Defesa da concorrência

Antitruste comportamental: pronto para o palco principal?

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6 de setembro de 2021, 8h00

A literatura antitruste comportamental tem ganhado espaço nos últimos anos ao argumentar que com a incorporação da abordagem comportamental várias questões antitruste poderiam ser mais bem compreendidas [1]. Em um artigo acadêmico, com um título que causa controvérsia  e que eu coloquei em forma de indagação no título desta coluna , "Antitruste comportamental: não está pronto para o palco principal" [2], o professor Roger Van den Bergh, da Universidade Erasmo de Roterdã, questionou a visão de que a irracionalidade das firmas seria uma hipótese melhor para explicar e prever o comportamento do mercado e formular as regras da concorrência. Essa visão é compartilhada por Devlin e Jacobs (2013) ao salientarem que, mesmo que a abordagem comportamental possa, às vezes, descrever o passado, ela é incapaz de prever o futuro  uma falha fatal para qualquer método de análise antitruste. Essa discussão tem ganhado cada vez mais espaço nos fóruns nacionais e internacionais sobre a política de defesa da concorrência.

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A economia comportamental surgiu dentro do campo da microeconomia e utiliza os ensinamentos da neurociência e das ciências sociais para entender os limites das hipóteses da teoria da escolha racional (rational choice theory). Com base em estudos empíricos experimentais, a economia comportamental caracteriza o comportamento humano como sendo de racionalidade limitada, com força de vontade limitada e interesse próprio limitado [Jolls, Sunstein, Thales (1998); Heinemann (2015)]. De forma simples, argumenta-se que as limitações e falhas cognitivas dos seres humanos fazem com que eles fujam das previsões da rational choice theory de maximização da utilidade, por meio do cometimento de erros de julgamento na tomada de decisão, apresentem falta de paciência ao decidir, além de levarem em consideração conceitos de justiça para a tomada de decisão. Nesse sentido, os defensores da economia comportamental criticam os modelos de agentes racionais, argumentando que consumidores podem reagir de maneira muito diferente em circunstâncias semelhantes, e o mesmo indivíduo pode agir racionalmente em um mercado, mas não em outro. Por outro lado, ao defender a microeconomia neoclássica, Posner (1997) argumentava que a escolha racional não precisa ser uma escolha consciente. A "história" da economia comportamental aplicada ao antitruste é dinâmica e continua a ser contada, especialmente no ambiente dos mercados digitais [3]. Essa literatura discute os traços comportamentais dos consumidores e como as empresas podem responder a eles. Tal literatura destaca que não apenas os consumidores, mas também as empresas podem estar sujeitas a vieses comportamentais [4].

Por outro lado, os críticos à abordagem comportamental argumentam que a utilidade do referido ferramental é restringida pelos resultados ambíguos que ela fornece. Nesse sentindo, Wright e Stone (2012) demonstram como o antitruste comportamental falha em fornecer uma base rigorosa e coerente para prever sistematicamente quais empresas sofrem de vieses comportamentais e quais não [5]. Tais autores vão além e formulam o "teorema da irrelevância", segundo o qual, se presumirmos que um determinado viés comportamental se aplica a todas as empresas  tanto incumbentes quanto entrantes , as implicações da política antitruste comportamental não diferem daquelas geradas pelos modelos de escolha racional da análise antitruste convencional. Wright e Stone (2012) concluem chamando os defensores do antitruste comportamental para demonstrarem, ao invés de presumirem, que os princípios comportamentais podem gerar uma maior taxa de retorno, em termos de bem-estar, para os consumidores.

