Tribunal do Júri

Ainda sobre o artigo 479 do CPP: fundamental uma alteração legislativa

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

11 de setembro de 2021, 8h00

Em artigo anteriormente veiculado nesta coluna, discutimos a melhor exegese do artigo 479 do Código de Processo Penal (CPP), em especial, divergindo do atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que, em recentes precedentes de ambas as turmas [1], passou a interpretar que o prazo de três dias úteis anterior à data do júri deve ser observado não apenas para a juntada de documentos/objetos, mas igualmente para a ciência da parte adversa. Denunciamos que tal exegese pode gerar violação ao efetivo contraditório e/ou adiamento sistemático das sessões de julgamento, principalmente quando a juntada ocorra perto do termo final do prazo legal, fato que geraria  inevitavelmente  uma cientificação em prazo inferior ao disposto no aludido artigo [2].

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Dessa forma, é inconteste que esse dispositivo necessita sofrer imediata reforma, especialmente quando analisado à luz dos princípios cardeais do contraditório e da plenitude de defesa. Se um dos fundamentos do prazo regressivo previsto no dispositivo em comento é o de evitar a surpresa que poderá surgir caso uma das partes apresente documentos ou objetos novos durante a sessão de julgamento, é indubitável concluir que o diminuto espaço de tempo é insuficiente para que ambas as partes possam conhecer, estudar e refutar documentos e/ou objetos juntados às vésperas do julgamento perante o Tribunal do Júri.

A fixação de um prazo razoável para que as partes possam exercer a acusação e a defesa é uma garantia que transcende os interesses parciais do processo, configurando uma "garantia de legitimidade da jurisdição penal" e de reconhecimento dos ditames convencionais [3]. Imaginar que o acusado foi condenado ou absolvido após o uso de um ou mais documentos juntados e camuflados  quiçá, talvez escondidos a inúmeros outros terabytes, que nenhuma força humana teria a possibilidade de analisar em três  ou talvez menos  dias úteis antes do julgamento, não é o tipo de (in)justiça que devemos compactuar [4].

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Na fase do artigo 479 do CPP, a lei não traz qualquer limitação a respeito do que pode ser juntado aos autos, pois apenas disciplina a obrigação de trazer ao processo tudo aquilo "cujo conteúdo versar sobre a matéria de fato submetida à apreciação e julgamento dos jurados". Com exceção da disciplina das provas ilegais (ilícitas e ilegítimas), não existe no Direito brasileiro um regramento probatório preciso a respeito daquilo que pode ser carreado aos autos, fato que acaba por contribuir para que os juízes atuem com certa parcimônia, admitindo que façam parte do processo uma série de documentos de rarefeita pertinência e elevada persuasão emotiva que nada contribuem para a melhor comprovação e elucidação dos fatos [5].

Não é incomum, por exemplo, a juntada de diversas publicações midiáticas descontextualizadas e cópias integrais de outras investigações criminais em que o acusado possa estar implicado, que passam a ser utilizadas em plenário para sustentar a versão acusatória. De outro giro, por vezes nos deparamos com declarações gravadas em áudio e vídeo, em que informantes, que não foram arrolados para o plenário  e tampouco passaram pelo crivo do contraditório  inovam o conteúdo da prova, construindo uma vertente a respeito dos fatos que não poderá ser explorada perante o conselho de sentença.

O contraditório e a ampla defesa não se resumem ao direito de poder participar do rito processual, mas principalmente de poder fazê-lo de maneira real e efetiva, ou seja, sendo assegurado a cada uma das partes o direito de conhecer todas as provas em tempo razoável para poder contraditá-las e, ainda, produzir provas para refutar seu grau de credibilidade, exercendo efetiva influência na formação da decisão penal [6]. Não é outra, senão, a lição de Maier:

"Tradicionalmente, se ha incluído en el principio de contradicción el derecho de probar y el de controlar la prueba del adversário. Ello no es incorrecto, pues, sobre todo el control de la prueba del adversario, representa una manifestación del contradictorio, a la vez que la facultad otorgada para demostrar los extremos que son esgrimidos para inhibir la imputación de que se es objeto, o aminorar sus consecuencias, es uma manifestación imprescindible de la posibilidad de oponerse a la persecución penal (…)" [7].

Não podemos olvidar que no rito do júri ganha especial dimensão a autodefesa do acusado em plenário, a qual igualmente será objeto de quesitação pelo magistrado togado (CPP, artigo 482, parágrafo único). Dessa forma, não basta que a defesa técnica tenha ciência do que restou juntado pela acusação, sendo de rigor que o próprio acusado tenha a oportunidade de saber o seu conteúdo e se reunir reservadamente com o seu defensor [8], inclusive para fornecer elementos concretos de argumentação sobre a prova. Trata-se de garantia consagrada não apenas na Carta de 1988, mas igualmente na CADH:

"Artigo 8.2 — Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…)
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa".

