Diário de Classe

Hermenêutica filosófica e Direito: o diálogo entre Gadamer e Dworkin

Autor

  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

11 de setembro de 2021, 8h00

Em sua obra "Verdade e Método", Hans-Georg Gadamer explora o problema da historicidade do compreender com enfoque nas ciências humanas. Nesse sentido, não se trata de uma filosofia hermenêutica, como no caso de Martin Heidegger, mas de uma hermenêutica filosófica, o que não é mero jogo de palavras. De maneira sintética, pode-se dizer que, enquanto em Heidegger o problema da compreensão do Dasein estava exclusivamente ligado à questão do ser, em Gadamer, a compreensão foi direcionada ao tratamento de temas como a história e a cultura, o que afasta o caráter "transcendental" da hermenêutica proposta em "Ser e Tempo". As semelhanças e diferenças entre os dois projetos, entretanto, não figuram aqui como problema central. O que se interroga é a possibilidade de apropriação e uso dos conceitos fornecidos pela hermenêutica filosófica em práticas interpretativas como o Direito.

O Direito possui forte ligação com a hermenêutica, pois, como é sabido, a legislação, a jurisprudência, os contratos e demais textos jurídicos requerem interpretação. A hermenêutica, cotidianamente referida como técnica interpretativa, nesse sentido, é associada de inúmeras maneiras à prática jurídica. Entretanto, de acordo com as profundas alterações de significado ocorridas, principalmente a partir dos autores acima referidos, o emprego ordinário do conceito na lida jurídica deve ser observado mais atentamente.

Como mencionado, o problema central em Gadamer é o da compreensão nas ciências humanas. É a partir da análise do fenômeno interpretativo nos casos do Direito e da teologia, em que se manifesta o caráter unitário da compreensão, que o autor pôde expandir essa tese às demais práticas humanas. Assim, cabe notar que a essência da interpretação jurídica e teológica é a aplicação, uma vez que, no que tange ao Direito, o intérprete procura pelo sentido vigente da norma diante do caso concreto e, por parte da teologia, trata-se de compreender um mandamento ético-religioso do anúncio ou profecia diante do contexto presente. A partir da constatação do caráter paradigmático da interpretação jurídica em relação aos demais campos interpretativos, Gadamer afirma: "O modelo da hermenêutica jurídica mostrou-se, pois, efetivamente fecundo. Quando se sabe autorizado a realizar a complementação do direito, dentro da função judicial e frente ao sentido original de um texto legal, o que faz o jurista é exatamente aquilo que ocorre em qualquer tipo de compreensão. A velha unidade das disciplinas hermenêuticas recupera seu direito se se reconhece a consciência da história efeitual em toda prática hermenêutica, tanto na do filólogo quanto na do historiador" [1]. Se Gadamer utiliza o Direito como exemplo para desenvolver a sua hermenêutica filosófica, a questão a ser enfrentada, por outro lado, é a seguinte: como a hermenêutica filosófica pode contribuir para uma concepção adequada acerca do direito enquanto fenômeno interpretativo?

A compreensão de problemas fundamentais do direito a partir da perspectiva da hermenêutica filosófica tem como expoente brasileiro o professor Lenio Streck. Desde a publicação da obra "Hermenêutica jurídica e(m) crise", pelo menos, o autor desenvolve uma crítica ao senso comum teórico dos juristas que tem por base o giro interpretativo hermenêutico e a consequente rejeição de objetivismos e relativismos simplificadores. O enfoque em questões relevantes e controversas para a teoria do direito a partir da hermenêutica filosófica é propiciado pela afinidade teórica entre Gadamer e Ronald Dworkin, identificada e incorporada pelo professor Streck em sua "Crítica Hermenêutica do Direito".

Em "Verdade e Consenso", por exemplo, Lenio Streck afirma que "tanto em Gadamer como em Dworkin é possível distinguir boas e más decisões (pré-juízos autênticos/legítimos e inautênticos/ilegítimos), o que significa que quaisquer que sejam seus pontos de vista sobre a justiça e o Direito a um tratamento igualitário, os juízes também devem aceitar uma restrição independente e superior que decorre da integridade, nas decisões que proferem" [2]. Na obra "Diálogos com Lenio Streck", o autor comenta que "enquanto múltiplas teorias que pretendem justificar o conhecimento buscam superar o sujeito solipsista, eliminando-o ou substituindo-o por estruturas comunicacionais, redes ou sistemas, e algumas, de forma mais radical, até mesmo por um realismo jurídico voluntarista […], a hermenêutica filosófica de Gadamer e a teoria integrativa de Dworkin, cada uma ao seu modo, procuram controlar esse voluntarismo e essa subjetividade solipsista a partir da força da tradição, do círculo hermenêutico e da incindibilidade entre interpretação e aplicação. Por isso, a postura marcadamente antirrelativista, ponto em comum nesses dois autores, é condição de possibilidade para superação do solipsismo e ponto a partir do qual se pode encontrar sempre decisões íntegras e coerentes em direito" [3].

