Opinião

Sobre a notificação compulsória de violência sexual pelos médicos

Autor

  • Miriele Vidotti

    é advogada especializada em Direito Médico e da Saúde pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela PUC-PR e pesquisadora em Bioética.

9 de setembro de 2021, 6h03

Em agosto do ano passado, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.282, alterando o procedimento de justificação e autorização do aborto nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A portaria foi recepcionada de forma alarmante pela comunidade médica e demais profissionais da saúde, que se viram compelidos a notificar para a polícia os casos de pacientes em processo de abortamento cujas gestações fossem decorrentes de violência sexual.

Em face da inoportuna portaria, o Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde e alguns partidos políticos protocolaram duas ações no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade dessa portaria, tendo em vista que fere direitos fundamentais das pacientes, como o direito à privacidade.

Alguns dias antes de se iniciar o julgamento das ações propostas, o Ministério da Saúde, de forma propositada publicou a Portaria nº 2.561, revogando a portaria anterior, mas mantendo a obrigatoriedade da comunicação à autoridade policial sobre a ocorrência de violência sexual quando do atendimento de casos de aborto cuja gestação for decorrente de estupro [1].

A imposição trazida pela portaria é uma forma de constranger não só os médicos(as) e as equipes de saúde ao obrigá-los a notificar esses casos, mas também de afastar, ainda mais, as pacientes do acesso ao aborto quando permitido por lei.

Pelo Código Penal, a interrupção da gestação é permitida no Brasil quando não há outro meio para salvar a vida da gestante e quando a gravidez é resultante de um estupro, conforme artigo 128 do código. Além disso, em 2012 o Supremo Tribunal Federal julgou a ADPF nº 54 e descriminalizou o aborto no Brasil nos casos de anencefalia do feto [2].

Conforme a legislação vigente, em todas as três hipóteses apontadas não há necessidade de apresentação de autorização judicial e/ou boletim de ocorrência pela paciente para o acesso ao abortamento nos serviços de saúde, de modo que a gestante que se encontre em alguma dessas três situações tem direito garantido, por lei, de acesso ao serviço de abortamento.

Além disso, a legislação também não traz nenhuma restrição quanto à idade gestacional. O que ocorre, nesse caso, é a existência de uma norma técnica do Ministério da Saúde  Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento", de 2005 — que aponta que o abortamento é a interrupção da gravidez até a 20ª-22ª semana, de modo que comumente unidades de saúde utilizam a norma técnica para restringir o abortamento até essa idade gestacional. No entanto, é importante frisarmos que pela legislação brasileira vigente, em especial o Código Penal e a ação sobre anencefalia (ADPF nº 54) julgada pelo STF, não há restrição relacionada ao tempo de gestação.

No que se refere à necessidade, para os médicos/as e profissionais de saúde, de comunicação à autoridade policial sobre a ocorrência de uma violência sexual no caso de gestação decorrente de estupro, o Código Penal também não prevê essa determinação.

A justificativa dada pelo Ministério da Saúde para essa imposição foi de que o crime de estupro passou, em 2018, a ter natureza de ação penal pública incondicionada. Em termos práticos isso significa que, anteriormente a 2018, para um processo que apurava um estupro ser instaurado era necessária a representação da vítima, ou seja, era necessário que a vítima fizesse a comunicação do fato à polícia (abertura do boletim de ocorrência) e manifestasse expressamente sua vontade de que fosse instaurada uma ação criminal [3].

A Portaria nº 2.561 do Ministério da Saúde não acerta ao obrigar o médico/a e os profissionais de saúde a comunicar um estupro para a autoridade policial justificando essa necessidade na Lei 13.718/2018 [4]. Isso porque, quando uma ação penal passa a ser "ação penal pública incondicionada", em termos jurídicos, isso significa apenas que a investigação policial e a instauração do processo criminal não dependem mais, obrigatoriamente, dessa representação da vítima. Além disso, com a mudança na lei, o Ministério Público, quando toma conhecimento de um fato criminoso, não pode deixar de oferecer a denúncia e pedir a instauração de um processo criminal. Nesse caso, a promotoria de Justiça tem a obrigação de requerer a abertura de processo criminal independentemente da vontade da vítima em processar o agressor ou não.

Além disso, ao impor a notificação compulsória dos casos de aborto e gestação decorrente de estupro, o artigo 7º da Portaria 2.561 viola a obrigatoriedade da manutenção do sigilo profissional ao trazer essa disposição para os médicos e profissionais de saúde. O Código de Ética Médica é enfático ao dispor que é vedado ao médico a revelação de fato que tenha conhecimento em virtude do exercício da profissão [5].

Embora o sigilo profissional comporte exceções, como por exemplo dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente, essas hipóteses não podem ser aplicadas no caso de abortamento em razão de estupro, tendo em vista que deve ser preservada a autodeterminação e a autonomia da paciente, de modo que denunciar um estupro contra sua vontade viola direitos constitucionais como a dignidade, a honra e a vida privada.

Ao trazer a imposição de notificação à autoridade policial sobre os casos de aborto cuja gravidez é fruto de um estupro, o Ministério da Saúde claramente desvirtua o caráter da profissão médica e tenta criar um dever de polícia aos médicos(as). Há uma cristalina violação à liberdade profissional dos(as) médicos(as), que devem empenhar o seu trabalho em prol da saúde humana e da coletividade, jamais com fins espúrios de persecução penal.

Portanto, verifica-se que ambas as portarias editadas e publicadas no ano passado são graves tentativas de obstaculizar ainda mais o acesso ao aborto nos casos permitidos em lei ao tentar constranger mulheres e meninas na decisão sobre um abortamento de uma gestação decorrente de estupro. Há uma clara e inaceitável revitimização de mulheres e meninas que já passaram por uma violência gravíssima, de modo que os serviços de saúde devem frisar sua atenção para os cuidados com a saúde integral dessas vítimas.


[1] [1] ADI 6552: mais uma pauta sobre aborto legal na mesa do STF. Ingrid Leão. Portal Justificando. Disponível em: https://www.justificando.com/tag/adi-6552/.

[2] Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54. Supremo Tribunal Federal. Acórdão disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334.

[3] Aborto legal em caso de estupro: portaria 2.282/20 e a necessária independência dos sistemas de saúde e Justiça Criminal. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/1053.

[4] Vide artigo 1º da Lei n.º 13.718/2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm.

[5] Vide artigo 73 do Código de Ética Médica. Disponível em: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf.

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  • Brave

    é advogada especializada em Direito Médico e da Saúde, pós-graduanda em Políticas Públicas y Justiça de Género pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais e pesquisadora em Bioética.

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