Opinião

Breves reflexões sobre a judicialização da política e o ativismo judicial

Autor

  • Gustavo Hasselmann

    é procurador do Município de Salvador (BA) advogado graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) licenciado em filosofia pela Faculdade Batista Brasileira especialista em Processo Civil e Direito Administrativo pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e ex-juiz do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Baiana de Futebol.

5 de setembro de 2021, 7h14

1) Introdução
Tem sido recorrente no Brasil atual a veiculação, nas mídias escrita e falada, de notícias envolvendo o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal. Com efeito, não há um dia sequer que a imprensa deixa de divulgar notícias em que o Judiciário, em especial o STF, figure como protagonista maior em temas sensíveis à sociedade, tais como saúde educação, habitação, meio ambiente, corrupção (a exemplo do "mensalão" e da "lava jato") etc.

Até meados do século 20, na maioria dos países do Ocidente o Poder Legislativo desfrutava de uma posição de proa, vale dizer, sobranceira em relação aos outros poderes do Estado. O Judiciário funcionava, até meados do século 20, como um fiel cumpridor das leis (sobretudo dos códigos, como o Código de Napoleão). Na França, o Judiciário era tido como a "boca da lei", sendo-lhe vedada qualquer interpretação proativa e criadora de direitos.

O Judiciário, a partir de meados do século 20 — de revés do que se sucedeu no mencionado período anterior —, passou a protagonizar uma posição decisiva na vida política e social das nações democráticas.

Essa mudança, segundo alguns ilustres pensadores, se deveu, inclusive, ao fato de que, ao final da segunda guerra mundial, as Constituições, notadamente das nações democráticas, passaram a ter força normativa, aplicável, portanto, diretamente na resolução dos conflitos havidos na sociedade. Antes deste marco histórico, as Constituições eram meras e retóricas proclamações de direitos, sem força normativa alguma, destinadas, ao menos, a inspirar e conformar a função dos legisladores.

Nesse viés, após a Segunda Guerra Mundial, o Judiciário — com realce para as Supremas Cortes, em sociedades democráticas, abertas, plurais e complexas — assumiu o papel de guardião maior da Constituição, aplicando os seus princípios e regras jurídicas, revestidos estes de grande amplitude semântica, ao cipoal de casos submetidos ao seu crivo.

2) A judicialização da política e o ativismo judicial. O STF
Trata-se, o fenômeno acima descrito, da chamada judicialização da política, que, segundo a melhor doutrina, consiste na ingente participação do Judiciário na vida política e social das nações democráticas.

Nesse diapasão, leciona o ilustre sociólogo Boa Ventura de Souza Santos ("Os tribunais nas sociedades contemporâneas"; Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 30, páginas 29-62):

"Um dos fenômenos mais intrigantes da sociologia política e da ciência política contemporânea é o recente e sempre crescente protagonismo social e político dos tribunais: um pouco por toda Europa e por todo o continente americano, os tribunais e juízes, os magistrados do Ministério Público, as investigações da polícia criminal, as sentenças judiciais surgem nas primeiras páginas dos jornais, nos noticiários televisivos e são temas frequentes de conversa entre cidadãos. Trata-se de um fenômeno novo ou apenas de um fenômeno que, sendo velho, colhe hoje uma nova atenção pública?".

Registre-se, por oportuno, que o tema da judicialização da política é por demais amplo e controvertido entre os doutrinadores do Direito e da Ciência Política, pendendo ainda de maiores estudos e aprofundamentos. O mesmo ocorre com o ativismo judicial, que, historicamente, teve início na Suprema Corte americana de Warrente. Ambos os temas em essência não se confundem, como veremos adiante, mas têm entre si umbilical relação.

Alguns autores apontam como causas da judicialização da política (não exaustivas, frise-se) alguns fatores, a saber: o controle concentrado eou difuso da constitucionalidade das leis ou atos normativos, exercido, dito controle, pelo Poder Judiciário, notadamente pelas Supremas Cortes nas democracias (no Brasil, nesse diapasão, esse controle é exercido, precipuamente, pelo STF, a exemplo da ADI, ADC, ADPF, bem assim do recurso extraordinário com repercussão geral); a abertura semântica das normas das constituições democráticas, repletas, via de regra, de princípios de conteúdos abertos ou indeterminados, que, ao mais das vezes, fazem com que os conflitos de interesses desaguem no Judiciário, notadamente nas Supremas Cortes; no caso particular do Brasil, a nossa Constituição de 1988 — por ser demasiadamente analítica, cobrindo todos os quadrantes da vida social ou política — rende ensejo a inúmeras demandas que desaguam no Judiciário, notadamente no STF; a proliferação das ações coletivas, como é o caso, no Brasil, das ações populares e cíveis; a crise de representatividade nos outros dois poderes, notadamente no Legislativo (no Brasil, ocorre, segundo expressão cunhada pelo cientista político Sergio Abranches, o chamado "presidencialismo de coalisão", em que, através do toma lá da cá — é dizer, troca de votos no Parlamento por emendas e cargos no executivo — matérias relevantes são decididas).

A propósito, são elucidativas as lições do ministro do STF Luís Roberto Barroso no que concerne à judicialização da política:

"Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário.
Trata — se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo"
(in Curso de DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO, ed Saraiva, 5º edição, página 437).  

