Opinião

A demonstração do dano à coletividade nos crimes contra a ordem tributária

Autores

  • Alexandre Ayub Dargél

    é advogado criminalista professor de Processo Penal mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e doutor em Filosofia (Unisinos).

  • Christian Corsetti

    é advogado criminalista no Brasil e em Portugal mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) onde também concluiu a pós-graduação em Law Enforcement Compliance e Responsabilidade Empresarial.

7 de setembro de 2021, 15h44

A questão que trazemos para discussão neste artigo cinge-se à aplicação da causa de aumento de pena prevista no inciso I do artigo 12 da Lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária e a forma como os tribunais superiores vêm enfrentando essa relevante questão ao analisarem os casos concretos.

Referido dispositivo legal apresenta um conceito aberto e indeterminado ao definir que o grave dano à coletividade é uma das circunstâncias que pode agravar de um terço até a metade as penas previstas nos artigos 1º, 2º e 4º a 7º da Lei 8.137/90.

A nosso juízo, os critérios manejados pelos tribunais superiores para majorar a pena, nos crimes contra a ordem tributária, violam frontalmente preceitos fundamentais do Direito Penal, do Direito Processual Penal e em especial da Constituição Federal, conforme será demonstrado no estudo que realizamos dos recentes julgamentos proferidos tanto pelo Superior Tribunal de Justiça quanto pelo Supremo Tribunal Federal.

Nessa linha, destacamos inicialmente que as normas penais sancionadoras devem descrever condutas determinadas e com precisão de detalhes, principalmente para permitir que o seu destinatário possa compreender o alcance do tipo penal incriminador, mas, acima de tudo, defender-se adequadamente das investidas estatais.

Aliás, uma corrente mais garantista, capitaneada pelo professor Luigi Ferrajoli, ao descrever o princípio da legalidade estrita, ensina que: "A legalidade estrita ou taxatividade dos conteúdos, tal como resulta de sua conformidade para as demais garantias, por hipótese de hierarquia constitucional, é, ao revés, uma condição de validade ou de legitimidade das leis vigentes" [1].

Em seguida o mestre italiano ainda esclarece: "O princípio cognitivo de legalidade estrita é uma norma metalegal dirigida ao legislador, a quem prescreve uma técnica específica de qualificação penal, idônea a garantir, com a taxatividade dos pressupostos da pena, a decidibilidade da verdade de seus enunciados" [2].

Por essa razão, o artigo 12, inciso I, da Lei 8.137/90 já ensejou inúmeras discussões nas cortes superiores, justamente por apresentar esse conceito aberto e indeterminado da causa de aumento de pena circunstanciada no grave dano à coletividade.

Primeiramente, não se trata de uma agravante, como prevista na cabeça do artigo 12, mas, sim, de uma causa de aumento, que incide na terceira fase da dosimetria da pena. Daí já é possível precipitar que o legislador não possuía muita familiaridade com o Direito Penal. Em segundo, o que vem a ser grave dano à coletividade? A lei não delineou o tema, deixando a cargo do julgador a tarefa de fechar o conceito específico pela análise do caso concreto, amparado substancialmente nas provas juntadas no curso da instrução processual, tanto pela da acusação quanto pela defesa, em atenção ao disposto no artigo 93, inciso IX, da Carta da República.

Dessa forma, a certeza quanto ao grave dano à coletividade não pode, em hipótese alguma, ser presumida, devendo a própria lei expor o dano e a acusação demonstrá-lo em todos os seus aspectos, sob pena de violação do próprio artigo 41 do Código de Processo Penal.

Ora, se a causa de aumento fala em grave dano à coletividade, esse dano é concreto, havendo, por esse motivo, a necessidade de demonstração pormenorizada nos autos do processo pelo órgão acusador, não podendo, evidentemente, ser abstrato ou simplesmente presumido, pois essas modalidades só são admitidas nos crimes de perigo, jamais nos crimes de dano, como é o caso em destaque.

Superadas essas premissas básicas e iniciais, a discussão acerca da gravidade do dano à coletividade não pode encerrar-se e ser aceita como válida, tão somente em razão do valor da dívida fiscal ultrapassar determinada quantia, seja de R$ 1 milhão, para o aumento de um terço da pena, seja de R$ 10 milhões, para a majoração da pena em metade. Pois estabelecer um critério objetivo, apartado do caso concreto, para uma questão que dá margem a significativa subjetividade, principalmente em um país de extensões continentais, não é a forma mais adequada para a solução do problema.

A adoção exclusivamente de um critério quantitativo para fundamentar a majoração da pena acarreta inúmeros questionamentos e prejuízos. Pois quando o crédito tributário ultrapassar a cifra do bilhão aplicar-se-á a mesma fração de metade que foi adotada para as dívidas fiscais que superam o valor de R$ 10 milhões? Assim agindo, não estará o julgador incorrendo em violação do princípio da proporcionalidade, que é tão caro ao nosso ordenamento jurídico?