Com efeito, tal como explorado em diversos textos de Lenio Streck, o filósofo norte-americano Ronald Dworkin recepciona elementos da hermenêutica filosófica de Gadamer. Para expor a sua teoria da interpretação jurídica, Dworkin toma o cuidado de iniciar a discussão em um nível anterior, ou seja, abordando o problema interpretativo de uma maneira abrangente, possibilitando que a interpretação do Direito decorra de uma teoria geral da interpretação. Em "O império do Direito", Dworkin sustenta que a interpretação é um processo construtivo. Isso significa, para o autor, que interpretar é mostrar o objeto interpretado em sua melhor forma. Ou seja, ao interpretar, deve-se conceber o objeto interpretado como correspondendo da melhor maneira possível ao propósito ou valor ao qual se imagina previamente que ele atenda. Os propósitos em questão, todavia, não decorrem da intenção do autor: "A interpretação das obras de arte e das práticas sociais, como demonstrarei, na verdade, se preocupa essencialmente com o propósito, não com a causa. Mas os propósitos que estão em jogo não são (fundamentalmente) os de algum autor, mas os do intérprete" [4].

Interpretações do mesmo texto em períodos históricos distintos, por exemplo, podem chegar a resultados opostos porque os objetivos e definições do que faz uma interpretação ser boa mudam com o passar do tempo. Seja nas ciências humanas ou na arte, os standards normativos que determinam o que conta como critério de sucesso interpretativo para cada prática transformam-se a partir do processo dialético que se dá entre o todo e a parte: cada interpretação individual influencia a pré-compreensão intersubjetiva acerca daquilo que constitui uma boa intepretação em determinada área, assim como é influenciada por essa mesma pré-compreensão intersubjetiva. O exemplo a partir da arte, para Dworkin, é a tese de que a intenção do autor é o que conta como objetivo de descoberta interpretativo é resultado de uma formação histórica e cultural que concebe o valor artístico na intenção do autor, como é o caso do romantismo e a sua obsessão pelo gênio poético e pela originalidade.

Assim como as obras de arte atendem a um valor estético, o Direito, para Dworkin, atende a um valor político. Se, nas disputas entre a crítica literária, em que correntes teóricas distintas disputam entre si sobre qual o verdadeiro propósito da interpretação, algumas insistindo "na importância das consequências sociopolíticas da arte, ou da semântica estruturalista ou desconstrucionista, ou que insistem na narrativa construída entre o autor e o leitor, ou que parecem rejeitar por completo a atividade interpretativa", no direito, por sua vez, "os desacordos entre juristas acerca da melhor interpretação de leis específicas são sintomas de discordâncias ocultas, e em geral não reconhecidas, acerca dessas extensões e refinamentos. Por essa razão, os juristas que discordam acerca da melhor concepção de democracia tenderão a discordar, por exemplo, acerca da melhor interpretação da cláusula de igual proteção ou até do Código Comercial" [5].

Esse nível estruturante da atividade interpretativa é historicamente flutuante e interdependente com relações profundas no nível sociocultural. Nele, a possibilidade de autorreflexão total é improvável, uma vez que não está em questão aquilo que Thomas Nagel chama de "visão de lugar nenhum". O trabalho reconstrutivo e crítico destes standards por parte do intérprete, entretanto, faz-se necessário para que a interpretação, embora influenciada, não seja escrava da história: "Não nego o que é óbvio, isto é, que os intérpretes pensam no âmbito de uma tradição interpretativa à qual não podem escapar totalmente. A situação interpretativa não é um ponto de Arquimedes, nem isso está sugerido na ideia de que a interpretação procura dar ao que é interpretado a melhor imagem possível. Recorro mais uma vez a Gadamer, que acerta em cheio ao apresentar a interpretação como algo que reconhece as imposições da história ao mesmo tempo que luta contra elas" [6].

Desta breve análise realizada acerca da teoria geral da interpretação de Ronald Dworkin, é possível vislumbrar elementos caros à hermenêutica filosófica. Os "propósitos" que situam a interpretação podem ser traduzidos como os preconceitos no sentido que Gadamer atribui a essa palavra, ou seja, vetores que guiam de maneira normativa o olhar do intérprete para os objetivos de sua prática. A afirmação de que "os propósitos que contam não são os do autor, mas os do intérprete", por sua vez, revela que, para Dworkin, assim como para Gadamer, interpretar significa aplicar.

O desenvolvimento dado por Dworkin ao problema jurídico propriamente dito é decorrência dessas premissas gerais acerca da interpretação, sem, contudo, limitar-se a elas. O projeto de Dworkin tem como objetivo preliminar, nesse sentido, mostrar que as discordâncias jurídicas cotidianas sobre qual o verdadeiro sentido da jurisprudência ou lei não são fruto de uma simples divergência sobre "fatos brutos" da história legislativa ou do significado semântico de "cláusulas abertas". As discordâncias jurídicas são decorrentes, fundamentalmente, de desacordos acerca do valor político do direito em um nível interpretativo anterior ao de sua prática cotidiana. Para o autor, a vantagem que a teoria do direito como integridade assume diante de suas rivais (a teoria positivista/convencionalista e realista/pragmática) é, justamente, fruto da concepção política de que um governo que trata seus cidadãos com integridade atende à virtude política soberana, qual seja, a igual consideração e respeito por seus cidadãos.

 


[1] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p. 446.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 687.

[3] STRECK, Lenio. Hermenêutica, jurisdição e decisão: diálogos com Lenio Streck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020, p. 112.

[4] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 63.

[5] DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: justiça e valor. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 203.

[6] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p.74/75.

Autores

  • é advogado, pós-doutorando em Direito Público na Unisinos, doutor e mestre em Filosofia pela PUC-RS, com período de pesquisa (doutorado sanduíche) na Goethe-Universität Frankfurt am Main, e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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