Opinião

Moderação de conteúdo na internet brasileira: em defesa do Marco Civil

Autor

  • Rodrigo Vieira

    é docente da graduação e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal Rural do Semiárido e articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

9 de setembro de 2021, 13h40

O suposto grito de independência travestido de liberdade veio às vésperas do 7 de setembro. Ainda que sem fundamentos para explicar quais os motivos de relevância e urgência que ensejaram a edição da Medida Provisória (MP) 1.068, o atual presidente alterou abruptamente o Marco Civil da Internet (MCI) e a Lei de Direitos Autorais (LDA), sob o pretexto de regular as redes sociais como Facebook, Twitter, YouTube e Instagram, entre outras. Segundo essa MP, as redes sociais terão 30 dias, a contar da sua publicação, para adequar políticas e termos de uso às novas regras de moderação de conteúdo em plataformas digitais.

A MP 1068/2021 é o ápice da tentativa do atual governo de pôr as redes sociais sob o seu controle. Legisla-se em causa própria. Ela nasce em resposta política: 1) aos bloqueios de mensagens desinformativas de Bolsonaro e seus apoiadores sobre a Covid-19 nas redes sociais; 2) às ações da sociedade civil para impedir o financiamento do discurso do ódio de grupos e pessoas ligadas ao bolsonarismo; 3) à derrubada de canais bolsonaristas por violar as regras de plataformas como YouTube; 4) às determinações da corregedoria do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para que plataformas digitais suspendam o auferimento de ganhos com monetização de páginas e perfis associadas ao governo que estão sendo investigadas por disseminar fatos inverídicos sobre o sistema eleitoral brasileiro e as eleições do próximo ano; 5) à inclusão, pelo ministro Alexandre de Moraes, do atual presidente no inquérito do Supremo Tribunal Federal que apura a divulgação de informações falsas e caluniosas contra a corte e seus membros, além de ameaças e ataques contra a democracia e suas instituições; e 6) às mudanças, após 2018, na resolução do TSE sobre as eleições que tentam conter o uso abusivo de aplicações de internet para disseminação de propaganda eleitoral irregular.

A modificação pretende, em verdade, amplificar discursos extremistas nos intermediários da internet cujo modelo de negócio se assenta na produção de conteúdo pelos próprios usuários, sem enfrentar os limites colocados aos usuários por essas empresas.

Outrora em romance com as redes sociais, a relação do atual governo com as plataformas que impulsionaram a sua vitória eleitoral está em ruínas. Por pressões de ordem econômica e social, as principais empresas intermediárias de serviços dessa natureza, com atuação planetária, vêm sendo questionadas sobre os seus papeis e a sua colaboração com o êxito do aumento dos discursos do ódio e de extremistas e fundamentalistas que recentemente ocuparam os maiores postos de liderança política em seus países. Esse alerta intensificou-se com a associação desses grupos à difusão de notícias falsas sobre e durante a pandemia e à defesa de teses negacionistas sobre a ciência e as orientações dos órgãos de segurança sanitária.

Em obra recentemente lançada por Cecilia Kang e Sheera Frenkel [1], por exemplo, as jornalistas do New York Times defendem que o Facebook foi incapaz de conciliar o seu modelo de negócio baseado no engajamento dos usuários com o regime democrático. Apesar de publicamente a plataforma anunciar recentes compromissos, no último ano, com o combate à desinformação e ao discurso do ódio, a veiculação e o alcance de conteúdos não confiáveis continuam sendo as principais fontes de atenção dos usuários nessa rede social, bem como de suas receitas. De acordo com relatório do Center for Countering Digital Hate [2], em 2019 houve o aumento de quase oito milhões de seguidores de perfis antivacinas. No Facebook, esse número representa cerca de 30 milhões de pessoas, o que, em termos de cifras, gera para a rede social, com publicidade, a marca de US$ 989 milhões. A infodemia pode não apenas ocasionar mortes, mas, nesse sentido, parece ser lucrativa.

É no mínimo curioso que, no momento da edição dessa MP, haja o aumento das atividades automatizadas de robôs na rede social Twitter convocando militantes bolsonaristas para o ato do dia 7 de setembro, quando a medida prevê exatamente como justa causa para remoção de contas e perfis a ação de bots não rotulados. Segundo relatórios do Projeto Pegabot [3] do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), verificação realizada no mês de agosto revela que há alta probabilidade que perfis automatizados sejam responsáveis pelo crescimento de publicações de hashtags sobre mobilizações para o feriado da Independência. Entra em contradição até com o recente veto presidencial parcial à tipificação de "comunicação enganosa em massa" na nova Lei de Segurança Nacional, cujo intuito era impedir disseminação da desinformação que comprometesse a higidez do processo eleitoral em nosso Estado democrático de Direito.

