Ambiente Jurídico

O STF e os recentes litígios climáticos

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11 de setembro de 2021, 8h00

Sou de uma geração acostumada a festejar a Carta Política de 1988 que, para além de possuir uma redação democrática, garantiu expressamente direitos constitucionais fundamentais multidimensionais e, ainda, pela riqueza de suas palavras, deixou o texto em aberto para que os hermeneutas, em uma perspectiva intergeracional, pudessem conferir-lhe apropriada interpretação e, até mesmo, ampliar o rol de direitos e garantias e não permitir, evidentemente, o retrocesso dos mesmos. No artigo 102 inserto no Título IV, do Capítulo III, da Seção II, da CF, o Poder Constituinte prevê a estrutura e a competência constitucional do egrégio Supremo Tribunal Federal.  Ao excelso pretório, portanto, é conferida, entre outras atribuições, a guarda da Constituição e o controle originário de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (inciso I, alínea "a").

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Neste contexto, parece evidente que caberá ao STF criar os parâmetros e as definições do direito das mudanças climáticas brasileiro.  Historicamente, aliás, o STF tem suprido com qualidade, erudição e elegância, lacunas deixadas pelos Poderes Executivo e Legislativo que, não raras vezes, temem por desagradar setores da sociedade em temas polêmicos e, em última ratio, o seu próprio eleitorado, o que, igualmente, não deixa de ser compreensível no aspecto político. O aquecimento global e a sua regulação, por certo, é um destes temas sensíveis com os quais o STF já está literalmente convivendo.

No Brasil, por outro lado, o tema das mudanças climáticas ainda é tratado de forma tímida pela doutrina[1] e, de igual modo, os litígios climáticos ainda são incipientes. Contudo, há uma perspectiva sólida de aumento desse tipo de demanda, considerando que o governo federal vem se omitindo no cumprimento dos compromissos assumidos para manter a estabilidade do clima. Apenas a título de exemplo, entre outras, existem ações em trâmite no STF e uma, em particular, na Justiça Federal, de cunho eminentemente constitucional, que evidenciam pautas atreladas diretamente às mudanças climáticas.[2]

Nesse prisma, a ADI 6.446/DF, ajuizada pela Advocacia-Geral da União (AGU) perante o Supremo Tribunal Federal (STF)[3], postula a declaração de nulidade de dispositivos do Código Florestal (Lei 12.651/2012) e da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006). Seu objetivo é afastar interpretações que, segundo a AGU, esvaziam o conteúdo do direito de propriedade e afrontam a segurança jurídica. Contudo, a Procuradoria-Geral da República, além de várias entidades ambientalistas que atuam no caso como amicus curiae, contestam o objeto da ADI, sustentam que eventual declaração de inconstitucionalidade dos dispositivos poderá ensejar retrocesso ambiental, inclusive no que tange às políticas de preservação florestal e das mudanças climáticas. Em acalentado parecer jurídico solicitado pelas organizações não governamentais que atuam como amicus curiae na referida ADI, os juristas Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer destacam:

A proteção do bioma da Mata Atlântica, nesse sentido, tem um papel fundamental para a integridade do sistema climático, de sorte que a discussão lançada na ADI 6.446/DF também diz respeito a caso de litigância climática e possível violação ao direito fundamental a um clima estável.[4]

Outro litígio climático, em destaque no STF, envolve a ADPF 708, originariamente ajuizada como Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 60), onde são apontadas omissões do Governo Federal por não adotar providências para o funcionamento do Fundo Clima, que teria sido indevidamente paralisado em 2019 e 2020, além de diversas outras ações e omissões na área ambiental que estariam levando a uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental.

