Opinião

A constitucionalidade do artigo 27 da Lei de Concessões

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9 de setembro de 2021, 20h31

No último dia 6 de agosto, teve início o julgamento virtual da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2.946-DF, ajuizada no longínquo ano de 2003 pela Procuradoria-Geral da República e inicialmente da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence. Na ação questiona-se o artigo 27, seu §1º, e respectivos incisos da Lei das Concessões (Lei nº 8.987/95), segundo os quais se admite a transferência da concessão ou do controle societário da concessionária, respeitadas certas condições. O foco da discussão na ação direta é a viabilidade jurídica da transferência da concessão ou do controle da SPE apenas mediante a anuência do poder concedente, isto é, sem a realização de nova licitação.

A ação permaneceu durante todo esse tempo sem qualquer movimentação relevante até ser pautada pelo novo relator, ministro Dias Toffoli, o qual já apresentou seu voto em relação à matéria, no que foi acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes, estando agora o julgamento suspenso por pedido de vista apresentado pelo ministro Gilmar Mendes. Para o relator, o pedido formulado mereceria parcial acolhimento, para se reconhecer a inconstitucionalidade das situações de transferência da concessão (isto é, de substituição da pessoa jurídica que vencera o certame) mediante anuência do poder concedente.

Segundo o voto proferido, a transferência autorizada nos termos da Lei de Concessões representaria burla ao princípio da licitação determinado expressamente pelo artigo 175 da Constituição Federal [1]. O relator propõe ainda "dar efeitos prospectivos à presente decisão, de modo que o poder público promova, no prazo máximo de dois anos contados da data desta sessão de julgamento, as licitações de todas as concessões cuja transferência tenham sido efetivadas, com fundamento no referido dispositivo legal".

O voto possibilita dois ângulos de abordagem: um relativo à própria compreensão que se trouxe a respeito do instituto da transferência da concessão, e outro concernente aos efeitos que o relator pretende atribuir à sua decisão caso venha a ser confirmada em plenário. Adiantamos que, do nosso ponto de vista, tanto a abordagem jurídica quanto a proposta de modulação de efeitos, a que equivocadamente se atribuiu suposta prospectividade, revelam-se equivocadas.

A fundamentação do voto do relator está fortemente calcada na condição personalíssima que foi atribuída ao contrato de concessão. Esse entendimento pode ser inferido a partir do seguinte trecho: "Quem venceu a licitação foi o concessionário, e não um terceiro estranho que não participou do certame, e se participou, não logrou ser vencedor. Permite-se, portanto, por vias transversas, que terceiro venha a adquirir a condição de concessionário de serviço público sem ter participado previamente do respectivo procedimento licitatório".

Para enfrentar a conclusão do relator quanto à parcial inconstitucionalidade do dispositivo, não se pretende aqui digredir em torno de discussões inerentes a esse ponto específico; certamente há doutrina vasta a respeito da matéria e uma discussão delongada acerca da qualidade da concessionária não propiciará um ponto de vista alternativo, porém seguro e fincado em boas razões, para a análise da matéria.

Consideradas as limitações próprias de um artigo como este, obviamente que o tema não se esgotará aqui, muito menos em termos de aprofundamento doutrinário que o assunto em si merece. Mas é possível contribuir com o debate a partir de algumas poucas considerações.

Mostra-se interessante o ponto de abordagem que principia pelo que seja titularidade do serviço público. Em monografia sobre o tema das concessões, Floriano de Azevedo Marques Neto conclui, em contraponto às lições clássicas, que a titularidade deve ser entendida não simplesmente como a apropriação do Estado sobre bens e funções públicas e a consequente exclusão do particular do seu respectivo campo de exploração; a titularidade se conceitua, sim — e isso é fundamental —, como a responsabilidade assumida pelo Estado para prover alguma utilidade em favor do interesse coletivo.

Nas suas próprias palavras, a titularidade significaria, então, "um dever imposto pela ordem jurídica no sentido de oferecer ou desenvolver, direta ou indiretamente, uma atividade de interesse comum". Ainda segundo seu pensamento, a titularidade se afastaria da ideia de exclusão do privado ou de atribuição de privilégio a um só particular, para assim se consolidar como uma função e uma competência do Estado perante a coletividade [2].

A partir dessa ideia, é possível se chegar à conclusão, por certo até mesmo intuitiva, de que a concessão é instituto de Direito Administrativo que exsurge da relação entre poder concedente e concessionária a fim de atender a uma demanda de evidente interesse público, coletivo. Nesse quadrante, e já partindo para conclusões mais objetivas, depreende-se que o contrato que rege essa modalidade de relação entre público e privado (concessão) não tem, rigorosamente, as mesmas qualidades de um outro contrato qualquer, formalizado a partir, por exemplo, das regras da Lei Geral de Licitações.

E não se refere aqui aos altos valores de investimentos necessários para a consecução do projeto concedido, à matriz de riscos estabelecida para viger durante a relação contratual, ao prazo extenso da concessão, nem a outros aspectos bem peculiares dessa modalidade contratual e que já estão contemplados, em rigor, na própria Lei de Concessões.