Para fugir das críticas anteriores da minuta de decreto, divulgada ainda em maio deste ano, que regulamentaria o Marco Civil da Internet alterando o Decreto nº 8.771/2016 e extrapolaria os limites de uma norma infralegal, o governo seguiu à risca a orientação da Advocacia-Geral da União ao editar a medida provisória em destaque. Ao contrário do processo participativo na internet que culminou com a aprovação do atual Marco Civil, a MP ignora qualquer discussão multissetorial que envolva organizações sociais de defesa dos direitos digitais, empresas intermediárias que prestam serviços dessa natureza alcançadas pelas normas modificadas do MCI, especialistas, técnicos e pesquisadores que desenvolvam investigações sobre regulação da internet e moderação de conteúdo, e até mesmo o Comitê Gestor da Internet no Brasil. Essa diretriz básica está prevista na Lei do MCI que estabelece a necessidade da adoção de "mecanismos de governança multiparticipativa transparente, colaborativa e democrática" (artigo 24, I do MCI).

Além disso, a MP atropela as discussões que estão acontecendo no Congresso Nacional em torno do Projeto de Lei 2.630/2020, já aprovado no Senado e, atualmente, em debate na Câmara dos Deputados. Embora ainda padeça de defeitos que podem ser sanados, a futura Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet se encontra em estágio avançado de análise, bem como tem por objeto muito do que a MP pretende regular, só que com participação dos segmentos não consultados pelo governo federal, para controlar a disseminação de conteúdos inverídicos e comportamentos inautênticos nas redes sociais.

Um dos maiores problemas dessa medida provisória é o risco de censura estatal, pois há claramente a enumeração de hipóteses restritas — denominadas de justa causa — que motivariam a remoção de perfis, contas ou conteúdos, limitando em demasia e desproporcionalmente a atuação dos moderados das redes sociais e os termos de uso e serviços, que podem variar de acordo com a natureza, tamanho e finalidade das plataformas.

A lei determinaria o que pode ou não ser analisado. Estranhamente, disseminar desinformação não está previsto como situação sujeita à moderação. Caso a violação de algum direito dos usuários não esteja listada dentro daquilo que pode ser moderado pelas plataformas, é provável que elas tenham que recorrer ao Poder Judiciário para suspender ou remover contas e conteúdos ilícitos de outras ordens, o que geraria um aumento considerável de processos judiciais que poderiam ser evitados. Em vez de os tribunais discutirem o cumprimento de decisões pelas plataformas, ou moderações abusivas e ilegais em casos já frequentes, passarão a ser, diante da situação de insegurança jurídica, revisores obrigatórios dos inúmeros atos das redes sociais que não se enquadrem na previsão legal.

A MP inverte a prioridade das discussões sobre a regulação das plataformas, colocando suas participações na moderação em segundo plano, em vez de investir maior atenção em práticas e deveres de transparência do que tem sido realizado pelas redes para conter violações de direitos fundamentais (humanos) em seus serviços.

Nessa MP foi removido o trecho previsto na proposta anterior de decreto que regulamentaria o MCI, no qual os provedores de aplicação não poderiam excluir ou suspender contas, conteúdos e perfis sem decisão judicial, muito em virtude dos apontamentos feitos em defesa da permanência do regime de responsabilidade dos intermediários do artigo 19 do MCI. Ainda assim, de outro modo, o governo força, indiretamente. a prática da litigância nos órgãos judiciais do país, subtraindo outras possíveis instâncias reguladoras do processo de moderação, como através da resolução extrajudicial de litígios por terceiros imparciais, auditoria externas independentes e recursos para autoridades reguladoras formadas por representação multissetorial ou organismos exteriores às empresas com independência.

A MP insiste na falsa narrativa da insuficiência do artigo 19 do Marco Civil da Internet dentro do atual modelo regulatório. O referido dispositivo, evocando a liberdade de expressão e a vedação à censura, em outras palavras, diz que os provedores de aplicações de internet serão responsabilizados civilmente por conteúdos ilícitos de terceiros quando, após notificação judicial específica, não tomem nenhuma providência para tornar esse material indisponível.

A legislação brasileira não cria qualquer embaraço ou restrição para que o provedor de aplicação, segundo os seus termos e políticas de serviços, crie procedimentos de verificação, análise e moderação com a consequente retirada ou indisponibilidade, em certos casos até com o banimento ou a suspensão de contas e perfis. Todavia, essa liberalidade pode se constituir um risco, já que, se o Poder Judiciário constatar que a decisão da plataforma violou os direitos dos usuários ou não tinha qualquer fundamento, ela pode ser responsabilizada civilmente. No entanto, não há obrigatoriedade de se aguardar decisão judicial para suspender ou cancelar contas e perfis de usuário, tampouco o material ilícito compartilhado, se houver afronta às regras de convivência das redes.

