Processo Civil ou CPC), que impede a "liberdade total" de decisão e fixa parâmetros objetivos para uma atuação uniforme.

O Ministério Público não é um conjunto de vários Ministérios Públicos, materializados na figura dos membros. Além disso, pouco importa para a atuação funcional de um membro ministerial suas convicções ideológicas, pessoais, políticas etc., o que interesse são os anseios da sociedade, o interesse público primário. O membro do Ministério Público quando atua não deve se caracterizar como o promotor ou procurador A ou B, mas como a instituição Ministério Público.

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    é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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