Conforme ementa da ADPF, "[…] A mudança climática, o aquecimento da Terra e a preservação das florestas tropicais são questões que se encontram no topo da agenda global. Deficiências no tratamento dessas matérias têm atraído para o Brasil reprovação mundial", sendo complementado que, se o quadro descrito na petição inicial for confirmado, revelará "[…] a existência de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental, a exigir providências de natureza estrutural". "Vale reiterar: a proteção ambiental não constitui uma opção política, mas um dever constitucional.[5]"

Em decisão preliminar, na referida ação, sua excelência o ministro Luís Roberto Barroso reconheceu que são graves as consequências econômicas e sociais oriundas de políticas ambientais não cumpridas pelo Brasil mesmo após assumir compromissos internacionais, destacando, a partir de dados técnicos, que "somente na Amazônia Legal, o desflorestamento acumulado nos últimos 50 anos é de cerca de 800.000 km2, aproximando-se de 20% da área original".[6] De forma percuciente, o ministro também ressalta que nos últimos anos a determinação do Brasil no cumprimento de metas ambientais começou a dar sinais de arrefecimento, demonstrando assim uma clara preocupação com a ausência de políticas públicas eficazes sobre a matéria.

Outro litígio de natureza climática relevante envolve a ADO-59/STF, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber[7], em que se discute omissão estatal em relação ao Fundo Amazônia, criado pelo Decreto nº 6.527/2008. Dados oficiais apresentados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e inseridos na referida ADO, demonstram o crescente aumento das taxas de desmatamento no bioma Amazônia nos últimos anos. A partir da captação de imagens de satélites e dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), o Inpe aponta a evolução das taxas de desmatamento entre 2013 e 2019: 2013 (5.891 km2/ano), 2014 (5.012 km2/ano) 2015 (6.207 km2/ano), 2016 (7.893 km2/ano), 2017 (6.947 km2/ano), 2018 (7.536 km2/ano) e 2019 (10.129 km2/ano). A partir de tais dados, evidencia-se que o litígio em questão está diretamente relacionado a uma das causas do aquecimento global, que é o desflorestamento.[8]

Um quarto e relevante litígio climático que tramita perante o STF envolve a ADPF nº 743/DF, em que a Rede Sustentabilidade suscita omissão do Governo Federal envolvendo as constantes queimadas no pantanal mato-grossense, que somente no ano de 2020 atingiram 2,3 milhões de hectares, conforme dados do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais.[9] Na referida ação se questiona não apenas os danos ambientais envolvendo as constantes queimadas no pantanal, mas também seus efeitos sobre a saúde pública da população, demonstrando que eventos extremos como os incêndios florestais massivos também repercutem diretamente na mudança do clima, afetando o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a proteção constitucional à vida, à saúde e à integridade física.

Por fim, na ADPF 748 e ADPF 749[10], os autores questionam, dentre outras questões, a alteração da Resolução 499/2020, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que revogou a Resolução nº 264/1999, passando a autorizar o licenciamento ambiental para a queima de resíduos sólidos em fornos de cimento nas indústrias, incluindo materiais com altíssimo potencial nocivo, como embalagens plásticas de agrotóxicos. Na ação, argumenta-se que a queima destes resíduos pode ocasionar desequilíbrio ambiental, afetar o clima e a saúde humana, pois o coprocessamento desses materiais emite CO2 e a queima de resíduos, principalmente embalagens de agrotóxicos, podem gerar, além de outros gases de efeito estufa, gases extremamente tóxicos para os seres humanos, com impactos na saúde de população. Argumenta-se, também, que a liberação desses resíduos altamente tóxicos na atmosfera pode agravar o quadro já periclitante de poluição do ar em grande parte do país.

Além das referidas ações em trâmite no STF, merece destaque um litígio de natureza climática, com embasamento constitucional, que segue em curso em Vara da Justiça Federal do  Distrito Federal. Na Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa), os autores suscitam a nulidade do Despacho 4.410/2020 do Ministério do Meio Ambiente (MMA)[11] e  sustentam que o ato administrativo coloca em risco o que resta da Mata Atlântica (12% da cobertura original), pois o referido despacho recomenda aos órgãos ambientais (Ibama, ICMBio e Instituto de Pesquisas Jardim Botânico) que desconsiderem a Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) e apliquem regras mais brandas constantes do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), podendo o ato ensejar o cancelamento de milhares de autos de infração ambiental por desmatamento e incêndios provocados em áreas de preservação do referido bioma.

A ação ressalta os reflexos climáticos da medida impugnada, pois segundo dados do Sistema de Estimativa de Emissões de Gases (SEEG) do Observatório do Clima, a maior fonte de GEE decorre do desmatamento e das alterações de uso de solo, matéria albergada pela Política Nacional sobre Mudança do Clima (artigo 4º, II e VI), ao prever que esta visará "II – à redução das emissões antrópicas de gases de efeito estufa em relação às suas diferentes fontes; e VI – à preservação, à conservação e à recuperação dos recursos ambientais, com particular atenção aos grandes biomas naturais tidos como Patrimônio Nacional".