Aqui parece estarmos vivendo em mundos separados por duas tribos em que a teoria microeconômica neoclássica fundada na racionalidade dos agentes econômicos não conversa com a economia comportamental. Nesse ponto, reafirmo o que já escrevi em um artigo anterior da ConJur: "As análises concorrenciais baseadas no bem-estar da teoria neoclássica levaram a uma maior previsibilidade na tomada de decisões do Judiciário e das autoridades antitruste ao redor do mundo" [6]. Entretanto, essa conclusão não implica necessariamente excluir as contribuições e sinergias da economia comportamental nas análises concorrenciais. Nesse sentido, Bergh (2013) afirma que o antitruste comportamental pode enriquecer, mas não pode substituir a análise microeconômica convencional. Além disso, vale ressaltar que a própria microeconomia neoclássica, ao abordar a economia da informação, a teoria da firma e a teoria dos jogos, consegue tratar, em certa medida, da racionalidade limitada e dos problemas de informação incompleta.

Nesse sentido, não há dúvidas sobre a existência de comportamentos racionalmente limitados. Como bem colocado por Heinemann (2015), a questão normativa é como a política, e as normas deveriam responder a este fato. Tendo em vista esse contexto, é importante buscarmos resposta para a seguinte pergunta: de que forma o antitruste comportamental poderia contribuir na análise concorrencial?

Um exemplo em que é possível observar os limites e as complementariedades do antitruste comportamental é na definição de mercado relevante. Nessa etapa inicial da análise concorrencial, pode-se afirmar que os insights comportamentais não mudam significativamente a prática associada a tal definição de mercado. O teste do monopolista hipotético (ou teste SSNIP) continua sendo a estrutura conceitual apropriada para definir o mercado relevante na presença de vieses comportamentais do consumidor [7]. Como o teste SSNIP se preocupa com a forma como os consumidores respondem ao preço, e não com o motivo, geralmente não é relevante se essas respostas são influenciadas por vieses (Oxera, 2013). De fato, Wright e Stone (2012) afirmam que a análise antitruste convencional já incorpora o comportamento real do consumidor  racional ou não. Por sua vez, os insights da economia comportamental sobre por que motivos os consumidores se comportam de uma determinada maneira ajudariam na construção da análise de definição de mercado relevante (por exemplo, ao especificar o modelo econométrico ou pesquisa a ser realizada) e na interpretação e na compreensão dos resultados da análise.

Outros exemplos podem ser dados por meio das análises de acordos restritivos à concorrência (horizontais ou verticais) e das fusões & aquisições que podem ser avaliadas apropriadamente usando a abordagem tradicional. No entanto, uma série de insights úteis da literatura de economia comportamental sobre os vieses do consumidor e da empresa podem ser usados para complementar a análise antitruste convencional (Oxera, 2013). Um outro campo que pode ser bem explorado é o desenho de remédios antitruste utilizando insights comportamentais. Nesse ponto, as autoridades antitruste precisam entender melhor o lado da demanda, em termos de como os consumidores realmente se comportam. A economia comportamental aponta para soluções inteligentes que lidam de forma eficaz com vieses comportamentais, procurando corrigi-los ou encontrando maneiras de trabalhar com os vieses dos consumidores para oferecer melhores alternativas de remédios antitruste (em vez de tentar resolver os vieses). Nesse sentido, o uso de padrões opt-in ou opt-out em que é clara a existência de um resultado superior para os consumidores [8], o remédio antitruste pode definir uma alternativa como a padrão, sem restringir a capacidade dos consumidores de escolher uma outra opção.

Os insights da economia comportamental para a análise concorrencial continuarão a refinar o pensamento antitruste. Entretanto, tais insights não justificam uma mudança da política antitruste tradicional. Em resumo, diante de toda argumentação exposta nesse breve artigo, pode-se afirmar que "o antitruste comportamental é uma apresentação paralela e (ainda) não está pronto para o palco principal" (Bergh, 2013).

 

Referências bibliográficas
Bergh, Roger Van den (2013) Behavioral Antitrust: not read for the main stage, Journal of Competition Law & Economics, Volume 9, Issue 1, p. 203–229.

CADE (2016) Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal, 2016. Disponível em: https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-para-analise-de-atos-de-concentracao-horizontal.pdf

Devlin, Alan James; Jacobs, Michael S. (2013) The Empty Promise of Behavioral Antitrust, 37, Harvard Journal of Law and Public Policy 1009.