Ademais, além da oportunidade de conhecer os documentos e objetos juntados aos autos  e, ainda, os eventualmente apresentados em cartório diante da limitada capacidade de armazenamento do sistema de processo eletrônico —, o ordenamento deveria conceder prazo razoável para reação, seja ela na forma de contraprova ou mesmo de impugnação (por exemplo, instauração de incidente de falsidade, arguição de ilicitude da prova etc.) do que restou levado aos autos:

"Não se pode esquecer que a razoabilidade dos prazos (e, se for o caso, a flexibilidade desses prazos) para a prática dos atos processuais é indispensável à concretização do contraditório, por definição, participativo. Isso porque, (…), é necessário que as partes tenham condições objetivas de influir na solução justa do caso penal, através de prazos suficientes para tanto, o que impõe considerações da agência judicial sobre as circunstâncias de cada caso concreto" [9].

Discutindo a importância da fixação de um prazo razoável para que a defesa pudesse conhecer o inteiro teor de um processo, o Supremo Tribunal Federal chegou a decidir que 12 dias não seriam suficientes para tal mister e, diante de um caso complexo e volumoso, anulou o julgamento no qual um acusado teria sido condenado a uma pena de 30 anos de reclusão:

"Habeas corpus. 2  Princípio da ampla defesa. Tratamento isonômico das partes (princípio da paridade de armas). Em observância ao sistema processual penal acusatório instituído pela Constituição Federal de 1988, a aplicação do artigo 456 do CPP deve levar em conta o aspecto formal e material de seu conteúdo normativo, ante a ponderação do caso concreto. 3  O reconhecimento, pelo defensor público nomeado, de que a análise dos autos limitou-se a apenas quatro dos vinte e seis volumes, por impossibilidade física e temporal (12 dias), somado à complexidade da causa, prejudicou a plenitude da defesa ('a', inciso XXXVIII, artigo 5º, da CF/88) do paciente levado ao Tribunal do Júri. (…) 5  Ordem concedida, em parte, para declarar nulo o julgamento do Tribunal do Júri realizado em 12 de abril de 2010. Mantida a custódia do paciente" (HC 108527, Rel. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. em 14/05/2013).

Garantir a real oportunidade de conhecer, acessar e poder reagir aos documentos juntados à fase do artigo 479 do CPP amplia a possibilidade de análise e valoração da prova pelos jurados.

Porém, o vigente e atual prazo legal de três dias úteis antes da data designada para a sessão de julgamento não se mostra suficiente a materializar a aplicação dos princípios do contraditório e da plenitude de defesa no rito do júri. Uma vez que não existem regras objetivas que balizem a admissibilidade da prova considerada lícita e, ponderando o volume quase infinito de informações que podem ser armazenadas em dispositivos móveis carreados aos autos, verifica-se a necessidade atual de uma reforma pontual e imediata no rito do Tribunal do Júri.

Como já anteriormente denunciamos, a atual redação do artigo 479 do CPP cria uma série de dificuldades práticas e beira a inconstitucionalidade, eis que: 1) fixa um prazo de juntada muito próximo ao dia designado para a sessão de julgamento perante o Tribunal do Júri, mostrando-se desarrazoado quando ponderamos a duração média de um processo que envolve a apuração de um crime contra a vida; 2) torna impossível a cientificação da parte contrária com igual prazo de três dias úteis quando a juntada se dá próxima ao termo final; 3) inviabiliza igualmente a intimação eletrônica, salvo se parte contrária voluntariamente se der por ciente acessando o sistema [10]; 4) enseja o adiamento do júri caso observada a nova orientação do Superior Tribunal de Justiça e a cientificação se efetivar em prazo inferior a três dias úteis contados da data do julgamento; 5) acarreta a nulidade do julgamento, quando não acatada a orientação jurisprudencial, mesmo quando a parte tenha realizado a juntada no prazo fixado em lei; 6) propicia a juntada de vasto material que pode não guardar pertinência com o caso, desviando o foco ou camuflando em pastas e arquivos aquilo que verdadeiramente será utilizado em plenário.

