Opinião

A Lei 14.195/2021 e a nova disciplina da citação

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8 de setembro de 2021, 10h43

A Lei 14.195, do último dia 25 de agosto, trata sobre uma diversidade de assuntos, todos supostamente ligados à desburocratização e à facilitação da atividade empresarial. Em relação ao Código de Processo Civil (CPC), sob a justificativa de operar uma "racionalização processual", a lei trouxe importantes alterações no tocante ao procedimento para a citação e às regras aplicáveis à prescrição intercorrente.

No que diz respeito à citação, as alterações tiveram por objetivo criar um sistema que permita a realização da citação por meio eletrônico e que privilegie essa modalidade de citação em detrimento das demais. Nesse passo, a lei acrescentou ao artigo 77 do CPC o dever das partes de "informar e manter atualizados seus dados cadastrais perante os órgãos do Poder Judiciário e, no caso do § 6º do art. 246 deste Código, da Administração Tributária, para recebimento de citações e intimações".

A grande alteração foi realizada no texto do artigo 246 do CPC, que teve sua redação quase que integralmente refeita e passou a apontar a citação "por meio eletrônico", "por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça", como a forma preferencial de citação do réu.

Segundo a nova disciplina, a citação eletrônica será feita por e-mail, cuja confirmação de recebimento deve ser encaminhada pelo réu no prazo de até três dias úteis, sob pena de aplicação de multa de até 5% do valor da causa por ato atentatório à dignidade da Justiça. Se não houver confirmação de recebimento, a citação não será considerada válida, sendo necessária a sua realização por outros meios.

Em havendo a confirmação de recebimento, o início do prazo para o réu tem começo no "quinto dia útil seguinte à confirmação, na forma prevista na mensagem de citação, do recebimento da citação realizada por meio eletrônico", conforme agora dispõe o artigo 231, IX, do CPC.

Mas qual o endereço de e-mail que deve ser utilizado pelo Poder Judiciário para encaminhamento da citação?

Segundo as novas regras, deverá ser criado um banco de dados do Poder Judiciário, a ser regulamento pelo Conselho Nacional de Justiça, no qual as partes deverão indicar o seu endereço eletrônico. No momento, no entanto, esse banco de dados não existe [1], de forma que a nova regra se mostra de difícil, senão impossível, implementação.

O CPC prevê, ainda, que em relação às microempresas e às pequenas empresas seja utilizado o endereço eletrônico cadastrado junto ao sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). Esse cadastro refere-se a dados dos empresários junto ao sistema da Receita Federal e demais entes da administração tributária, devendo haver compartilhamento de dados com o Poder Judiciário.

Na prática, a implementação das alterações depende da criação de uma série de cadastros e de sistemas de informação ainda não existentes. Atualmente, não é possível consultar o endereço de e-mail das partes nos cadastros previstos no caput ou no §6º do artigo 246 do CPC.

Outra característica dessas novas regras que chama a atenção é o fato de a citação não poder ser considerada válida caso a parte não confirme o recebimento da mensagem de e-mail, ainda que o endereço eletrônico seja aquele informado junto aos cadastros do Poder Judiciário. Ou seja, se o réu não confirmar o recebimento do e-mail, será necessária a realização da citação por outro meio, com possibilidade de aplicação de multa por ato atentatório à dignidade da justiça.

Essa característica da nova disciplina, a nosso sentir, enfraquece em muito a simplificação e a celeridade que parece ter sido inspiradora das regras. Ora, a pretexto de agilizar o andamento dos processos, a nova disciplina acabou criando mais um incidente processual e mais uma questão a ser debatida nos autos em prejuízo da matéria principal.

Mas a maior dificuldade de compreensão da nova disciplina parece ser a sua compatibilização com a disciplina anterior existente sobre a realização de citação por meio eletrônico.

Curiosamente, a citação por meio eletrônico já era prevista no texto original do artigo 246 do CPC, no seu inciso V e no §1º, o qual determinava sua preferência em relação às demais formas de citação e a obrigatoriedade de as "empresas públicas e privadas" manterem cadastro nos sistemas que permitiriam a realização da citação por esse meio.

A Lei 11.419/2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, prevê a realização de citação eletrônica por meio de portal próprio do Poder Judiciário (artigo 6º) e regulamenta a sua realização (artigos 2º, 5º e 9º). Essa disciplina para a realização dos atos de comunicação processual (intimação e citação) continua vigente, nos termos da Lei 11.419/2006 e do artigo 246, §§1º e 5º, do CPC.