De outro lado, o fenômeno do ativismo judicial é recorrente nas democracias contemporâneas, consistindo ele na interpretação proativa, audaciosa e criativa da Constituição pelo Judiciário, de modo a sanar as omissões ou mora dos outros poderes, notadamente do Legislativo, na edição de seus respectivos atos normativos. Frise-se que a mencionada interpretação da Constituição deve ser implementada à luz das peculiaridades de cada caso submetido ao crivo do Poder Judiciário, notadamente das Supremas Cortes, observando inclusive o princípio instrumental da razoabilidade.

A antítese do ativismo judicial é a autocontenção, que se dá quando o Judiciário busca tão somente impugnar os atos normativos dos outros poderes, notadamente as leis, a partir de uma interpretação da Constituição muito limitada e restrita, para não dizer literal. Na autocontenção o Judiciário, em especial as Supremas Cortes, cingem- se a detectar e fulminar os atos normativos dos outro poderes, principalmente a lei, demitindo-se, o Judiciário, do seu poder de suprir as omissões ou mora dos outros poderes, em especial do Legislativo, na edição de seus respectivos atos normativos.

De logo, importa assinalar que o ativismo judicial, em nosso entender, pode conter aspectos positivos e negativos. A exemplo dos primeiros, podemos citar a decisão do STF em mandado de injunção que versava sobre a aplicação das regras do direito de greve no setor privado aos funcionários públicos.

Ainda na senda dos aspectos positivos do ativismo judicial, podemos trazer a lume dois lapidares julgados do STF: o primeiro, atinente à execução provisória da pena a partir da condenação em segunda instância; o segundo, relativo à restrição do foro privilegiado para alcançar somente os crimes cometidos no exercício do mandato e em função dele, julgamento este já ultimado, com aplausos maciço da sociedade. Em ambos os casos o STF, a partir do encetamento de uma interpretação proativa, audaciosa e criativa da CF, em observância, também, às peculiaridades de cada caso e ao princípio da razoabilidade, produziu julgados merecedores de elogios.

Acresce ao que vem de ser exposto, a propósito dos aspectos positivos do ativismo judicial, as ações judiciais na área da saúde, em que constatamos a ingerência do Judiciário no Executivo, com vistas a fazer este cumprir o seu dever de prestações públicas relacionadas ao direito constitucional à saúde.

Quanto aos aspectos negativos do ativismo judicial podemos citar três casos emblemáticos no STF, a saber: a descriminalização do aborto de feto anencefálico; a descriminalização do aborto realizado até o terceiro mês de gestação; finalmente, a descriminalização do uso de drogas. Todos esse casos — à exceção do aborto de fetos anencefálicos, em que o STF reescreveu os artigos 124 e 126 do Código Penal Brasileiro, para incluir dito aborto no rol das hipótese lícitas de aborto — pendem de julgamento definitivo na corte.

Preleciona o citado ministro do STF a respeito do ativismo judicial: 

"Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente, ele se instala — e este é o caso do Brasil — em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo judicial é a autocontenção, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes" (ob cit, pag 442).

O ministro arrola, no seu livro "A judicialização da Vida", alguns emblemáticos casos no STF de ativismo judicial, alguns, no nosso entender, positivos e outros negativos, como acima mencionado, estes últimos por representarem chapada, direta e irrazoável invasão da competência dos outros poderes, notadamente do Legislativo.

Assim sendo, posicionamo-nos no sentido de que o ativismo judicial deve ser procedido com cautela e parcimônia, a partir de uma interpretação proativa e devidamente fundamentada da Constituição, e atenta às peculiaridades de cada caso e ao princípio instrumental da razoabilidade, sob pena da invasão direta, flagrante e chapada nas competências dos outros poderes, notadamente do Legislativo.

De outra parte, advogamos a tese de que em situações nas quais exsurjam decisões trágicas ou dramáticas, ou ainda flagrantes desacordos morais razoáveis, expressões cunhadas pela doutrina e pela jurisprudência, melhor seria que fossem submetidos ao crivo do Executivo e do Legislativo, através de seus representantes eleitos pelo povo, sem embargo da possibilidade de tais decisões poderem acorrer ao Judiciário.

Ademais, entendemos que —  com a devida permissão dos que pensam em contrário — em democracias representativas ainda frágeis e insipientes como a nossa, em que impera o chamado presidencialismo de coalisão, é inelutável o ativismo judicial, notadamente das Supremas Cortes, sem embargo da constatação óbvia de que, em regimes democráticos, melhor seria que os problemas fossem resolvidos, em grande medida, na arena política, pelos representantes eleitos pelo povo.

De outra parte, finalmente, importa assinalar que não se pode, de pronto e abstratamente, desvelar se o ativismo judicial, em especial do STF, é positivo ou negativo. É preciso que se analise de forma detida e acurada o caso concreto para se aferir se houve ou não ostensiva usurpação das competências do Legislativo e do Executivo pelo Judiciário.

Considerações finais
Pensamos que o tema em foco ainda demanda maiores estudos e aprofundamentos, devendo ainda ser enfrentado pela doutrina e pela jurisprudência.

Com efeito, a discussão derredor do ativismo judicial, sobretudo nas democracias modernas, ainda só está começando.

 

Referências bibliográficas
Barroso Luís Roberto, "Curso de Direito Constitucional Contemporâneo", 5ª edição, editora Saraiva.

Sarmento Daniel, "Direito, Democracia e República", 2018, ED Fórum.

Canotilho JJ Gomes, 7ª edição, Almedina.

Santos Boaventura, Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 30.

Autores

  • é advogado, procurador do município de Salvador, licenciado em Filosofia pela Faculdade Batista Brasileira, especialista em Processo Civil e em Direito Administrativo pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia, membro do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB) e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e ex-juiz do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Baiana de Futebol.

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