Público & Pragmático

Reforma administrativa: o potencial da inovação tecnológica

Autor

  • Sílvia H. Johonsom di Salvo

    é advogada em São Paulo doutora e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo especialista em Business Data Analytics pela Universidade de Cambridge e especialista em Mediação pela Universidade de Harvard.

12 de setembro de 2021, 8h00

A reforma administrativa no Brasil ganhou novo capítulo. No início do mês de setembro, o relator da PEC 32/2020 apresentou texto substitutivo, que seguirá para votação da comissão especial ainda neste mesmo mês [1].

O relator acolheu totalmente sete e parcialmente 20 das 45 emendas apresentadas à proposta, entendendo ter amenizado a proposta inicial que, segundo ele, faria com que a Administração Pública começasse do zero e com que os servidores públicos atuais tivessem "o mesmo destino dos dinossauros" [2]. Embora o anunciado esforço de diversificação da proposta, fato é que as pautas da reforma administrativa ainda tendem a reciclar temas que reportam-se quase que exclusivamente à figura do servidor público e seu regime jurídico-administrativo.

É própria do discurso político a relação umbilical entre Administração Pública e servidor público. Ocorre que, qualquer reforma administrativa que almeje seguir coerente com a realidade do Estado pós-moderno, precisa deixar de lado a tentativa de se tirar poeira de temas de difícil arranjo institucional e legal e voltar suas atenções para o que efetivamente é da ordem do dia na gestão da Administração Pública [3]. Dentro desse contexto se insere a transformação digital do Estado, que tem se tornado um eixo central da política de reforma do Estado ao redor do mundo, seja pelo prisma da digitalização da oferta de serviços públicos, uma relação exógena, de administração-administrado, seja pelo prisma da digitalização dos sistemas informacionais do Estado, uma relação endógena, de administração-administração.

Na exposição inicial de motivos da vigente proposta de reforma administrativa, estavam enumerados quatro princípios vetores para o serviço público no país. Os primeiros dois referiam-se a um aspecto subjetivo de propósito para a reforma: "foco em servir" e "valorização das pessoas" privilegiam administrados e servidores no que esperam e no que deles se espera, respectivamente. Os últimos dois referiam-se ao modo de operação da Administração Pública: "agilidade e inovação" e "eficiência e racionalidade". A inovação era descrita como marca de uma nova forma de se desempenhar a burocracia estatal, uma possibilidade de se aprimorar a prestação de serviços públicos. No texto inicial da PEC 32/2020, havia a inclusão da "inovação" como princípio da Administração Pública no caput do artigo 37 da Constituição Federal: "O estabelecimento expresso da inovação como princípio constitucional da Administração servirá como símbolo de uma nova era do Estado brasileiro, deixando para trás a mera conservação burocrática, que, desconectada dos tempos atuais, tem se revelado ineficiente para atender aos anseios do povo brasileiro" [4].

Esse paradigma, porém, foi perdendo força; em junho deste ano, a Emenda Supressiva nº 1, oriunda da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), excluiu a "inovação" do rol de novos princípios constitucionais da Administração Pública.

No atual estado da reforma administrativa, o tema da inovação tecnológica foi reduzido à obrigatoriedade da adoção de plataforma eletrônica para serviços públicos, que permita: "a) a automação de procedimentos executados pelos órgãos e entidades integrantes de sua estrutura; b) o acesso dos cidadãos aos serviços que lhes sejam prestados e à avaliação da respectiva qualidade; c) o reforço e o estímulo à transparência das informações sobre a gestão de recursos públicos" [5].

Do texto denota-se que os propósitos de uma plataforma digital se reportam à automação de atividades procedimentais nas repartições públicas, para garantir o acesso e feedback dos administrados sobre serviços públicos que eventualmente sejam prestados pela via eletrônica e para controle orçamentário.

