Opinião

FTC e Facebook: a intersecção entre concorrência e proteção de dados

Autores

  • Bernardo de Souza Dantas Fico

    é mestre em Direito pela Northwestern University bacharel em Direito pela USP especializado em Direito Digital Direitos Humanos e Direitos LGBT advogado no escritório Opice Blum Bruno e Vainzof Advogados Associados coordenador do Núcleo de Proteção de Dados da USP (NPD-Techlab) e gestor institucional do Legal Grounds Institute.

  • Heitor Augusto Pavan Tolentino Pereira

    é graduando e pesquisador na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e coordenador do Núcleo de Proteção de Dados da USP (NPD-Techlab).

8 de setembro de 2021, 6h04

As maiores empresas de tecnologia do mundo desenvolveram-se de modo orgânico ou por meio de aquisições em um ambiente no qual houve, por parte do enforcement antitruste estadunidense, pouca atenção ou preocupação com intervenções que pudessem limitar a inovação. Até a primeira década do século 21, as big techs não enfrentaram obstáculos relevantes a seu crescimento, mesmo frente a estratégias agressivas competitivamente, que passado algum tempo, acabaram por gerar questionamentos sobre sua licitude e sobre efeitos deletérios sobre a concorrência. Hoje, empresas como Apple e Microsoft têm um valor de mercado respectivamente de US$ 2 trilhões e US$ 1,97 trilhão [1]; se as empresas fossem países, seus PIBs estariam na oitava e nona posições, com o Brasil na 14ª colocação [2].

Diferentemente da Europa, que conta com forte atuação da Comissão Europeia, os Estados Unidos não demonstraram, por anos, interesse em enfrentar as big techs. Esse cenário de regulação e enforcement hesitante, contudo, vem se alterando. Se por um lado há aqueles que sugerem que políticas antitruste aniquilam a inovação, é certo que diversos procedimentos antitruste têm sido ajuizados em face das big techs no norte global. Em agosto, no dia 19, a Federal Trade Commission (FTC), órgão responsável pela investigação e prevenção de condutas danosas à concorrência nos Estados Unidos, ajuizou novo caso em face do Facebook. A FTC pleiteia que o Facebook venda o Instagram e o Whatsapp, adquiridos por Mark Zuckerberg nos anos de 2012 e 2014, respectivamente. Antes de a ação ser ajuizada, Zuckerberg já havia enfrentado questionamentos perante o Congresso estadunidense a respeito do poder de mercado do Facebook, o que alimentou discussões a respeito de regulação para as big techs [3].

A FTC, ao instaurar novo procedimento em face do Facebook, dá um passo no sentido de sinalizar maior controle estatal sobre as operações das grandes empresas de tecnologia. Com efeito, apesar de seu caráter incipiente, esse procedimento poderá consolidar a tendência de valorização do antitruste nos Estados Unidos, possibilitando que os próximos anos sejam palco de mais mudanças paradigmáticas no mercado digital internacional. Recentemente, outro relevante fator entrou em cena. O presidente Joe Biden indicou Lina Khan à presidência da FTC, o que pode reforçar a tendência do órgão a seguir buscando medidas de enforcement às leis antitruste. Professora da Universidade de Columbia, Khan é conhecida por suas fortes críticas ao comportamento das big techs.

Em seu primeiro comunicado após tomar posse do cargo, Khan declarou estar "ansiosa para trabalhar para proteger o público de abusos corporativos" [4]. Já na presidência, também participou da condução de audiências e investigações do Subcomitê de Política Antitruste, Política de Concorrência e Direitos do Consumidor do Senado estadunidense sobre a intersecção entre o direito concorrencial e a proteção de dados pessoais, apontando para sua preocupação com o cerne das discussões das big techs nos últimos anos.

Sua presidência per se não implicaria mudança na agenda da FTC, pois são necessários três dos cinco membros para aprovar decisões. Contudo, os democratas Rebecca Slaughter e Rohit Chopra também apoiam a agenda antitruste, o que deve garantir os votos necessários para o maior controle de condutas anticompetitivas das empresas de tecnologia e maior proteção dos consumidores. A recente ação da FTC contra o Facebook deriva de alegações já conhecidas de que a empresa estaria abusando de sua posição de mercado. A diferença é justamente o caso estar sob a presidência de Khan e, presume-se, conter novas evidências.

A administração Biden endossou ainda outro crítico das big techs, o professor e advogado Tim Wu, nomeado para o cargo de conselheiro de Tecnologia e Política Concorrencial no âmbito do Conselho Econômico Nacional dos Estados Unidos. O professor destaca que as big techs têm papel relevante na formação de concentração econômica que considera extrema, o que acaba por gerar grandes desigualdades materiais. Essas desigualdades, segundo Wu, alimentariam lideranças extremistas ao redor do globo, com o potencial de causar significativos impactos negativos. Por isso, defende Wu que o antitruste é elemento necessário na solução dos problemas potencialmente nefastos causados pela concentração de mercado.

