Opinião

Afinal, qual o limite da liberdade de manifestação do pensamento?

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

9 de setembro de 2021, 6h35

A grande discussão jurídica e política na atualidade é até onde vai a liberdade de expressar o pensamento. Esse direito é absoluto ou possui limites? Pode ser restringido ou impedido, mesmo antes de a pessoa expressar sua opinião, ou a punição é posterior, isto é, depois de realizada a conduta?

São questões simples de serem respondidas e até então a jurisprudência e doutrina eram uníssonas.

A nossa Carta Constitucional é muito clara: todos têm o direito constitucional de expressar sua opinião, dentro dos limites da razoabilidade, fazendo-o de forma proporcional, de modo a não incorrer em nenhuma figura típica, como crime de ameaça, contra a honra e incitação ao crime.

O artigo 5º, inciso IV, da Carta Constitucional dispõe: "É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". É uma norma constitucional, que faz parte das chamadas liberdades públicas, integrante do núcleo intangível da Constituição por ser um dos direitos inerentes à cidadania e à personalidade.

Como esse direito é de cunho constitucional, sendo na realidade uma regra, ou existe ou não existe, vale ou não vale. Somente uma outra norma constitucional poderia reduzir esse direito.

Lembro ainda que o direito à livre manifestação do pensamento é o primeiro a ser suprimido ou limitado em países totalitários (censura).

A censura é expressamente vedada pela Constituição Federal em duas passagens: no artigo 5º, inciso XI, da Magna Carta, que dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e no §2º do artigo 220, em que é proibida qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística.

Desses dois dispositivos depreende-se que não se faz possível nenhum tipo de censura prévia, típica de países totalitários em que não há liberdade de manifestação e muito menos imprensa livre. Se houve excesso na linguagem e ultrapassou-se o limite entre a liberdade de expressão e a prática de uma infração, inclusive de natureza penal, a punição é posterior. Não é dado a ninguém antever a prática de um ilícito e calar qualquer pessoa, o que caracteriza arbítrio.

Toda autoridade pública, ao assumir cargo de relevo, perde parcela de sua intimidade, vida privada e do direito à preservação da imagem. Mas nem por isso podem ser ofendida ou ameaçada.

Contudo, deve ser realizado juízo concreto sobre o que é crime ou o exercício do direito de crítica, que muitas vezes é exercido de forma contundente, mas nem por isso deixa de ser crítica.

Qualquer pessoa ou instituição, não estando livre disso o Supremo Tribunal Federal e chefes de Estado, podem ser criticada, cabendo ao Poder Judiciário realizar juízo de ponderação de valores para chegar à conclusão sobre a natureza jurídica da crítica (exercício de um direito ou crime), observando que medidas desproporcionais devem ser coibidas.

Até na Lei de Segurança Nacional, ainda em vigor, há dispositivo expresso que permite a exposição, a crítica ou o debate de quaisquer doutrinas (com exceção do nazismo, que é crime), dizendo que tais atos não constituem propaganda criminosa (artigo 22, §3º, da Lei nº 7.170/1983).

A Lei nº 14.197, do último dia 1º, que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito e substituirá a Lei de Segurança Nacional, 90 dias após sua publicação, encontrando-se em vacatio legis, possui dispositivo semelhante e muito mais aberto como norma de encerramento, que será inserido no Código Penal. O artigo 359-U desse diploma legal dispõe sobre a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento, direito fundamental e já consagrado na Constituição Federal (artigo 5º, IV), tão vilipendiado na atualidade. Dispõe a norma que: "Não constitui crime previsto neste título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

O direito à livre manifestação do pensamento consiste justamente em poder dizer o que pensa sobre algo ou alguém, inclusive poderes constituídos e seus agentes, sem que importe crime (atipicidade formal e material). Essa regra constitucional é fruto de um país democrático e uma lei, que tutela justamente o Estado democrático de Direito, nunca poderia punir a manifestação do pensamento, que é um dos seus pilares.

Do mesmo modo, não é possível criminalizar as atividades jornalísticas e de comunicação, que também possuem fundamento constitucional. O artigo 5º, inciso XI, da Magna Carta dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. No mesmo sentido, o disposto no artigo 220 da Carta Constitucional, que veda qualquer tipo de restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, observadas outras regras constitucionais, que devem conviver harmonicamente sem que haja qualquer tipo de excesso. E complementa o dispositivo seu §2º, que proíbe qualquer espécie de censura de natureza política, ideológica e artística.

Por fim, reivindicações de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas populares, reuniões, greves ou quaisquer outras formas de manifestações políticas com propósitos sociais, não podem ser consideradas infrações penais. Nunca um direito protegido pela própria Constituição Federal pode ser criminalizado, o que seria paradoxal, ilógico e certamente inconstitucional.

Cuidando-se de norma penal mais benéfica ao acusado ou investigado, deve ser aplicada analogicamente a outros tipos penais que punem os delitos de opinião, como os contra a honra (artigos 138, 139 e 140 do CP) e incitação ao crime (artigo 286 do CP), lembrando que, por ser norma penal mais benéfica, retroage e alcança ações penais em curso ou já julgadas.

Por outro lado, como qualquer direito, há um limite. Não há direitos absolutos, intocáveis. Todos os direitos e garantias constitucionais devem conviver harmonicamente, observados critérios de proporcionalidade. Aquele ditado popular de que seu direito termina quando inicia o meu é verdadeiro. A inviolabilidade da intimidade, privacidade, honra e imagem das pessoas também é direito previsto na Carta Constitucional (artigo 5º, X), do mesmo modo que o de proteção da segurança e tranquilidade de toda a sociedade (artigo 5º, caput). A partir do momento em que o limite da liberdade de expressão legalmente exigido é ultrapassado, adequando-se a conduta a um tipo penal, haverá delito de opinião a ser punido, nos termos da legislação em vigor.