Em casos de extrema gravidade de violação da intimidade e da privacidade, como a disponibilização ou divulgação de imagens, vídeos, cenas de nudez ou com caráter sexual não autorizadas, o provedor de aplicação, segundo o artigo 21 do MCI, pode ser responsabilizado subsidiariamente, quando notificado extrajudicialmente pela vítima ou seus representantes legais deixa de promover a indisponibilidade do conteúdo.

Visto isso, na prática, com a nova MP as redes sociais estariam obrigadas a manter conteúdos infratores que não estivessem previstos naquilo que o chefe do Poder Executivo classificou como "justa causa" sob "motivação", ou teriam de, inevitavelmente, aguardar manifestação do Judiciário.

A restrita e genérica tese da justa causa também abrangeria os conteúdos protegidos por direitos autorais. Perfis, contas e materiais bloqueados ou removidos por violações de obras intelectuais, baseadas nas hipóteses previstas na nova MP, poderão ser reestabelecidos sem prejuízo de indenizações e de sanções aplicáveis por um órgão a ser criado por lei. Não era bem isso que se tinha em mente quando o artigo 31 do MCI prescreveu que a legislação autoral em vigor é que vai disciplinar essas infrações, até a aprovação de outra lei específica que regule a matéria. Aliás, o Marco Civil da Internet não trata da responsabilidade do provedor de aplicações de internet por conteúdos ilícitos compartilhados por terceiro que infringem direitos de autor, como o faz, por exemplo, a nova Diretiva de Direitos de Autor da União Europeia em razão da comunicação ao público não autorizada na internet.

Permanece aqui o risco já ventilado na minuta do decreto que não vingou sobre os perigos da criação de um super órgão do Poder Executivo com poderes fiscalizatórios que endosse a equivocada tese de que todo conteúdo na rede seria obra intelectual protegida por direitos autorais, conferindo igualmente uma maximalização dos poderes dos supostos titulares, igualmente ilimitados sobre os quais as plataformas teriam de se curvar, aceitando sua veiculação e postagem. Ficariam encobertos e protegidos, nessa visão, conteúdos infratores cuja permanência nos serviços das plataformas é duvidosa. De igual maneira, as redes sociais não são obrigadas a publicar um conteúdo por força simplesmente da titularidade da autoria, a não ser que firmem contratos ou licenças com usuários com esse objeto específico.

Presas a essas limitações, as redes sociais terão dificuldades de moderar discursos como o de Trump que estimularam a invasão do Capitólio, em claro aceno à tentativa de não respeitar o resultado das últimas eleições norte-americanas. Bolsonaro estaria supostamente livre para continuar a espalhar desinformação sobre a pandemia ou a propagar notícias falsas sobre a integridade das urnas eletrônicas. Uma carta branca para insuflar pessoas contra os demais poderes neste 7 de setembro.

Em síntese, o objetivo da MP não é regular a moderação de conteúdo pelas plataformas, mas tirá-la das mãos das redes. Ao forçar o crescente aumento da judicialização dos conflitos judiciais, é bem provável que o governo Bolsonaro tenha em seu cálculo que os órgãos do Poder Judiciário não terão a mesma agilidade e o alcance dos algoritmos das plataformas, abrindo espaço para seu reino de desinformação. Ainda assim, as redes sociais, para cumprir essas novas obrigações legais no espaço que lhes restará, provavelmente continuarão a adotar tecnologias opacas limitadas pelos inputs das restrições da MP, reforçando permanências de conteúdos indevidos diante do receio da responsabilização.

Para barrar os efeitos da medida provisória, duas saídas se apresentam, institucional e concomitantemente: uma é a articulação no Congresso para sua rejeição e a outra o próprio questionamento judicial da sua duvidosa constitucionalidade frente aos pilares consagrados pelo MCI, como a liberdade de expressão. PSDB, PT, Solidariedade e PSB ingressaram com três ações diretas de inconstitucionalidade com pedido cautelar no STF para suspender a eficácia da MP, e, no Senado, a oposição está pressionando o presidente Rodrigo Pacheco para que a devolva ao Executivo. Afinal, é a Constituição da internet brasileira que está em jogo.

 

[1] An Ugly Truth — Inside Facebook’s Battle for Domination. Nova Iorque: HarperCollins, 2021.

[2] The Anti-Vaxx Industry: How Big Tech powers and profits from anti-vaccine misinformation. Disponível em: https://www.counterhate.com/anti-vaxx-industry.

[3] https://pegabot.com.br.

Autores

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    é professor e coordenador do Curso de Direito da Ufersa, docente do PPGD/Ufersa e membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

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