A disciplina anterior detém uma vantagem gritante em relação à nova: a desnecessidade de confirmação do recebimento da citação eletrônica. Isso porque, nos termos do artigo 5º, §3º, da Lei 11.419/2006, caso a parte a ser intimada ou citada não realize a consulta do ato em até dez dias corridos contados da data do envio da intimação, será considerada a intimação automaticamente realizada na data do término desse prazo.

O CNJ regulamentou por meio da resolução 234/2016[2] a "plataforma de comunicações processuais" do Poder Judiciário, disciplinando a matéria de modo similar à Lei 11.419/2016 e apontando a obrigatoriedade de cadastro "para a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as entidades da administração indireta, bem como as empresas públicas e privadas, com exceção das microempresas e empresas de pequeno porte" (artigo 8º, §1º) e a facultatividade de cadastro para "pessoas físicas e jurídicas não previstas no parágrafo anterior" (artigo 8º, § 2º).

Note-se que, apesar de se tratar de duas modalidades de citação por meio eletrônico, as suas disciplinas e as formas de realização são bastante diversas. No modelo já existente, a citação ou a intimação se fazem por meio de portais mantidos pelo Poder Judiciário, os quais são acessados pelas partes; já no modelo novo, a citação se faz por meio de encaminhamento de mensagem eletrônica de e-mail junto aos endereços cadastrados.

O primeiro modelo funciona atualmente, mas tem aplicação ainda bastante restrita, especialmente em relação a entes públicos (procuradorias, Defensoria Pública e Ministério Público) e a algumas pessoas jurídicas cadastradas[3].

A dificuldade de implementação desse primeiro modelo reside justamente na obrigatoriedade de as partes manterem cadastro junto ao sistema de processo em autos eletrônicos: apesar de ser obrigatório para as "empresas públicas e privadas" (CPC, artigo 246, §1º), não há mecanismos eficientes para a imposição dessa obrigatoriedade.

Ocorre que a mesma dificuldade para impor às partes a manutenção do cadastro junto ao sistema vai existir no tocante à imposição às partes da obrigatoriedade de manter atualizado o seu endereço eletrônico junto ao banco de dados a ser criado pelo CNJ…

Analisando-se com cuidado as novas disposições legais e com olhos à convivência entre as duas modalidades de citação, entendemos que a citação por meio do portal próprio do Poder Judiciário continua vigente e continua a ser o meio preferencial para a realização da citação em relação às "empresas públicas e privadas" e "à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades da administração indireta" (nos termos do artigo 246, §§1º e 2º, do CPC).

Essa forma também será preferencial em relação às microempresas e às pequenas empresas, desde que não possuam endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Redesim (artigo 246, §5º, do CPC).

Essa conclusão se extrai de dois fundamentos: primeiramente, não houve revogação da Lei 11.419/2006; além disso, o artigo 246, §1º, do CPC manteve a sua redação praticamente inalterada, de modo que devemos entender que a modalidade de citação eletrônica anteriormente existente continua vigente (como já apontamos acima, essa modalidade é diferente da citação por e-mail).

Analisando-se com cuidado as disposições do artigo 246 do CPC, percebe-se que o caput traz como regra geral a citação "por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça". No entanto, logo em seu §1º, o mesmo artigo traz uma regra especializada aplicável às "empresas públicas e privadas", prevendo a preferência de citação por meio dos "sistemas de processo em autos eletrônicos".

O §1º do artigo 246 traz uma regra especial em relação ao caput, a qual se aplica também "à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades da administração indireta" (§2º) e as microempresas e pequenas empresas que não possuam endereço eletrônico cadastrado junto ao sistema integrado da Redesim (§5º).

Anote-se, ainda, que essa parece ser a melhor conclusão à luz do princípio da eficiência, tendo em vista que a modalidade de citação por meio do próprio sistema do Poder Judiciário mostra-se muito mais eficaz e célere do que a citação por e-mail.

Em conclusão:

— A citação por meio dos sistemas de processo em autos eletrônicos (portais do próprio Poder Judiciário, que têm por maior expoente a plataforma de comunicações processuais do CNJ) continua a ser o meio preferencial de citação para as empresas públicas e privadas, para a União, os estados, o Distrito Federal, os municípios e as entidades da administração indireta e para as microempresas e pequenas empresas que não tenham o endereço eletrônico cadastrado junto ao sistema da Redesim;

— A citação por correio eletrônico (ou seja, por mensagem de e-mail a ser encaminhada para o endereço previamente cadastrado pela parte no banco de dados do Poder Judiciário) é preferencial para as pessoas físicas e para as microempresas e pequenas empresas que tenham seu endereço eletrônico cadastrado junto ao sistema da Redesim. No entanto, esse meio também pode ser utilizado em relação às pessoas indicadas no item acima [4], desde que não estejam cadastradas no sistema de processo em autos eletrônicos do Poder Judiciário;

— Não sendo possível a citação por qualquer desses meios eletrônicos, ou na hipótese de ausência de confirmação de recebimento da citação por e-mail, a citação deverá ser feita por correio (preferencialmente), por oficial de justiça, pelo escrivão ou chefe da secretaria, se o citando comparecer em cartório, ou por edital (artigo 246, §1º-A, do CPC).