Todo delito de opinião deve possuir a finalidade criminosa, ou seja, de descumprir a lei de modo que se adeque a uma norma penal incriminadora que a puna, como os crimes contra a honra.

A simples crítica, debate de ideias, insatisfação com alguma coisa, intenção de corrigir ou de se defender, não são condutas típicas penalmente.

Qualquer crime contra a honra possui o elemento subjetivo do tipo específico de caluniar, de difamar ou de injuriar pessoa determinada, não bastando a mera conduta objetiva que se adeque a um tipo penal.

No que tange ao crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal, a conduta praticada deve ter o potencial de causar medo ou intranquilidade e ser voltada para essa finalidade.

Ameaçar é, portanto, revelar à vítima o propósito de causar-lhe um mal injusto e grave, atual ou futuro. A promessa de mal pode ser da produção de dano ou perigo, pouco importando qual deles seja prenunciado pelo agente.

A ameaça, que pode ser externada por qualquer meio (palavras, gestos ou simbólicos), deve ser injusta e portar potencialidade intimidativa, ou seja, ser séria e idônea à intimidação. Assim, aquele que ameaça colocar um título em protesto ou chamar a polícia não comete crime, pois a ameaça não é injusta. Da mesma forma, a ameaça feita em tom de brincadeira não é idônea a intimidar o homem médio e não caracterizará o delito.

Destarte, sendo o mal prometido justo ou se não for grave, não haverá o delito por ausência de adequação típica. Já a ameaça sem potencialidade intimidativa, ou seja, que não seja capaz de amedrontar ou trazer intranquilidade à vítima, é crime impossível.

Para a caracterização do delito é indiferente que o agente tivesse a intenção de cumprir o mal prometido ou que lhe fosse possível fazê-lo. É suficiente que possa causar à vítima intranquilidade ou medo.

Porém, o dolo de ameaçar deve estar presente, isto é, faz-se indispensável vontade livre e consciente de causar medo ou intranquilidade à vítima (dolo direto) ou que o autor, ao praticar a conduta, assuma o risco de que isso ocorra e tolere a produção do resultado (dolo eventual).

Outra conduta que pode ser atribuída quando se exerce a manifestação do pensamento é a prevista no artigo 286 do Código Penal, que trata da incitação ao crime, cujo tipo penal dispõe: "Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena. Detenção, de três a seis meses, ou multa".

Nessa infração, o legislador adiantou-se e tipificou como crime a incitação à prática de qualquer delito, procurando, com isso, evitar que a conduta criminosa fosse perpetrada.

Cuida-se de ação que deve ser praticada em público, de modo a ser percebida por um número indeterminado de pessoas, e visar à prática de crime determinado.

O agente deve, portanto, por qualquer meio, insuflar, publicamente, pessoas a praticarem determinado crime, como certo roubo, certo estupro, certas lesões corporais etc. Por outro lado, não se exige que o crime incitado tenha vítima individualizada. Assim, não há necessidade de que a incitação seja à prática, por exemplo, de furto na casa de "Fulano de Tal". Basta que a incitação seja ao cometimento de determinado furto, mesmo com vítima indeterminada.

No caso de o delito para qual houve a incitação ser praticado, o incitador será partícipe dele, respondendo em concurso material com o do artigo 286 do Código Penal.

Inclusive, a novel legislação incluiu parágrafo único no artigo 286 do Código Penal, que traz dispositivo até então previsto como crime contra a segurança nacional pela Lei nº 7.170/1983 (artigo 23), expressamente revogado.

De acordo com o novo dispositivo, será punido com a mesma pena da figura fundamental (artigo 286 do CP) aquele que incitar, publicamente, não a um delito qualquer, mas à animosidade entre as Forças Armadas, ou entre estas e os poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), as instituições civis ou a sociedade.

Note-se que os crimes de opinião, aqueles cometidos por escrito ou palavras, deixam de ser tipificados na Lei de Segurança Nacional (que será revogada) e na nova legislação, que a substituirá, e passam a ser crimes comuns, descritos no Código Penal, passíveis de transação penal, de competência do Juizado Especial Criminal, com exceção da calúnia agravada, e o mesmo delito ou a difamação, quando cometidos ou divulgados em quaisquer modalidades de redes sociais da rede mundial de computadores (internet), cuja pena é triplicada.

É fácil perceber que os crimes de opinião possuem penas amenas e, em sua imensa maioria, são de pequeno potencial ofensivo e somente ensejarão a instauração de ação penal se forem praticados em concurso de delitos (soma das penas máximas ultrapassar a dois anos) ou se houver reiteração criminosa.

Enfim, não se deve confundir o exercício de direito protegido constitucionalmente com a prática de crime, que o transborda e se adequa perfeitamente a uma norma penal incriminadora, anotando que a dúvida sempre se resolve em favor do acusado.

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    é procurador de Justiça do MP-SP, professor, palestrante, mestre em Direito da Relações Sociais pela PUC-SP, especialista em Direito Penal pela ESMP-SP e autor de diversas obras jurídicas, entre elas "Comentários à Lei de Execução Penal", "Manual de Direito Penal", "Lei de Drogas Comentada", "Estatuto do Desarmamento", "Provas Ilícitas" e "Tutela Penal da Intimidade", publicados pela Editora Juruá.

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