As aludidas demandas evidenciam que o Brasil vem sendo palco de litígios climáticos com potencial de notável repercussão, dando ensejo a um sólido debate científico e, especialmente, constitucional, sobre tema que ganhou grande importância, notadamente, após o Acordo de Paris, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e a Encíclica Laudato Sì.

Referidas demandas demonstram, outrossim, uma gradativa sofisticação na seara dos litígios climáticos, evidenciando que a matéria, antes objeto apenas de debates acessórios (na litigância climática indireta e imprópria), começam, pouco a pouco, a chegar aos Tribunais com a causa de pedir e os pedidos bem definidos (focados nas causas e nas consequências do aquecimento global e na sua regulação), forçando um posicionamento do Poder Judiciário não apenas no aspecto infraconstitucional mas, necessariamente, constitucional.  Neste sentido, nos próximos anos, o egrégio STF, que tantos serviços já prestou e tem prestado a nossa República, certamente fixará os limites subjetivos e objetivos dos direitos constitucionais fundamentais debatidos nestas contendas climáticas, em especial, com uma possível declaração de um direito constitucional fundamental ao clima estável apto a tutelar não apenas as gerações atuais, mas também as gerações futuras de seres humanos e não humanos.

[1] O Brasil precisa avançar em termos de Climate Change Law. Nos Estados Unidos, ao contrário, obras de relevância mundial tratam sobre o tema, como: GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody (Ed.). Global Climate Change and U.S law. New York: American Bar Association, 2014. GERRARD, Michael. Threatened Island Nations: legal implications of rising seas and a changing climate. Cambridge: Cambridge University Press, 2013; FREEMAN, Jody, The Uncomfortable Convergence of Energy and Environmental Law, 41 Harv. Envtl. L. Rev. 339 (2017). POSNER, Erik A; WEISBACH, David. Climate Change Justice. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2010; WOLD, Chris; HUNTER, David; POWERS, Melissa. Climate Change and the Law. New York: LexisNexis, 2013.

[2] Sobre o tema, ver: WEDY, Gabriel; FERRI, Giovani. O papel do poder judiciário e do ministério público nos litígios climáticos. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, p. 115-142, v. 96 Jun-Julh 2021.Ed. Magister.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6.446/DF. Relator Min. Luiz Fux. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5929755. Acesso em:  14 mar. 2021.

[4] SARLET, Ingo. FENSTERSEIFER, Tiago. Parecer Jurídico: novo Código Florestal e a Lei da Mata Atlântica (ADI 6446/DF). Disponível em: http://genjuridico.com.br/2020/10/08/parecer-juridico-adi-6446-mata-atlantica/. Acesso em:  14 mar. 2021.

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 708/STF, Rel. Min. Luis Roberto Barroso. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5951856. Acesso em: 9 mar. 2021.

[6] Idem, ADPF nº 708/STF. 

[7]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO nº 59/DF. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344261377&ext=.pdf. Acesso em:  12 mar. 2021.

[8] Sobre o desmatamento na Amazônia e sua relação com as mudanças do clima, vide: NEPSTAD, Daniel C; et al. Interactions among Amazon land use, forests and climate: prospects for a near-term forest tipping point. The Royal Society Publishing, v. 363, n. 1498, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rstb.2007.0036. Acesso em: 13 mar. 2021. 

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 743/DF. Rel. Min. Marco Aurélio de Mello. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6007933. Acesso em: 12 mar. 2021.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF recebe novas ações contra revogação de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452777. Acesso em: 14 mar. 2021.

[11] Abrampa. MPF propõe ação para anular despacho do Ministério do Meio Ambiente que coloca em risco a preservação da Mata Atlântica. Disponível em:    https://abrampa.org.br/abrampa/site/index.php?ct=conteudoEsq&id=841. Acesso em: 14 mar. 2021.

Autores

  • Brave

    é juiz federal, professor no Programa de Pós-Graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professor de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe-RS), visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht), foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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