Observatório constitucional

O compromisso constitucional com o supermajoritarismo

Autor

  • Paula Pessoa Pereira

    é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) professora adjunta da Universidade de Brasília (UnB) e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.

11 de setembro de 2021, 10h22

Na coluna antecedente, discutimos o quórum necessário para o emprego da técnica de revogação de precedentes pelo Supremo Tribunal Federal, partindo de três premissas: as razões normativas que justificam a escolha de determinada regra de votação (maioria simples ou relativa, absoluta e qualificada), os objetivos e valores tutelados pelas regras de decisão e o papel dos precedentes judiciais no ordenamento jurídico. Na oportunidade, defendemos a proposta da regra supermajoritária para a revogação de precedente, por ser a resposta mais adequada às características, propriedades e fins do espaço decisório jurisdicional e, particularmente, por aderência ao compromisso constitucional com o supermajoritarismo.

Voltemos, pois, ao compromisso constitucional com o supermajoritarismo, discussão desta coluna, como prometido.

A constituição escrita, tal como adotada nas democracias constitucionais contemporâneas, tem como uma de suas propriedades procedimentais mais específicas, que a distingue das demais espécies legislativas voltadas para o funcionamento ordinário da democracia, a rigidez no seu desenho institucional, traduzida no processo decisório qualificado e reforçado para sua modificação.

As constituições precisam ser alteradas ao longo do tempo para ajustar as disposições inadequadas, para responder às novas necessidades sociais e políticas de determinada sociedade, bem como para fortalecer as instituições e processos decisórios democráticos. Todavia, a constituição precisa igualmente ser protegida das decisões político-partidárias formadas em conjunturas majoritárias ocasionais, motivo pelo qual a possibilidade de sua modificação deve se afastar das formas de criação das legislações infraconstitucionais. Nesse cenário, o processo formal de emenda à constituição, por iniciativa e atuação dos atores político-institucionais, com critérios específicos, é elemento quase universal nas constituições estabelecidas nas democracias contemporâneas.1

Essa estrutura do quadro constitucional, configurada na rigidez procedimental e qualificação da deliberação, revela o compromisso constitucional com o supermajoritarismo nos mecanismos de tomada de decisão coletiva.2 Compromisso esse que, para além da tutela dos direitos fundamentais, justifica-se na garantia do pluralismo jurídico e político e na necessidade da busca pelo consenso, decorrente de uma deliberação representativa, para as decisões que envolvem questões estruturantes do Estado. Ademais, esse compromisso se fundamenta na premissa a favor do status quo (que traduz o respeito à soberania popular edificante da decisão do passado) e da estabilidade do sistema político, em vez da rápida e simples modificação procedimental pela maioria vencedora na eleição seguinte.

Em essência, a adoção de regras de supermaioria (qualificada) justifica-se pelas seguintes razões normativas: i) importância da matéria da qual deriva a necessidade de se chegar a acordos mais amplos entre as distintas forças políticas com representação parlamentar; ii) necessidade de tutela das minorias políticas e sua liberdade positiva de participação; iii) consideração do status quo como regra de preferência do sistema; iv) promoção da estrutura da separação dos poderes, em decorrência da amplitude dos efeitos da decisão tomada pelo órgão decisor; v) tutela da estabilidade e vi) tutela da continuidade da ordem jurídica sem modificações bruscas ou irrefletidas.

Mas por que falamos de compromisso constitucional com o supermajoritarismo se, em uma análise descritiva dos processos decisórios previstos na constituição, infere-se, em termos quantitativos, a adoção da regra majoritária?

Com feito, nas democracias constitucionais, de maneira geral, a regra que conforma o processo deliberativo legislativo é a da maioria simples ou absoluta. Especificamente no sistema constitucional brasileiro, encontra-se a regra geral de maioria de votos adotada pelo Congresso Nacional, prevista no art. 47, para as deliberações de cada Casa e de suas comissões, desde que presente a maioria absoluta de seus membros, salvo previsão expressa que indique outra maioria.

Da mesma forma, verifica-se a adoção da regra de maioria absoluta para as demais tomadas de decisão políticas, a saber: a perda do mandato decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal (art. 55, inciso VI, § 2º, nos casos dos incisos I, II e VI, CRFB); a aprovação de reuniões parlamentares, convocadas pelo Presidente da República, pelos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal ou a requerimento da maioria dos membros de ambas as Casas, em caso de urgência ou interesse público relevante (art. 57, § 6º, inciso II, CRFB); a aprovação das leis complementares, em decorrência da relevância das matérias destinadas a essa espécie legal (art. 69 CRFB); a anulação do veto presidencial a projeto de lei (art. 66, §4º, CRFB); e a reapresentação na mesma sessão legislativa de novo projeto de lei rejeitado (art. 67 CRFB).

No contexto do Poder Judiciário, a regra de maioria absoluta é adotada no processo de nomeação de ministro para o Supremo Tribunal Federal, depois de aprovada escolha pela maioria absoluta do Senado Federal (parágrafo único do art. 101, CRFB) e para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público (art. 97 CRFB).

Quanto ao sistema eleitoral, nas votações para a escolha dos representantes a regra predominante é a majoritária (art. 77 CRFB). A regra majoritária também informa a eleição dos membros para o Senado Federal (art. 46 CRFB). De outro lado, para a eleição para membros da Câmara dos Deputados, fugindo da lógica majoritária, o sistema adotado é o proporcional (art. 45 CRFB), que equivale a um mecanismo coletivo de regra supermajoritária implícita. O caráter supermajoritário deste sistema é percebido na sua forma horizontal, ao proporcionar um processo eleitoral mais responsivo às minorias políticas.