Com pouco mais de 200 dias de presidência, as ações de Biden têm se consolidado como uma forte resistência aos impulsos de crescimento e concentração das gigantes da tecnologia. Outros exemplos notórios de ações nesse sentido incluem o apoio do presidente e de congressistas democratas aos trabalhadores da Amazon em sua campanha por sindicalização; a continuidade do procedimento antitruste instaurado contra a Google ainda em 2020, sob a administração Trump; e o consenso previsto no Congresso estadunidense à respeito da revisão dos termos da Seção 230 do Communications Decency Act, que isenta de responsabilidade os provedores de aplicação por conteúdos compartilhados por usuários em suas plataformas digitais. Essas são ações particularmente notáveis tendo em vista que a Alphabet (controladora do Google) e a Amazon doaram, juntas, quase US$ 30 milhões à campanha eleitoral de Biden, com outros US$ 17 milhões tendo sido doados pela Microsoft. Notadamente, isso afetará como estas empresas utilizam dados pessoais, que representam parte expressiva de seu valor de mercado e faturamento.

A potencial mudança de paradigma no cenário estadunidense de avanço do antitruste pode ter impactos diretos no Brasil. Como vimos recentemente com a General Data Protection Regulation (GDPR), normas que regulamentam o mundo digital rapidamente influenciam mudanças em outros países. Quando a GDPR entrou em vigor na Europa, a lógica de proteção de dados começou a ser repensada em escala global, de forma que até os Estados Unidos — com posição de destaque na economia global, e usualmente avesso a seguir regulações de outros países — buscaram acordos para viabilizar o compartilhamento internacional de dados pessoais com o continente europeu; atualmente, esses acordos estão invalidados em razão das decisões em Schrems I e II [5].

Considerando-se que os Estados Unidos são berço de expressiva parte das empresas globais que atuam no mercado digital, a adoção de parâmetros mais restritivos em relação a criação de monopólios pode tanto legitimar a fiscalização mais rigorosa de outros países, quanto abrir espaço no mercado digital para novos agentes econômicos. Por exemplo, quaisquer ações que envolvam a mudança de estrutura de WhatsApp, Instagram e Facebook terão forte impacto no Brasil. Atualmente, as plataformas contam, juntas, com mais de 250 milhões de usuários no país. Sua relevância no Brasil já ficou muito bem demonstrada tanto pelos episódios de bloqueios judiciais do WhatsApp em território nacional, quanto pela nota conjunta emitida por ANPD, Cade, Senacon, e MPF em relação às mudanças na política de privacidade do WhatsApp abordando preocupações com proteção de dados, concorrência, e direito do consumidor.

Especificamente no que tange à intersecção de concorrência e proteção de dados no Direito brasileiro, destaca-se o Acordo de Cooperação Técnica nº 5/2021, firmado entre o diretor-presidente da ANPD e o presidente do Cade. O acordo é destinado ao combate às condutas anticompetitivas em âmbito digital e à disseminação da cultura da livre concorrência nas atividades relacionadas à proteção de dados pessoais. Essa é, inclusive, uma intersecção natural de atividades, dado que a própria LGPD já determina como um de seus fundamentos, no artigo 2º, VI, a livre concorrência. Assim, espera-se que as ações da FTC nos Estados Unidos possam impulsionar a efetividade do acordo entre ANPD e Cade ao criar um contexto mais receptivo à regulação destas grandes empresas.

Nas hipóteses de violação concomitante da LGPD e da Lei da Concorrência, o acordo prevê a coordenação cooperativa de trabalhos entre as autoridades, com vistas à otimização de suas respectivas competências, bem como a evitar entendimentos conflitantes, e promover segurança jurídica. A ANPD poderá impor sanções diversas, entre as quais encontram-se multa, publicação de infrações, suspensão de tratamento de dados, e outras medidas sancionatórias que podem ter impacto na reputação ou na própria atividade econômica da empresa responsável pelo tratamento desses dados. O Cade, por sua vez, tem a possibilidade de, entre outras sanções possíveis, determinar a dissolução parcial de empresas que abusem de sua posição dominante no mercado, à semelhança do que acaba de propor a FTC nos Estados Unidos. Assim, a ação conjunta desses órgãos é promissora numa perspectiva regulatória, mas apenas a prática poderá indicar sua real efetividade.

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    é mestre em Direito pela Northwestern University, bacharel em Direito pela USP, especializado em Direito Digital, Direitos Humanos, e Direitos LGBT, advogado de Proteção de Dados no escritório Sampaio Ferraz Advogados e coordenador do Núcleo de Proteção de Dados da USP (NPD-Techlab).

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    é graduando e pesquisador na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e coordenador do Núcleo de Proteção de Dados da USP (NPD-Techlab).

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