Opinião

Moderação nas redes sociais e a Medida Provisória nº 1.068

Autores

  • Martha Leal

    é advogada especialista em proteção de dados pós-graduada em Direito Digital pela Fundação Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul mestre em Direito e Negócios Internacionais pela Universidad Internacional Iberoamericana Europea del Atlântico e pela Universidad Unini México pós-graduanda em Direito Digital pela Universidade de Brasília—IDP data protection officer ECPB pela Maastricht University certificada como data protection officer pela Exin e pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e presidente da Comissão de Comunicação Institucional do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD).

  • Felipe Palhares

    é sócio das áreas de Proteção de Dados e Cybersecurity e de Tecnologia e Negócios Digitais do BMA Advogados.

12 de setembro de 2021, 6h04

Às vésperas do dia 7 de setembro, feriado nacional em razão do Dia da Independência, o presidente da República novamente surpreendeu a nação com a edição da Medida Provisória nº 1.068/2021 [1], que altera o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) [2] e a Lei de Direitos Autorais (Lei nº. 9.610/1998) [3].

Sob a argumentação de combate à remoção arbitrária de contas, perfis e conteúdo das redes sociais por parte das empresas provedoras de aplicações de internet, o referido instrumento legal [4] traz mudanças significativas, em especial ao Marco Civil da Internet [5], entre elas a criação de novas definições ao seu artigo 5º.

Com a nova redação conferida pela MP [6], estabelece-se a definição de redes sociais, assim entendidas como as aplicações de internet voltadas para o compartilhamento de opiniões e informações pelos usuários, bem como a definição de ação de moderação por parte dos provedores constituída na suspensão, exclusão ou bloqueio da propagação do conteúdo gerado pelo usuário e demais ações de cancelamento ou suspensão de conta de usuários de redes sociais.

O mencionado instrumento legal [7] também cria um artigo 8º-A no Marco Civil da Internet, estipulando diversos direitos e garantias dos usuários das redes, inclusive a serem exercidos na hipótese de indevida moderação de conteúdo pelos provedores, tais como o restabelecimento da conta, do perfil ou do próprio conteúdo moderado e a vedação da exclusão, cancelamento ou suspensão da conta ou perfil do usuário, excetuando-se os casos em que se configurarem as práticas discriminadas como "justa causa", acrescidas ao MCI em seus artigos 8º-B e 8º-C.

Importante destacar que o rol taxativo de condutas descritivas elencadas nos respectivos artigos é basicamente aquele que constitui ilícitos penais mais severos, não contemplando como conteúdos que se enquadram na categoria de "justa causa", temas de grande relevância e sensibilidade, como a desinformação e os delitos contra a honra, a título exemplificativo.

Dessa feita, pela interpretação literal da Medida Provisória 1.068 [8], qualquer outra hipótese que não uma daquelas previstas nos artigos 8º-B e 8º-C não seria passível de moderação de conteúdo por parte dos provedores de redes sociais, ainda que tais condutas possam ser vedadas por seus próprios termos de uso.

Ao impedir que as redes sociais tenham autonomia para a remoção ou suspensão de conteúdo, de acordo com regras definidas em seus termos de uso, infringe-se o princípio constitucional da livre iniciativa, haja vista que a moderação de conteúdo é realizada em razão de um contrato firmado entre usuários e empresas privadas, que estabelece as regras do jogo de como o usuário pode utilizar a plataforma e quais tipos de conteúdo podem nela ser postados. Vale lembrar que as empresas detêm liberdade para agir de forma a não comprometer o seu modelo de negócios, o que naturalmente pressupõe a manutenção de um ambiente virtual atrativo e sadio aos usuários.

Outro aspecto a ser levantado contra a MP 1.068/2021 [9] reside na provável violação do princípio da legalidade, consagrado na Constituição Federal [10], em seu artigo 37, caput, considerando que, ao restringir a moderação de conteúdo pelos provedores estritamente às hipóteses taxativas que foram arbitrariamente identificadas como "justa causa", acaba-se por subverter a lógica do artigo 19 do próprio Marco Civil da Internet [11], que prevê a responsabilização das plataformas apenas nos casos de descumprimento de ordem judicial que determinem a exclusão do conteúdo ilícito. A manutenção desses dois preceitos aparentemente distintos na mesma norma legal é no mínimo curiosa e deve ser alvo de acirradas discussões promovidas entre redes sociais e usuários que se sintam afetados por eventual moderação de conteúdo.

Sem sombra de dúvida, o assunto é de extrema relevância e não se pretende neste curto espaço exaurir todas as questões de ordem técnica relacionadas à Medida Provisória 1.068/2021 [12] e suas possíveis consequências práticas.

Tão pouco deixamos de reconhecer a relevância e complexidade do tema em questão, o qual merece ser aprofundado através de um amplo debate social envolvendo o uso transparente e ético dos poderes exercidos pelas plataformas, razão pela qual impõe-se concluir pela inadequação da medida provisória, que pela sua própria natureza exige o preenchimento dos requisitos do artigo 62 da Constituição Federal [13].

Conforme prevê o referido dispositivo constitucional, para a edição de medidas provisórias é imprescindível que se comprove a urgência e relevância para a sua adoção. A despeito da inconteste valoração de relevância ao tema, seja pela inegável influência que as redes sociais desempenham em nossas vidas, seja pelo impacto na democracia decorrente de possíveis violações de direitos fundamentais, não parece ser possível, no caso concreto, caracterizar a urgência exigida para a edição da medida provisória.

Com efeito, o Marco Civil da Internet está em vigor desde 2014 e o atual presidente da República tomou posse no dia 1º/1/2019. Se realmente houvesse urgência na alteração ao Marco Civil da Internet a justificar a edição de uma medida provisória, ela já teria sido editada há muito tempo.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. Presidência da República. Medida provisória 1068 de 06 de setembro de 2021. Altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, para dispor sobre o uso de redes sociais. Brasília: Presidência da República, 2021. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/1276592025/medida-provisoria-1068-21. Acesso em: 09 set. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Lei 12.965 de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília: Presidência da República, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9610.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

 

[1] BRASIL. Presidência da República. Medida provisória 1068 de 06 de setembro de 2021. Altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, para dispor sobre o uso de redes sociais. Brasília, 2021. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/1276592025/medida-provisoria-1068-21. Acesso em: 09 set. 2021.

[2] BRASIL. Presidência da República. Lei 12.965 de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

[3] BRASIL. Presidência da República. Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Brasília, 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9610.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

[4] BRASIL, op. cit., 2021.

[5] BRASIL, op. cit., 2014.

[6] BRASIL, op. cit., 2021.

[7] BRASIL, op. cit., 2021.

[8] BRASIL. Presidência da República. Medida provisória 1068 de 06 de setembro de 2021. Altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, para dispor sobre o uso de redes sociais. Brasília, 2021. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/1276592025/medida-provisoria-1068-21. Acesso em: 09 set. 2021.

[9] Ibidem.

[10] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

[11] BRASIL. Presidência da República. Lei 12.965 de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília, 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

[12] BRASIL. Presidência da República. Medida provisória 1068 de 06 de setembro de 2021. Altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, e a Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, para dispor sobre o uso de redes sociais. Brasília, 2021. Disponível em: https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/1276592025/medida-provisoria-1068-21. Acesso em: 09 set. 2021.

[13] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 09 set. 2021.

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    é advogada especialista em Privacidade e Proteção de Dados, Data Protection Expert pela Universidade de Maastricht, fellow do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD) e sócia da JP Leal Advogados.

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    é sócio da área de Proteção de Dados, Tecnologia e Negócios Digitais do BMA Advogados.

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