Para os propósitos deste artigo, chama-se a atenção para um aspecto de ordem mais doutrinária que permeia os contratos de concessão: especialmente seu caráter plurilateral, o qual envolve, além dos direitos e deveres estabelecidos de parte a parte, interesses especial e legalmente protegidos de terceiros. Veja-se que, pelos próprios termos do artigo 6º da Lei de Concessões, "toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato".

O contrato é formalizado, portanto, entre público e privado, mas executado e desenvolvido invariavelmente na perspectiva de atendimento ao interesse de uma coletividade (obviamente, no interesse lucrativo legítimo da concessionária que assumiu a prestação dos serviços, também). Dado o seu caráter imprescindível para a consideração do regime das concessões, Marçal Justen Filho chega a propor que os usuários (a referida coletividade) não seriam, em realidade, terceiros na relação contratual. Para ele: "Somente se pode obter a integral e satisfatória operacionalização da concessão a partir do reconhecimento de que a comunidade e, em especial, os usuários do serviço não são terceiros á relação jurídica. Adota-se a concepção de que a concessão se confgura como uma relação jurídica trilateral, em que um dos polos é ocupado por instituições representativas da comunidade" [3].

Na monografia já citada, Floriano de Azevedo Marques Neto [4] desenvolve raciocínio que demonstra que a relação jurídica que contém as bases da concessão é composta a partir do que se denomina "contrato relacional", tradicionalmente assim caracterizado: 1) são contratos de longa duração; 2) suas obrigações não são cumpridas mediante prestação única, mas a partir de reiteradas manifestações práticas do contratado ao longo do prazo estabelecido; 3) há um inequívoco traço de mutação nas obrigações pactuadas; 4) as relações jurídicas que se estabelecem projetam seus efeitos para além da esfera jurídica das partes que celebraram o pacto; 5) existe uma relação de solidariedade e confiança entre as partes, e não de antagonismo próprio dos contratos ditos "tradicionais" e, bem por isso; 6) o ganho de uma das partes não necessariamente deve significar a perda da outra, mas bem a própria concomitância na verificação de resultados positivos de ambos os lados.

Para arrematar o raciocínio, ressalte-se o pensamento de Egon Bockmann Moreira, que, ao discorrer sobre a mutabilidade dos contratos de concessão, assinalou que sua flexibilidade, decorrente das intempéries factuais verificáveis ao longo da concessão, tem como propósito justamente assegurar o objeto da concessão na perspectiva de se garantir a adequação do serviço em favor da coletividade [5].

Para o enfrentamento do voto do relator Toffoli na ADI 2.946-DF, relevante concluir, então, que a característica primordial da concessão, entre outros aspectos, reside justamente nessa projeção de obrigações para fora da relação entre poder concedente e concessionária, no que se atinge diretamente a esfera de interesse dos terceiros (coletividade) que, por força de lei, têm direitos a serem estritamente observados.

Adotada, então, a ideia (que se afigura bastante razoável) segundo a qual a proteção dos interesses da coletividade é o traço mais distintivo da concessão, conclui-se que toda a racionalidade da Lei de Concessões volta-se não à pessoa do prestador do serviço, mas, sim, ao projeto concedido e na perspectiva do interesse coletivo. E essa conclusão faz sentido por uma razão que encontra amparo tanto na doutrina mais abalizada (aqui exemplificada), quanto na própria Lei de Concessões.

Segundo o já citado Egon Bockmann Moreira, tratando ainda sobre segurança jurídica e a mutabilidade dos contratos, a transformação das pactuações mantidas entre as partes tem justamente o própósito de assegurar a segurança jurídica necessária ao contrato de concessão. Assim porque: "A igualdade e a continuidade dependem, em muito, da mutabilidade dos contratos de concessão. Para que persista a segurança jurídica da concessão é necessário que ela sirva de garantia à mutabilidade de algumas das operações inicialmente previstas. (…) A mutação contratual aqui defendida é via de mão dupla, objetivamente instalada em favor do contrato" [6].

Observe-se: em favor do contrato. Claro que com isso não se quer afirmar que a pessoa do contratado, a concessionária, é irrelevante na figura da concessão ou que possa ser substituída ao talante de quaisquer das partes. Obviamente não é bem assim, e o bom senso e a própria lei impedem que tal raciocínio prevaleça. O próprio artigo 27 condiciona a transferência da concessão à anuência do poder concedente e desde que respeitadas certas condicionantes: 1) atendimento às exigências de capacidade técnica, idoneidade financeira e regularidade jurídica e fiscal necessárias à assunção do serviço; e 2) comprometimento da pretensa nova concessionária de cumprir todas as cláusulas do contrato em vigor.