Não diz necessariamente respeito à inovação tecnológica na gestão pública ou mesmo à conversão da oferta de serviços públicos para o digital, marcadores que efetivamente alteram as feições da Administração Pública no contexto de uma transformação digital. O uso da tecnologia da informação na Administração Pública transcende a disponibilização de informação aos cidadãos para simplificar os processos (em sentido lato) administrativos e serviços públicos. Vai-se além: a tecnologia permite que os administrados realizem atos administrativos e usufruam de serviços públicos diretamente online. O estabelecimento de padrões técnicos e infraestruturas comuns pode ainda abrir caminho para mais eficiência dentro da Administração, com a redução de sistemas redundantes e a diminuição das barreiras legais e tecnológicas para a cooperação entre as estruturas de organização do Estado. Tais mudanças apresentam grandes oportunidades de crescimento econômico, produtividade, inovação e outros aspectos da formulação de políticas públicas.

Era necessário ir além do que hoje se tem como princípio  não mais constitucional, porém  programático da inovação na Administração Pública. Como princípios para o sucesso da estruturação digital do Estado, conta-se com o referencial fornecido pelo Relatório OCDE The e-Government Imperative [6]:

Coordenar recursos e responsabilidades dentro da organização;

Desenvolver uma visão comum e definir objetivos (e-agenda);

Desenvolver a capacidade de persuadir as pessoas a essa visão, a fim de convencer os entusiastas e envolver os céticos;

 Desenvolver uma mentalidade orientada e focada no usuário;

 Garantir que a liderança possa ser reconhecida e incentivada onde quer que seja encontrada na organização;

 Sensibilizar e desenvolver as competências dos colaboradores, incentivando soluções inovadoras ao nível organizacional problemas;

 Avaliar e desenvolver a capacidade de fornecer serviços eletrônicos, conduzindo as pessoas através do difícil processo de mudança, garantir o comprometimento da equipe ao longo do caminho e gerenciar seu programa de trabalho;

Garantir o desenvolvimento tecnológico dentro da organização e certificar-se de que o pessoal pode se beneficiar totalmente com a aplicação desenvolvida;

Reconhecer o uso pleno das tecnologias, mas não buscar soluções tecnológicas pelo fim em si mesmas.

Assim, no contexto da reforma administrativa atual, destacam-se dois institutos cujo potencial poderia ser melhor explorado, na finalidade de se trazer a Administração Pública brasileira aos padrões do Estado pós-moderno.

O primeiro deles é o governo digital, a digitalização dos serviços públicos na esfera digital, regido pela Lei federal nº 14.129/2021. Ainda que a passos erráticos, o governo digital tem se consolidado como estratégia de aprimoramento digital institucionalizado, auferindo, inclusive, resultados financeiramente compensadores para o governo federal. Dados obtidos no gov.br dão conta de que a digitalização de serviços públicos federais representou uma economia anual de R$ 3,1 bilhões aos cofres públicos [7].

Mas não é apenas sob o aspecto orçamentário que o governo digital apresenta vantagens, sendo que a racionalização de recursos humanos também é aparente, a partir da migração de tarefas para o meio digital. Por exemplo: na digitalização da emissão do Certificado Internacional de Vacinação e Profilaxia, o que antes demandava o trabalho de 950 funcionários, hoje é desempenhado por 258 servidores públicos, sendo que o remanescente foi alocado para outras áreas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a fim de cumprir com tarefas de maior complexidade. Tendo-se por parâmetro a quão demandada foi a atuação da agência na pandemia da Covid-19, a disponibilidade de quase 700 servidores pela digitalização de um único serviço certamente teve impacto absolutamente positivo. Dessa forma, circunscrito à esfera federal, o governo digital poderia ser nacionalizado no âmbito da reforma administrativa, o que daria, ainda, oportunidade à discussão do aprimoramento do governo digital [8].

O segundo instituto que poderia ser aperfeiçoado na reforma administrativa é a participação dos particulares na inovação tecnológica do Estado, notadamente na seara das contratações públicas.

Sob o panorama da era pós-moderna, a tecnologia e sua interação com o cotidiano vem, paulatinamente, mudando a forma como as informações são coletadas, organizadas, processadas e armazenadas. Dados que individualmente não tem significado, agora incluindo-se dados biométricos e genéticos, são extraídos e manipulados para criar perfis e categorias de risco em um sistema de rede cujas classificações intencionam formular e gerenciar políticas públicas. Mas o sucesso da inovação digital do Estado depende da criação de ferramentas que permitam a abordagem intersetorial do governo eletrônico, sem descuidar dos espaços de transformação política, seja pela cocriação das normas, seja pela garantia dos direitos públicos subjetivos.