Algumas considerações devem ainda ser feitas.

O artigo 247 do CPC, em sua nova redação, traz regras de exceção à citação eletrônica que devem ser analisadas com cuidado, uma vez que claramente o legislador se descuidou na redação do dispositivo legal.

Assim, a citação por meio eletrônico ou por correio não é admissível nas ações de Estado, quando o citando for incapaz ou quando o autor, justificadamente, a requerer de outra forma (incisos I, II e V do artigo 247).

Em relação às pessoas de direito público, a disposição do artigo 247, III, claramente está em contradição com o artigo 246, §§1º e 2º, do CPC. A melhor interpretação desta disposição, à luz da regra expressa do artigo 246, §§1º e 2º, do CPC é no sentido de que as pessoas de direito público não podem ser citadas por correio ou por e-mail, na forma do caput do artigo 246 do CPC, sendo possível unicamente a citação eletrônica por meio do sistema de processo em autos eletrônicos (como, aliás, ocorre atualmente).

Da mesma forma, não parece fazer sentido impedir a citação eletrônica na hipótese do inciso IV do artigo 247 do CPC, uma vez que, "quando o citando residir em local não atendido pela entrega domiciliar de correspondência" ele poderá ainda assim ser citado por e-mail, não havendo qualquer impedimento para que isso ocorra.

Em conclusão a essas breves anotações, entendemos que a nova disciplina da citação trazida pela Lei 14.195/2021, apesar de bem intencionada, é confusa e não enfrenta o principal problema que envolvia a citação eletrônica já prevista no sistema anterior, que é a obrigatoriedade de as partes (e, aqui, entenda-se especialmente os grandes litigantes) manterem cadastro junto aos sistemas do Poder Judiciário.

As duas modalidades de citação eletrônica padecem da mesma dificuldade de implementação: em ambos os casos a obrigatoriedade de prévio cadastramento da parte (seja junto ao sistema de processo em autos eletrônicos, seja junto aos bancos de dados do Poder Judiciário) não detém meios eficientes de imposição.

Veja que a multa prevista no artigo 246, §1º-C, do CPC não se aplica para a hipótese de ausência de cadastro, mas, sim, para a hipótese de a parte, que já detenha cadastro, deixar de confirmar o recebimento da citação eletrônica. Ou seja, essa multa não resolve o principal problema da modalidade eletrônica anteriormente existente.

A nova modalidade de citação é, portanto, pouco assertiva e dificilmente incrementará a eficiência do processo (inclua-se aqui a celeridade e a economia processual), uma vez que não traz solução para a obrigatoriedade de manutenção de cadastros pelas partes e cria uma modalidade de citação que depende da confirmação da própria parte.

As novas disposições legais pecam pela atecnia e pela falta de clareza: não está claro se a modalidade eletrônica deve ser adotada preferencialmente em relação a todo e qualquer litigante; não está clara a convivência entre a nova citação eletrônica (por e-mail, prevista no caput do artigo 246) e aquela anteriormente prevista no CPC e disciplinada pela Lei 11.419/2006.

Entendemos, finalmente, que a modalidade de citação eletrônica já vigente anteriormente, atualmente disciplinada pela Lei 11.419/2006 e pela resolução 234/2016 do CNJ, deve ser mantida como forma preferencial de citação para as empresas públicas e privadas, para a União, os estados, o Distrito Federal, os municípios e as entidades da administração indireta e para as microempresas e pequenas empresas que não tenham o endereço eletrônico cadastrado junto ao sistema da Redesim.

A citação eletrônica por e-mail deve ser utilizada residualmente, em relação às hipóteses em que não seja possível a citação por meio dos sistemas de processo em autos eletrônicos.

 


[1] Atualmente existe regulamentação no CNJ sobre a plataforma de comunicações processuais do Poder Judiciário, o que não se confunde com o banco de dados previsto no atual caput do artigo 246 do CPC.

[3] A lista das empresas cadastradas junto ao portal do Tribunal de Justiça de São Paulo para o recebimento de citações eletrônicas conta atualmente com 43 (quarenta e três) nomes e se encontra disponível neste link: https://www.tjsp.jus.br/Download/SPI/Downloads/Lista_CNPJS_IntimacaoEletronica.pdf?d=1630689028023.

[4] Com exceção das pessoas de direito público, conforme veremos abaixo.

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