Heinemann, Andreas (2015) Behavioural Antitrust – A 'More Realistic Approach' to Competition Law. Klaus Mathis (ed.), European Perspectives on Behavioural Law and Economics, p. 211 – 242.

Jolls, Christine; Sunstein, Cass R.; Thaler, Richard (1998) A Behavioral Approach to Law and Economics. Stanford Law Review. Vol, 50, p. 1476-1480.

Lancieri, Filippo Maria; Sakowski, Patrícia Alessandra Morita (2020) Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados. Documento de Trabalho nº 005/2020-DEE.

Mehta, J. (Ed.), Fatas, E., Fletcher, A., Hargreaves-Heap, S., Harker, M., Hanretty, C., Hviid, M., Lyons, B., Mariuzzo, F., Sugden, R., Waddams, C., Zhu, M., & Mehta, J. (2013). Behavioural Economics in Competition and Consumer Policy. ESRC Centre for Competition Policy.

Mitchell, Gregory (2004) Libertarian Paternalism is an Oxymoron. FSU College of Law, Public Law Research Paper No. 136; FSU College of Law, Law and Economics Paper No. 05-02.

Oxera (2013) Behavioural economics and its impact on competition policy: A practical assessment with illustrative examples from financial services. Prepared for The Netherlands Authority for Consumers and Markets (ACM).

Posner, Richard A. (1997) Rational Choice, Behavioral Economics, and the Law, 50 Stanford Law Review 1551.

Stucke, Maurice E (2007). Behavioral Economists at the Gate: Antitrust in the Twenty-First Century, 38 Loy. U. Chi. L. J. 513, p. 515.

Wright, Joshua D.; Stone, Judd E. (2012) Misbehavioral Economics: The Case Against Behavioral Antitrust. Cardozo Law Review, Vol. 33, No. 4, pp. 1517-1533, George Mason Law & Economics Research Paper No. 11-23.


[1] Por exemplo, o livro editado por Mehta (2013) mostra alguns dos principais argumentos e insights da economia comportamental na política concorrencial.

[2] Ver Bergh (2013).

[3] Ver Lancieri e Sakowski (2020).

[4] Ademais, Heinemann (2015) discute como as atividades de órgãos públicos e seus servidores (como as autoridades de defesa da concorrência) estão sujeitas aos vieses comportamentais.

[5] Mitchell (2004) destaca esse ponto no contexto dos indivíduos.

[6] Resende, G. M. (2021) O diálogo necessário no antitruste. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-26/defesa-concorrencia-dialogo-necessario-antitruste.

[7] A sigla significa "pequeno, porém significativo e não transitório aumento dos preços" (em inglês, Small but Significant Non-transitory Increase in Price, SSNIP), normalmente definido como um aumento de preço de 5% ou 10% em um ano. O Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do Cade (2016) explica que o teste de monopolista hipotético é usado para determinar se um mercado relevante de produto ou geográfico está definido corretamente sendo a primeira etapa na análise concorrencial clássica. Ao aplicar o teste, a questão colocada é se um monopolista hipotético pode lucrativamente impor um pequeno, mas significativo e não transitório aumento dos preços no mercado relevante analisado. Se a resposta à pergunta feita for sim, e o aumento de preço for lucrativo para o monopolista hipotético, então o mercado está definido corretamente e, a partir daqui a análise concorrencial pode prosseguir. Se um monopolista hipotético não puder impor lucrativamente um SSNIP, então o mercado relevante (de produto ou geográfico) está definido de forma muito restrita e deve ser expandido.

[8] Essa discussão esteve presente no ato de concentração nº 08700.002792/2016-47 que foi analisado pelo Cade. Segundo voto do Conselheiro relator Paulo Burnier: "Um dos motivos especulados para a não efetivação do cadastro positivo seria o modelo adotado pela legislação brasileira, no qual o consumidor precisa realizar uma autorização para que suas informações sejam compartilhadas (opt-in) em oposição ao modelo inverso (opt-out) em que o consumidor está automaticamente inserido no cadastro positivo e, para que seja excluído deste cadastro, deve expressamente declarar neste sentido".

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