Os governos que caminham para transformação digital levam em consideração as manifestações modernas das relações jurídicas, nomeadamente a multiplicidade de instrumentos não vinculativos, iniciativas institucionais, ou mesmo conferências ou fóruns envolvendo os vários atores públicos ou privados da sociedade nacional e internacional, como parte da famosa abordagem de processo criativo por múltiplas partes interessadas. Como resultado, os atores privados, junto com outros atores da estrutura organizacional do Estado, participam ativamente na definição dos princípios aplicáveis à digitalização do Estado, a fim de que sejam respeitados os compromissos constitucionais.

Notadamente pelas contratações públicas, a contratação de soluções inovadoras pelo Estado tem como um de seus propósitos a resolução de demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia. Na teoria, trata-se de uma forma coerente de se atingir a abordagem intersetorial e a participação dos atores privados no desenvolvimento de tecnologias para resolver demandas de natureza pública, para o bom desempenho da Administração Pública, tanto nas suas relações endógenas, quanto exógenas.

Esse instrumento se encontra positivado no Capítulo VI da Lei Complementar nº 182/2021, também conhecida como a Lei das Startups. Um dos critérios para julgamento das propostas é justamente "o potencial de resolução do problema pela solução proposta e, se for o caso, da provável economia para a administração pública" [9]. Trata-se de um novo desenho aos limites entre Administração Pública e administrados; segundo a OCDE [10], os governos mais inovadores são aqueles que desenvolvem um relacionamento ativo e participativo com os cidadãos, os quais, por seu turno, colaboram pelo seu engajamento nas definições de políticas públicas e na prestação de serviços públicos. Em última análise, a nova forma de gestão pública reconhece que os particulares são um componente crítico para políticas e serviços públicos, não sendo meros destinatários, mas, sim, atores cuja expertise melhora a formulação e a oferta dos serviços públicos, fazendo-os mais eficientes e efetivos.

As contratações públicas de inovação se adequam perfeitamente aos princípios vetores da reforma administrativa do Estado, porém esse instrumento jurídico não encontra eco na arena pública do debate sobre a reforma administrativa.

Retroceder para reavaliar os pilares sobre os quais se sustenta a reforma administrativa, tal como na exposição de motivos inicial da PEC 32/2020, é necessário para que não se percam oportunidades de se ter a inovação como aliada no processo de construção de uma Administração Pública moderna, eficiente e responsiva. Façamos votos para que a votação da comissão especial neste mês de setembro reflita essas premissas.


[2] Idem.

[3] OLIVEIRA, Gustavo Henrique Justino de; ACCIOLY, Wilson. Reforma administrativa e estabilidade no serviço público: o contrato vitalício. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-ago-15/publico-pragmatico-reforma-administrativa-estabilidade-servico-publico Último acesso em 8 de setembro de 2021.

[5] Proposta de inciso XXIV ao artigo 37 da Constituição Federal.

[6] OCDE. E-Government Flagship Report "The E-Government Imperative". GOV/PUMA (2003)6/ANN. Abril, 2003. Disponível em www.oecd.org/officialdocuments. Último acesso em 8 de setembro de 2021. Tradução livre.

[7] Disponível em https://www.gov.br/governodigital/pt-br. Último acesso em 8 de setembro de 2021.

[8] Quanto às ressalvas ao desenvolvimento do Governo Digital, confira-se SALVO, Sílvia H. Johonsom di. Governo digital: caminhar de mãos dadas rumo à transformação. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-mai-30/publico-pragmatico-governo-digital-caminhar-maos-dadas-rumo-transformacao Último acesso em 8 de setembro de 2021.

[9] Artigo 13, § 4º, inciso I da Lei Complementar nº 182/2021.

[10] OCDE. Embracing Innovation in Government: Global Trends. Fevereiro, 2017. Disponível em https://www.oecd.org/gov/innovative-government/embracing-innovation-in-government.pdf. Último acesso em 8 de setembro de 2021.

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    é advogada em São Paulo, doutoranda e mestre em Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista em Business Data Analytics pela Universidade de Cambridge e especialista em Mediação pela Universidade de Harvard.

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