Note-se que a transferência da concessão não é figura extremamente comum ou corriqueira (a transferência de controle da concessionária o é muito mais). Todavia, pode e deve ocorrer quando fatos que se desdobram no decorrer da própria relação concessória se impõem — situações nas quais a pessoa jurídica que vencera a licitação, vindo depois a constituir a SPE operadora do contrato, não mais reúne as condições de permanecer à frente da operação nem de prover à coletividade aquilo que se espera, por princípio, do próprio Estado (titular dos serviços e obrigado ao provimento).

Ou seja, em situações de crise contratual, em que se verifica, por exemplo, a perda da capacidade econômica da pessoa jurídica em razão de uma grave perturbação pela qual passa o país ou em razão — tal como de fato ocorreu em nosso país em momento recente — do envolvimento da empresa em atos ilícitos dos quais lhe tenham resultado prejuízos advindos de condenação judicial ou demais obrigações impostas pela Justiça.

Considerada a imposição legal de continuidade do serviço concedido, o que seria melhor ao atendimento do interesse público? A abertura de fiscalização e processo administrativo sancionador, com eventual decretação até de caducidade contratual (com seus enormes desgastes e custos de transação), ou a transferência da concessão para empresa que, doravante, tenha condições de assumir o objeto da prestação com eficiência? Certamente o mecanismo da transferência tem a serventia de socorrer a própria concessão, de modo a preservar o interesse público com economicidade, razoabilidade e transparência.

A partir desse ponto de vista, não há como se afirmar violação ao artigo 175 da Constituição Federal; a licitação já foi oportunamente realizada para a atribuição, ao particular, de obrigações que originalmente eram do poder público, tendo-se cumprido o mandamento constitucional de selecionar a melhor proposta mediante a concorrência entre particulares.

A situação de crise que porventura se instaura posteriormente no curso da concessão impõe a adoção de uma decisão que já tem como vencido — e cumprido — o requisito constitucional da licitação (já realizada quando da contratação), ocupando-se agora as partes originalmente contratantes de mirar o interesse público na perspectiva de manter a prestação do serviço nos termos do que determina o artigo 6º da Lei de Concessões.

A figura (pessoal) da concessionária não é o mais importante na concessão e, portanto, seguramente não é o que deve definir os rumos da discussão sobre a constitucionalidade do artigo 27 da Lei de Concessões. Não nos parece pertinente que o poder concedente possa razoavelmente insistir por mero capricho na pessoa da concessionária (constituída pelo vencedor do certame) mesmo diante de situação na qual se revele a impossibilidade material de continuidade da empresa à frente do projeto concedido.

O fundamento da concessão é o cometimento de uma função primitivamente estatal ao particular, o qual, a partir da outorga da concessão, assume o dever de prestar o serviço na invariável perspectiva de atendimento ao interesse público. Tem-se, assim, que o artigo é inteiramente constitucional.

A modulação de efeitos proposta pelo relator também me parece irrazoável, além de encerrar certa contradição. Propõem-se efeitos "prospectivos" para a decisão, no que se obrigaria a realização de licitação para todas as concessões cujas transferências tenham sido efetivadas com fundamento no artigo 27 — o que em verdade projeta, no entanto, os efeitos da decisão para o passado, vendo-se a Administração Pública obrigada a realizar novos certames e a anular as anuências concedidas desde a edição da Lei de Concessões em 1995.

Embora a transferência da concessão não seja tão corrente quanto o é a transferência do controle societário da SPE, é certo que a decisão do relator abrangeria um número considerável de situações já ultrapassadas e, mais importante, consolidadas no tempo. Se o voto, por um lado, impõe uma conduta para o poder concedente para daqui a dois anos (no que se tem efetivamente um efeito para o futuro), por certo tem impacto em relações já estabilizadas, que infelizmente não receberam qualquer consideração por parte do relator (ao contrário do que determina, inclusive, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em que efeitos concretos das decisões devem ser consideradas pelo julgador).

Tenha-se, por exemplo, o que se fazer com as empresas que tiveram suas transferências outrora anuídas agora anuladas pelo poder público. Haveria direito à indenização? Como o relator nada orientou a respeito, a declaração de inconstitucionalidade teria, nesse particular, efeitos ex tunc, isto é, desde a edição da lei?

A modulação dos efeitos proposta pelo relator, parece-nos, causa tantos problemas quanto a própria proposta de voto sobre a matéria principal. É fundamental que o ministro Gilmar Mendes, no que se espera seja acompanhado pelos demais ministros, corrija os rumos da proposta de votação inicialmente encaminhada.

 


[1] "Artigo 175 – Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos".

[2] Concessões — 1 ed., 1. Reimpressão. Belo Horizoente: Fórum, 2016, p. 126.

[3] Teoria geral das concessões de serviços públicos, 1 ed., 2. Reimpressão. São Paulo: Dialética, 2003b, p. 61.

[4] Op. Cit., p. 150.

[5] Direito das concessões de serviço público. Inteligência da Lei 8.987/1995 (Parte Geral), São Paulo: Malheiros, 2010, p. 37.

[6] Op. Cit., p. 44.

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