Enfim, apesar de o Plenário do Supremo Tribunal Federal ainda não ter assentado um entendimento firme acerca da matéria trazida a debate, tanto a 1ª Turma quanto a 2ª estão aplicando essa equivocada interpretação, quando os crimes contra a ordem tributária envolvem tributados federais, conforme podemos observar no julgamento do ARE 123.704 AgR, de relatoria do eminente ministro Ricardo Lewandowski, em 7/2/2020, que afirmou: "Assim, relativamente à alegada inconstitucionalidade do inciso I do artigo 12 da Lei 8.137/1990, observo que o Supremo Tribunal Federal, por várias vezes, já se pronunciou a respeito do referido dispositivo, decidindo pela respectiva aplicação e asseverando que o quantum sonegado é elemento suficiente para a caracterização do grave dano à coletividade e, portanto, pode ser utilizado como parâmetro para a aplicação dessa circunstância agravante".

Nessa mesma linha de argumentação posiciona-se o Superior Tribunal de Justiça, inclusive pela 3ª Seção, conforme entendimento adotado no julgamento do REsp 1.849.120/SC, de relatoria do eminente ministro Nefi Cordeiro, em 11.3.2020, que decidiu: "2. A majorante do grave dano à coletividade, prevista pelo artigo 12, I, da Lei 8.137/90, restringe-se a situações de especialmente relevante dano, valendo, analogamente, adotar-se para tributos federais o critério já administrativamente aceito na definição de créditos prioritários, fixado em R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), do artigo 14, caput, da Portaria 320/PGFN".

Pois bem, quando os tribunais superiores passaram a admitir nos crimes tributários a incidência do princípio da insignificância para afastar a tipicidade material, lançaram mão de uma analogia, em razão do valor fixado no artigo 20 da Lei 10.522/2002, atualizado pelas portarias 75/2012 e 130/2012 do Ministério da Fazenda. Até aqui, tudo bem, porque estamos diante de uma analogia in bonam partem, que é permitida no Direito Penal.

No entanto, adotar o critério de grandes devedores ou da prioridade de tratamento conferido pela Fazenda Nacional, em razão do disposto no artigo 14 da Portaria 320/PGFN, é manifestamente ilegal, pois viola fundamento básico e elementar do Direito Penal, qual seja, a vedação da analogia in malam partem.

Além disso, o inciso I do artigo 12 da Lei 8.137/90, apesar de ser um dispositivo que apresenta um conceito aberto e indeterminado, não é uma norma penal em branco, que admite a utilização de uma portaria ministerial, expedida pelo Poder Executivo, para sua complementação, como sói acontecer com a Portaria 344/98 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde nos crimes de drogas previstos na Lei 11.343/06.

As normas penais incriminadoras até podem trazer conceitos abertos e indeterminados, conforme entendimento de parte da doutrina, mas essas normas que apresentam conceitos abertos e indeterminados devem ser passíveis, ao menos, de uma determinação posterior, através de um lastro probatório mínimo demonstrado pela acusação na própria peça acusatória em obediência ao artigo 41 do CPP, como forma efetiva de justificação da incidência da majorante da pena, em respeito ao princípio da congruência, bem como deverá ser comprovada no decorrer da instrução criminal.

Mas os nossos tribunais parecem ter uma necessidade de estabelecer parâmetros mínimos é máximos para o exercício do punitivismo. Esse mesmo formato de decisão, aliás, foi adotado para a aplicação do princípio da insignificância nos crimes tributários, fixando-se a quantia de R$ 20 mil. Igualmente na insignificância dos crimes patrimoniais, com o estabelecimento do valor de até R$ 100 para sua aplicação. E não podemos olvidar ainda do tratamento conferido ao pequeno valor da coisa furtada (artigo 155, § 2º, do CP), que adota como limite de referência a quantia de um salário mínimo.

Entretanto, nessas situações acima elencadas, todas elas servem para beneficiar o acusado e não para lhe impor uma sanção mais gravosa do aquela trazida no próprio tipo penal.

E não paramos por aqui, pois, para agravar ainda mais a situação atual, a referida portaria 320/PGFN, publicada no ano de 2008, até o presente momento não sofreu qualquer atualização, ao contrário do que ocorre com os créditos tributários que são atualizados mensalmente pela Fazenda Pública.

Daí voltamos ao julgamento da 3ª Seção do Superior de Tribunal de Justiça, no REsp 1.849.120/SC, cujo voto condutor é da lavra do ministro Nefi Cordeiro, de 11/3/2020, que estabeleceu na largada: "1. O dano tributário é valorado considerando seu valor atual e integral, incluindo os acréscimos legais de juros e multa".