Por fim, pontuamos na semana anterior um problema de insuperável dimensão que se avizinha [11]. A partir da vigência da Resolução 408, de 18/8/2021, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)  que dispõe sobre o recebimento, o armazenamento e o acesso a documentos digitais relativos a autos de processos administrativos e judiciais , foi determinado (artigo 3, §3º.) que os "juízes deverão assegurar que os prazos processuais em processos físicos ou eletrônicos que dependam do acesso de documentos ou arquivos digitais não acessíveis em caráter contínuo somente tenham início depois da disponibilização de acesso ou obtenção de cópia à parte". Com isso, uma vez que uma das partes faça a juntada, por exemplo, de uma mídia ou dispositivo externo que não possa ser anexado ao sistema de processo eletrônico, é dever do magistrado cientificar a parte adversa e, ao mesmo tempo, assegurar que os prazos processuais somente tenham início após a disponibilização de acesso ou obtenção de cópia à parte. Dessa forma, observando-se o atual entendimento do STJ, ou seja, que a cientificação da parte contrária deverá ocorrer pelo menos três dias úteis antes do júri, bastará que a juntada se efetive no último dia do prazo legal e isso já será suficiente a criar um incidente passível de adiamento da sessão de julgamento que poderá vir a se repetir a cada nova sessão designada.

A única solução plausível para fazer valer os princípios do contraditório e da plenitude de defesa e, ao mesmo tempo, garantir a escorreita aplicação da Resolução n° 408 do CNJ é a pronta revisão do artigo 479 do CPP, dilatando-se o prazo de juntada para  pelo mesmo  dez dias antes da data designada para o júri. Somente dessa forma, seria possível fazer valer os direitos e garantias de um processo que busca ser democrático.


[1] STJ, 5ª Turma, AgRg no HC 602.291/SC, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em 01/12/2020; STJ, 6ª Turma, AgRg no REsp 1828768/MS, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, j. em 16/06/2020.

[2] Perceba-se que nossa divergência reside apenas no fato de que a interpretação do STJ tem como consequência que as partes ficam com o controle absoluto em adiar ou não a sessão, pois basta juntar no último momento do tríduo legal para que não haja tempo útil de cientificar a parte contrária.

[3] MALAN, Diogo Rudge. Defesa Penal Efetiva. In. Ciências Penais, vol. 04, p. 253-277, jan-jun, 2006.

[4] Também, perceba-se que ainda há diversas questões atuais que podem ser objeto de discussões no júri, como os respectivos softwares para ter acesso aos arquivos juntados (o que pode inviabilizar o adequado acesso aos documentos), bem como a própria cadeia de custódia das provas digitais. Sobre o tema, recomendamos o artigo de Luiz Eduardo Cani e Alexandre Morais da Rosa, "Podem os algoritmos racionalizar a cadeia de custódia digital?", veiculado em 2 de abril de 2021 no Conjur.

[5] A respeito de como se dá a filtragem do material probatório pelo juiz no sistema anglo-americano, sugerimos a excelente obra: NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A Prova no Tribunal do Júri. Uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Lemen Juris, 2019. Também, o artigo que publicamos na ConJur: "Tribunal do Júri: as instruções e o aperfeiçoamento dos julgamentos", veiculado em 29 de abril de 2021.

[6] STF, 1ª. Turma, HC N. 116985, Rel. Min. Rosa Weber, j. 25/03/2014. Tratando do chamado Anspruch auf rechtliches Gehör (pretensão à tutela jurídica) à luz do que trata o Bundesverfassungsgericht, o Min. Gilmar Mendes destacou que, "(…) a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no artigo 5º., LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: 1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação (Recht auf Äusserug), que assegura ao acusado a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; 3) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmenfähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (…)". (STF, 2ª. Turma, HC n. 108527, Rel. Min. Gilmar Mends, j. 14/05/2013).

[7] MAIER, Julio B. Derecho Procesal Penal, I. Fundamentos. Buenos Aires: Editores del Puerto s.r.l., 2004, p. 577.

[8] Tratando de crime diverso, o STF já reconheceu a nulidade do processo quando verificado o descompasso entre a tese da defesa técnica e a autodefesa do acusado: STF, 2ª. Turma, RE n. 592160, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 16/09/2008.

[9] TAVARES, Juarez; CASARA, Rubens. Prova e Verdade. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 97.

[10] Outra questão que poderá ensejar o adiamento do julgamento por uma das partes, na medida em que a intimação nos processos eletrônicos, poderá surtir efeitos processuais apenas quando transcorridos dez dias do seu envio (intimação tácita), nos termos do artigo 5º. § 3º., da Lei 11.419/06.

[11] Artigo nesta coluna escrito em parceria com o colega Denis Sampaio: "Adequação do artigo 479 do CPP ao avanço tecnológico e seus reflexos no júri", veiculado em 4 de setembro de 2021.

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri)

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    é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, Portugal, mestre em Ciências Criminais pela Ucam/RJ e professor de Processo Penal.

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