Processo Tributário

O peculiar sincretismo processual na cobrança do crédito tributário

Autor

  • Luis Claudio Ferreira Cantanhêde

    é procurador do estado de São Paulo doutor e mestre em Direito pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e em Direito do Estado pela Espge-SP professor no curso de pós-graduação de Direito Tributário e de Extensão do Processo Tributário Analítico no Ibet professor de Direito Tributário na Espge-SP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

5 de setembro de 2021, 8h00

Pretendemos tratar nesta semana de um fenômeno até certo ponto recorrente no âmbito do processo tributário: o do sincretismo processual na prestação da tutela jurisdicional executiva, aquela voltada a implementar a realização do crédito tributário com a expropriação forçada do patrimônio do devedor [1].

Abordar o sincretismo na cobrança como situação recorrente pode soar estranho a quem não seja afeito à pragmática do processo tributário, uma vez que a prestação da tutela jurisdicional executiva está intimamente relacionada ao processo de execução fiscal, que pressupõe o título executivo extrajudicial denominado certidão da dívida ativa. Como, então, é viável falar em sincretismo se há previsão de relação processual exclusivamente voltada à realização do crédito tributário?

Sincretismo é expressão que representa a instrumentalização de diversas espécies de tutelas jurisdicionais no âmbito de uma única relação processual. É a tônica atual do processo civil brasileiro, em que as tutelas jurisdicionais voltadas à garantia, ao acertamento e à realização do direito são veiculadas em um único processo.

É o que se dá, exempli gratia, nas demandas antiexacionais preventivas e repressivas, em que a tutela provisória de natureza cautelar é concedida no mesmo processo em que o direito é acertado. Nas reparatórias (ação de repetição do indébito tributário), a mesma relação processual define o indébito tributário (direito vindicado) e abrange a realização desse direito mediante a instauração do cumprimento de sentença para a restituição do indébito.

Mas não é a esse sincretismo (que nomeamos ordinário para contrapô-lo àquele que se manifesta na cobrança do crédito tributário, que ousamos denominar especial) que nos referimos. Aqui nos interessa a peculiar perspectiva desse fenômeno em que não haverá a formação de um título executivo judicial cujo comando condenatório será objeto de cumprimento de sentença no contexto da mesma relação processual em que foi formado.

Referimo-nos à hipótese em que o crédito a ser realizado é o tributário e sua satisfação dar-se-á pela expropriação forçada do patrimônio do devedor no âmbito de um processo antiexacional julgado improcedente. E aqui assoma a peculiaridade distintiva do sincretismo na cobrança do crédito tributário: ele se dá no âmbito processual de uma demanda antiexacional improcedente, à míngua de qualquer condenação a favor do requerido (o Fisco).

Esse sincretismo peculiar, como é de se imaginar, não ocorre em qualquer situação. Ao contrário, somente far-se-á presente em um contexto específico: sendo próprio dos processos antiexacionais preventivos ou repressivos, exige que o autor da demanda (sujeito passivo da obrigação tributária) deposite o montante integral da obrigação tributária, uma vez que nesses casos os valores em questão deixam de estar à sua disposição (sujeito passivo da obrigação tributária) e passam a ter destinação atrelada ao desfecho da demanda [2] [3].

Impõe-se, ainda, como segundo requisito a improcedência do pedido, pois nessa hipótese o montante depositado será convertido em renda do ente tributante e a obrigação tributária extinta, de modo que em uma única relação processual são exercidas as atividades de cognição e de realização do crédito tributário. Satisfeitos esses pressupostos, exsurge a especial hipótese de sincretismo na cobrança do crédito tributário.

Notoriamente vantajoso para o Fisco, à medida em que várias etapas do procedimento de cobrança do crédito tributário via título executivo extrajudicial e ajuizamento de execução fiscal são suplantadas [4], não deixa de ser uma opção muito interessante para o contribuinte, que disporá da suspensão da exigibilidade do crédito tributário [5] com todos os efeitos dessa condição decorrentes, exempli gratia: certidão de regularidade fiscal, suspensão de medidas coativas de cobrança (protesto, inscrição em cadastros de inadimplência). Em contrapartida arcará com o ônus de não dispor mais do montante depositado, cuja sorte dependerá do que vier a ser decidido no processo.

Uma vez que o depósito integral e em dinheiro consiste em causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário, o Fisco, a rigor, sequer poderá cogitar do ajuizamento de execução fiscal ou mesmo da inscrição do crédito tributário em dívida ativa, caso aquele os anteceda, pelo que não é equivocado asseverar que a prestação da tutela jurisdicional executiva (expropriação forçada) na hipótese prescinde tanto do ajuizamento da execução fiscal quanto da existência mesmo de um título executivo. 