Com a devida vênia, mas essa é mais uma interpretação equivocada que a Corte Cidadã vem utilizando para majorar a pena dos crimes tributários, pois a adoção de um parâmetro fixo para valoração de créditos tributários que são variáveis no tempo, uma vez que reajustados mensalmente, não confere qualquer segurança jurídica, inviabilizando, consequentemente, a ampla defesa e o contraditório. Ainda, agregar acréscimos legais, juros e multa para compor o valor do dano é exagerado, pois a multa pela sonegação, por exemplo, não pode ser usada para o cálculo do valor do dano.

Para além desses argumentos apresentados acima, levando-se em consideração a arrecadação tributária federal de 2020, que superou a quantia de R$ 1,479 trilhão, o valor de R$ 1 milhão representa apenas 0,000067613%. Caso a comparação seja com o importe de R$ 10 milhões, que é a quantia adotada para a majoração da pena em metade, a representação é de 0,00067613%.

Trocando em miúdos, não é crível que quantias de insignificante representatividade sejam capazes de ocasionar um grave dano à coletividade.

Ousamos argumentar inclusive que a quantia de R$ 1 milhão, frente à arrecadação tributária federal, deveria ser considerada insignificante, pois nem mesmo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional confere tratamento prioritário aos processos judiciais em curso, que apresentam uma dívida fiscal inferior a essa quantia de R$ 1 milhão.

Aliás, grosso modo, considerando-se a insignificância conferida aos crimes patrimoniais, qual seja, R$ 100, essa quantia representa 0,603864% da renda per capta familiar anual do nosso país, que, segundo dados fornecidos pelo IBGE do ano de 2020, foi de R$ 16.560. Então, não seria nada equivocado afirmar que 0,000067613% é efetivamente um valor insignificante em face da vultosa arrecadação tributária do Brasil.

Por outro lado, em recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, disponibilizado no último dia 20, a 5ª Turma, guiada pelo voto condutor do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, no HC 678.674/SP, ao apreciar um crime de sonegação de ICMS no estado de São Paulo, decotou da pena aplicada a causa de aumento prevista no inciso I do artigo 12 da Lei 8.137/90 simplesmente porque o ente tributante não definiu o valor dos créditos prioritários nem o conceito de grandes devedores, como podemos observar: "3. No caso específico do estado de São Paulo, conforme elucidado no julgamento do HC 549.066/SP, o sujeito ativo tributário não definiu o valor dos créditos prioritários nem definiu o conceito de grande devedor. Assim, não havendo prévia definição do montante apto a causar grave dado à coletividade na esfera estadual, mister se faz a indicação de "algum elemento concreto, além do valor sonegado, a fim de evidenciar a ocorrência do dano à coletividade" (AgRg no HC 549.066/SP, relatora ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 7/12/2020, DJe 18/12/2020). 4. Nessa linha de intelecção, não se tendo agregado elemento concreto apto a revelar que o valor sonegado possui prioridade ou inclui o paciente no rol de grandes devedores, haja vista a ausência de norma nesse sentido ou de fundamentação nessa direção, se faz imperativo o decote da causa de aumento. 5. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para decotar a causa de aumento descrita no artigo 12, inciso I, da Lei nº 8.137/1990".

Agora, além de violação do princípio da isonomia, atinge-se frontalmente a segurança jurídica das decisões, pois está sendo conferido tratamento diferenciado para sujeitos que se encontram idêntica situação. O simples fato de um estado da federação não possuir uma norma definidora do valor dos créditos prioritários nem o conceito de grandes devedores, não terá a causa de aumento do inciso I do artigo 12 da Lei 8.137/90 aplicada nos crimes praticados contra a ordem tributária.

Esse é mais um dos motivos para não se permitir a adoção desse critério de julgamento, qual seja, a analogia in malam partem de portarias expedidas pelo Poder Executivo para fundamentar a majoração da pena nos crimes contra a ordem tributária, afastando-se, com isso, a responsabilidade da parte acusadora da demonstração concreta do grave dano à coletividade. Até porque, lançar os olhos para o valor da dívida fiscal não é fundamento idôneo para justificar o agravamento da pena.

Enquanto os nossos tribunais continuarem julgando dessa maneira equivocada, desconsiderando a necessidade de comprovação fática do grave dano à coletividade, conforme exposto acima, não vamos alcançar segurança jurídica apta a garantir os direitos individuais do cidadão, pois a falta de critérios técnicos, objetivos e concretos nas decisões judiciais, afastam a possibilidade do exercício da ampla defesa e do contraditório, bem como a aplicação igualitária das normas penais incriminadoras em toda a sua extensão, dificultando-se, consequentemente, a manutenção do Estado democrático de Direito.

 


[1] FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão: teoria do garantismo penal, 3ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 76.

[2] Idem.

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