Opinião

Crimes políticos: competência para o julgamento dos delitos da Lei 14.197/2021

Autor

  • Diego Nunes

    é professor adjunto 2 de Teoria e História do Direito na UFSC doutor em Ciências Jurídicas membro do Instituto de Memória e Direitos Humanos (IMDH) co-líder do Ius Commune (UFSC/CNPq) e tutor do PET Direito UFSC.

8 de setembro de 2021, 6h36

Foi sancionada a Lei nº 14.197, de 1º de setembro, que acrescentou o Título XII ao Código Penal, criando crimes contra o Estado democrático de Direito. Além disso, ela revoga integralmente a Lei de Segurança Nacional. Os "crimes políticos", assim nomeados pela doutrina e pela Constituição, retornam ao Código Penal e passam a seguir integralmente as diretrizes da parte geral da codificação. Ganha-se com a lógica de sistema e a isonomia de sua aplicação aos crimes comuns, sinal de amadurecimento democrático.

Passam a ser consideradas crimes contra o Estado democrático de Direito condutas que atentem contra a soberania nacional, as instituições democráticas e os serviços essenciais, além de determinadas condutas contra a honra e a paz pública. Enfim, também se criminalizam condutas contrárias ao correto funcionamento das instituições democráticas durante o processo eleitoral e se apresentam disposições gerais.

Nesse sentido, cabe uma discussão relevante sobre a natureza jurídica de alguns desses delitos. Seriam os crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral (Capítulo III do novo título), além da nova redação dos artigos 141, II e 286, parágrafo único, crimes políticos? Para além de uma definição doutrinária de crime político ou "contra a ordem política e social", são para a Constituição um fator para atribuição de competência. No campo processual penal, os constituintes atribuíram à Polícia Federal "apurar infrações penais contra a ordem política e social" (artigo 144, § 1º, I), à Justiça Federal de primeira instância "processar e julgar […] os crimes políticos" (artigo 109, IV) e ao Supremo Tribunal Federal "julgar, em recurso ordinário […] o crime político" (artigo 102, II, "b").

Um critério meramente topográfico faria com que chegássemos à conclusão de que todos os crimes constantes no Título XII seriam políticos e, portanto, de atribuição federal e com o duplo grau de jurisdição diferenciado. Essa não parece, porém, a melhor solução.

Em primeiro lugar, porque o Capítulo III se refere expressamente ao processo eleitoral.

Nesse sentido, os crimes de interrupção do processo eleitoral (artigo 359-N) e comunicação enganosa em massa (artigo 359-O) — a se derrubar o veto — claramente se encaixam na questão e, portanto, são matéria da Justiça Eleitoral. No caso do crime de violência política (artigo 359-P), poder-se-ia cindir a sua competência com relação a quais direitos políticos estão em jogo: quando se tratar de ser votado e votar (em eleições, plebiscitos ou referendos), continua a Justiça Eleitoral a ser competente; nas hipóteses de lei de iniciativa popular e ação popular, parece que o caráter político não eleitoral se sobressai, salvo se for cometido de forma conexa a outro crime eleitoral.

Em segundo lugar, entender que apenas os crimes previstos nesse título fossem julgados como políticos impediria inclusive a aplicação da cláusula de salvaguarda do artigo 359-T à nova modalidade de incitação ao crime, que basicamente repete dispositivo da antiga LSN. De fato, a opção do legislador em localizar este delito como forma equiparada de crime contra a paz pública dificulta a sua utilização. Por outro lado, entender que justamente em um crime que pode ser cometido pela modalidade discursiva, oral ou escrita, não valha a especial proteção legal da liberdade de expressão é um lapso de grande monta, talvez o maior defeito de técnica legislativa da nova normativa. Na pior das hipóteses, a especial proteção do discurso seria tutelada diretamente pela interpretação das liberdades constitucionais, mas retiraria o julgamento desse delito daquele que é, por seu conteúdo, o seu juiz natural constitucionalmente previsto.

As coisas parecem ter um rumo diverso se pensarmos no destino dos crimes contra a honra. Trazer os chefes de poder ao artigo 141, II — à exceção do presidente da República, já previsto no artigo 141, I — parece ter sido, à luz do uso abusivo do artigo 26, LSN/1983, uma tentativa de retirar o caráter político do fato, ainda que ressalvando um especial respeito a tais figuras. Pela súmula 147 do STJ, a competência já é atribuída, quando a vítima for servidor público federal pelo exercício de sua função, à Justiça federal. Mas, a entender tais hipóteses ainda como crimes políticos, mudaria o órgão recursal, dos Tribunais Regionais Federais para o Supremo. Tal lógica parece não prosperar se pensarmos que a natureza da ação penal (artigo 145, parágrafo único), apesar de pública, é condicionada à requisição do ministro da Justiça (de forma anacrônica, pois à época não existia Advocacia-Geral da União), no caso do presidente da República, ou à representação do ofendido, no caso dos demais funcionários públicos, inclusos os presidentes das casas legislativas e do STF. Haveria sentido em restrições ao exercício da persecução penal em crimes contra o Estado democrático? Na LSN/1983, todos os crimes, incluso o artigo 26, eram de ação penal pública incondicionada, o que fazia sentido justamente pelo bem jurídico envolvido, o que parece perder razão a partir de agora.

Por fim, um efeito importante com referência ao caráter político dessas infrações diz respeito também à execução da pena. Aos condenados por crime político tradicionalmente é regalada a dita "custódia honesta", que basicamente significaria a ausência de regime penitenciário. É herança da tradição liberal que via o criminoso político como um altruísta, que sacrificava a própria liberdade em nome da luta pelas liberdades do povo. O 200 da LEP é mais econômico, apenas desobrigando os condenados por tais crimes de trabalhar, restando hígido o cumprimento das demais obrigações.

Todas essas questões, como se pode imaginar, serão fruto de intenso debate quando chegarem aos tribunais, que deverão meditar profundamente, seja em conflitos positivos ou negativos de competência.

Certamente, a melhor saída para a Lei nº 7.170, de 1983, era uma reforma ou a emanação de um novo texto. A Lei nº 14.197/2021, mesmo com as limitações acima listadas, é um passo avante diante dos desafios deste momento histórico. Claro, sempre se poderá avançar em matéria de salvaguarda das instituições democráticas.

Autores

  • é professor adjunto de Teoria e História do Direito nos cursos de graduação e pós-graduação stricto sensu da UFSC e professor convidado de diversos cursos de pós-graduação lato sensu no Brasil. Doutor em Ciências Jurídicas e advogado membro da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC.

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