E aqui escancara-se mais uma peculiaridade desse sincretismo: a cobrança judicial do crédito tributário no bojo do processo antiexacional preventivo ou repressivo com depósito integral dispensa a existência de título executivo, seja judicial, seja extrajudicial.  

Como o sincretismo emana exclusivamente do interesse do autor em realizar o depósito do montante integral do crédito tributário, vale sublinhar outro relevante benefício para o devedor que opta por discutir o tributo depositando o seu montante integral: a cessação da responsabilidade pelos juros de mora e pela atualização monetária incidentes sobre o crédito tributário [6].

Sopesados ônus e bônus, para aqueles contribuintes que disponham da quantia necessária para o depósito do montante integral do crédito tributário, há evidentes vantagens, sendo, portanto, recomendável que o façam, pois, ao cabo do processo, em qualquer hipótese [7], a obrigação tributária restará extinta, seja pelo reconhecimento de sua nulidade, seja pela conversão em renda do valor depositado.

 

[1] Se a leitora ou o leitor quiserem complementar informações sobre esse típico específico de tutela jurisdicional sugerimos leitura de texto de nossa autoria neste veículo: https://www.conjur.com.br/2021-abr-13/cantanhede-tutela-jurisdicional-executiva-inadimplencia.

[2] "A 1ª Seção desta Corte tem entendimento consolidado segundo o qual a movimentação de valores judicialmente depositados, em atendimento ao disposto no art. 151, II, do CTN, fica condicionada ao trânsito em julgado da demanda à qual vinculados." (AgInt no TP 178/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/06/2017, DJe 21/06/2017)

[3] Paulo Cesar Conrado vê na hipótese a expressão de uma execução passiva, in verbis: "Para além dos estímulos potencialmente geradores de pagamento – instrumentos que, insista-se, supririam, se bem sucedidos, à cobrança executiva –, é possível enxergar executividade de origem passiva. Nesse escaninho, devemos depositar os casos em que, proposta medida antiexacional, o sujeito passivo debate o crédito fazendário e, ao mesmo tempo, garante sua satisfação. É o que ocorre, por exemplo, quando, nos domínios tributários, o contribuinte ajuíza ação anulatória e em seu bojo deposita o montante integral do crédito debatido. É sabido que, em situações como essa, suspensa a exigibilidade do crédito, a Fazenda não pode propor execução. A questão, por lógica, vai além dessa afirmação, porém: a satisfação do crédito já se encontra assegurada pelo depósito, funcionando a ação anulatória, conquanto antiexacional, como suporte executivo; basta para que essa eficácia antagônica se concretize que o contribuinte saia definitivamente derrotado na demanda, hipótese em que, sabe-se, o valor depositado é revertido em favor da Fazenda." (CONRADO, Paulo Cesar. Execução Fiscal. São Paulo: Noeses, 2020. Item 13.4)

[4] A expropriação forçada ocorrerá logo em seguida ao trânsito em julgado da decisão de improcedência da demanda, quando o valor depositado será convertido em renda no caso de improcedência, sem que se cogite da propositura de execução fiscal ou mesmo de cumprimento de sentença.

[5] CTN, Artigo 151 – "Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (…) II – o depósito do seu montante integral".

[6] Lei 6.830/80, Artigo 9º, §4º – "Somente o depósito em dinheiro, na forma do art. 32, faz cessar a responsabilidade pela atualização monetária e juros de mora".

[7] Ressaltamos que até na hipótese de extinção do processo sem apreciação do mérito, havendo depósito, esse valor deve ser convertido em renda para o Fisco, posição que, por exemplo, encontra guarida em julgamentos do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do quanto decidido nos Embargos de Divergência nº 479.725/BA: "O depósito judicial efetuado para suspender a exigibilidade do crédito tributário é feito também em garantia da Fazenda e só pode ser levantado pelo depositante após sentença final transitada em julgado em seu favor"; No mesmo sentido tem-se ainda os Embargos de Divergência nº 813.554/PE, que textualmente expõe a posição da 1ª Seção do STJ: "2. A Primeira Seção firmou entendimento de que, mesmo sendo extinto o feito sem julgamento do mérito, os depósitos para suspensão da exigibilidade do crédito tributário devem ser convertidos em renda da Fazenda Pública e não levantados pelo contribuinte." (EREsp 813.554/PE, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/10/2008, DJe 10/11/2008

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    é doutor e mestre em Direito pela PUC/SP, especialista em Direito Tributário pela PUC/SP e em Direito do Estado pela ESPGE-SP, professor de Direito Tributário e Processo Tributário no Ibet-SP e na ESPGE-SP, procurador do Estado de São Paulo e pesquisador do Grupo de Estudos em Processo Tributário Analítico do IBET-SP.

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