Todavia, embora em termos quantitativos a leitura descritiva dessas previsões nos induza à conclusão da preferência constitucional pelo majoritarismo, o olhar mais acurado percebe a alocação da regra supermajoritária para as arenas decisórias mais estruturantes da vida constitucional. A saber: a instauração de processo de impeachment contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado (art. 51, inciso I, CRFB); a condenação no processo de impeachment (com o parágrafo único do art. 52 da CRFB); a ratificação de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos (art. 5º, §3º, CRFB); a emenda à Constituição (art. 60 CRFB); a resolução definitiva sobre sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional (trata-se de regra implícita, em razão da necessidade da forma do bicameralismo em torno do processo) e o bicameralismo no processo legislativo.

No âmbito do Poder Judiciário, a decisão de maioria qualificada fora alocada para os espaços decisórios de aprovação de súmula vinculante (art. 103-A CRFB) e de recusa de repercussão geral de questão constitucional arguida em recurso extraordinário (art. 102 CRFB).

Nesse particular, faz-se necessário esclarecer que as regras de supermaioria podem assumir duas feições, uma explícita e outra implícita. A feição explícita é de fácil constatação porque consiste na regra de votação para um contexto decisório (assembleia legislativa, por exemplo) em que se exige mais do que uma maioria simples ou estreita para se aprovar a decisão; uma regra de votação de maioria de dois terços, três quintos ou três quartos, como identificado nos quadros decisórios referidos acima.

Por sua vez, a feição da regra de supermaioria implícita é mais difícil de se identificar, porquanto sua configuração se dá no contexto decisório em que para a tomada da decisão se exige a somatória de dois órgãos colegiados que adotam, cada qual em seu procedimento interno, a votação por uma maioria simples.

O exemplo clássico de regra supermajoritária implícita adotado na teoria política e na literatura constitucional é o bicameralismo.3 O fundamento para essa categoria reside no fato de o bicameralismo exigir um arranjo legislativo entre duas casas estruturadas diversamente, na sua composição e finalidade precípua (como a Câmara, composta por representantes do povo e o Senado, composto por representantes dos estados), para o processo de votação de qualquer decisão. O bicameralismo, portanto, enquanto regra de decisão do processo legislativo, assegura-lhe o caráter supermajoritário e não o majoritário simples, como amplamente compreendido, em decorrência dos procedimentos decisórios internos de cada casa.

A transferência das regras de votação por maioria simples do âmbito das eleições e dos referendos para o campo das assembleias legislativas revela uma tomada de decisão coletiva mais complexa do que uma primeira análise revelaria. Isso porque se deve levar em conta que o processo legislativo bicameral, levado a cabo em dois órgãos políticos de representatividade distinta, apenas se finaliza com a participação de outro poder do Estado, o Executivo, por meio do exercício do poder de veto.

Desse modo, o argumento principal para classificar o bicameralismo como mecanismo decisório supermajoritário consiste no fato de que o resultado do processo legislativo de criação de leis ordinárias envolve a relação entre dois poderes do Estado, o Legislativo, por meio de dois órgãos diversamente estruturados, e o Executivo com o poder de veto, cujo exercício enseja uma retomada do diálogo com o próprio Legislativo, que deve confirmá-lo ou rejeitá-lo. Relação procedimental que promove a estrutura da separação de poderes.

Da análise descritiva dessa arquitetura constitucional, portanto, é possível refutar a sabedoria convencional da preferência da democracia constitucional pelo majoritarismo, uma vez que os processos decisórios mais importantes do governo e da própria ordem jurídico-estatal, desde a elaboração de tratados até a legislação, são supermajoritários, fatos que atestam o compromisso do constitucionalismo com a governança através de regras de supermaioria.4

Nessa perspectiva, a análise descritiva dos processos decisórios formais da constituição brasileira oferece um argumento adequado para a compreensão do significado do compromisso constitucional com o supermajoritarismo. Ainda, é possível concluir um argumento de natureza normativa das disposições constitucionais supermajoritária, voltado para o incremento qualitativo da deliberação pública nas arenas decisórias como premissa importante para o aperfeiçoamento das decisões constitucionais e do ideal democrático, abordagem que converge com a ideia em si da constituição enquanto lei fundamental da ordem jurídica.

Por essas razões, a teoria do supermajoritarismo constitucional fornece importante insight quanto à necessidade de se discutir a regra de julgamento afirmada para a jurisdição constitucional, a fim de imprimir simetria procedimental aos processos decisórios constitucionais e, assim, afastar os riscos de substituição no sistema, a exemplo da reflexão inaugurada na coluna precedente.


1 LIJPHART. Arend. Patterns of democracy: government forms and performance in thirty-six countries. 2ª ed. New Haven: Yale University Press, 2012.

2 PEREIRA, Paula Pessoa. Supermaioria como regra de decisão na jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal. Tese de doutorado. Universidade Federal do Paraná, 2017.

3 PASQUINO, Pasquale. Majority rules in constitutional democracies: some remarks about theory and practice. In: ELSTER, Jon; NOVAK, Stephanie (Ed.). Majority decisions: principles and practice. New York: Cambridge University Press, 2014. p. 219-235.

4 MCGINNIS, John O.; RAPPAPORT, Michael B. Our supermajoritarian Constitution. Texas Law Review, vol. 80, n.º 2, march 2002. p. 703-806.

Autores

  • é doutora e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, professora na pós-graduação do IDP e do Mackenzie/Brasília, pesquisadora do Núcleo de Direito Processual Comparado do PPGD-UFPR e assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal.

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