Observatório constitucional

A pauta de julgamentos do STF e a política judiciária

Autor

4 de setembro de 2021, 8h01

Para os juristas mais novos, talvez seja difícil imaginar o Supremo Tribunal Federal sem a sua "Pauta de Julgamentos". A criação desse fundamental instrumento de política judiciária apresentou contribuição marcante para os rumos que o Tribunal adotou a partir de agosto de 2004 e, como tive a honra de participar ativamente desse processo, passo a destacar alguns pontos.

Spacca

Antes de começar, é preciso imaginar um STF diferente. Embora o volume de casos já estivesse em patamares inimagináveis para qualquer Corte Constitucional no mundo[1], o Tribunal ainda mantinha práticas antiquadas de trabalho, arraigadas ainda na tradição do formato de julgamento em plenário.

Da mesma forma como hoje, a liberação de um processo para julgamento e sua inclusão na pauta do colegiado é uma atribuição específica do relator (artigo 21, III, IV, X e XIV, do Regimento Interno do STF). Entretanto, cabe ao Presidente do Tribunal presidir os trabalhos do colegiado pleno (artigo 13, III; e artigo 143), decidindo os processos a serem chamados e a ordem desses pregões.

Houve uma época, entretanto, em que o anúncio do processo era feito sem qualquer previsão ou mesmo um indicativo de julgamento. Não havia uma pauta. De um conjunto imenso de casos que aguardavam julgamento em plenário (em 2004, tinha-se por volta de 450 processos no plenário, aguardando o chamamento), o Presidente, muitas vezes sem consultar os seus pares, escolhia um dentre essas centenas de caso a cada sessão. Não se sabia qual caso seria chamado por sessão e não se sabia qual processo seria chamado em seguida. A ordem não era organizada e não respeitada a qualquer lógica, a não ser um juízo discricionário do Presidente do Tribunal.

Os ministros, portanto, eram surpreendidos a cada reunião e advogados e partes não encontravam qualquer segurança para se prepararem. Todo o acompanhamento era feito de maneira informal, geralmente com informações frágeis e desencontradas obtidas em contatos com o gabinete da Presidência ou com a Secretaria Judiciária. Muitas vezes, nem o próprio relator sabia quando um caso seu seria chamado.

Havia ingressado nos quadros do STF como chefe de gabinete do Ministro Moreira Alves no final de 1999 e, portanto, tive a honra de acompanhar os últimos anos de ofício de um dos maiores nomes da história do Tribunal, já decano há dez anos, desde 26.01.1989 com a aposentadoria do Ministro Djaci Falcão. Sua experiência de Tribunal (desde 20.06.1975) e sua incomparável perspicácia argumentativa me impediam de ver o problema grave que, semana a semana, repetia-se no plenário do STF com o pregão surpresa dos processos. Facilitava também o fato de votar em último lugar na condição de decano. O drama e toda a dificuldade desse método de julgamento acumulava-se na figura do ministro mais novo. Não só ainda não dominava os "traquejos" do Tribunal como também ainda não conhecia detalhadamente a sua jurisprudência.

Nesse contexto, era bastante comum que os Ministros recém ingressos preferissem apenas seguir o voto do relator de maneira a ganhar tempo para acumular mais experiência.

O Ministro Nelson Jobim, por exemplo, trazendo toda a sua experiência dos debates políticos no Poder Legislativo e de gestão no Poder Executivo, não se continha nessa posição "passiva". Conhecia bem as repercussões políticas e práticas de cada caso, o ônus e o bônus que o Tribunal assumia com cada voto ou decisão e, assim, não se sentia à vontade de votar sem entender todas as nuances do problema. O resultado dessa postura foi que, pouco tempo após sua posse em 15.04.1997, tornou-se o Ministro com mais pedidos de vista no plenário, o que ajudou a criar a imagem de "líder do Governo no Supremo".

Os críticos diziam que os sucessivos pedidos de vista tinham por objetivo "brecar" determinados debates ou evitar específicas decisões plenárias. A verdade, entretanto, é que na grande maioria dessas vistas, tinha-se apenas a preocupação mais modesta de entender melhor os casos e lhe dar um encaminhamento jurídico talvez mais adequado.

Com a aposentadoria do ministro Moreira Alves em 20.04.2003, tive a honra de trabalhar com o ministro Joaquim Barbosa tão logo se deu a sua posse em 25.06.2003 ao lado do ministro Cezar Peluso e do Ministro Ayres Brito. A situação era bem diferente. O ministro Joaquim Barbosa vinha de sólida carreira acadêmica no exterior e do trabalho no Ministério Público. Por ser o mais jovem dos recém empossados, ocupou de pronto a primeira cadeira do lado direito do plenário.

Também se sentia bastante incomodado com esse formato. Logo desenvolvemos no gabinete uma metodologia de buscar, junto ao então Secretário Luiz Tomimatsu, a cópia das principais peças de todos os casos do plenário e um acompanhamento mais próximo da possibilidade de cada um ser chamado na sessão seguinte.

Pouco tempo depois passei a atuar na equipe do ministro Nelson Jobim que já trazia essa má impressão do modelo de pregão em plenário. O ministro Jobim, que em breve viria tomar posse na presidência (em 08.08.2004), queria mudanças. Sua visão também era de que a definição da pauta de julgamentos era atribuição das mais nobre e importantes do Presidente do STF e não poderia continuar a ser exercida de maneira confusa e desorganizada. A noção de "política judiciária" era pouco conhecida (e ainda é pouco estudada), mas já orientava o seu entendimento. A definição dos julgamentos com antecedência daria definitivamente um novo posicionamento do STF entre os Poderes, em relação aos problemas do país e perante o jurisdicionado.

Seria possível compatibilizar a agenda do Tribunal com as grandes questões que o país enfrentava, permitiria o diálogo institucional franco e construtivo e amarraria melhor a coerência nos julgamentos. Casos assemelhados ou, ao menos, que compartilhassem do mesmo núcleo poderiam e deveriam ser julgados proximamente de maneira que se pudesse construir uma lógica nesses posicionamentos. A "jurisprudência" do STF certamente agradeceria com o seu fortalecimento.

O trabalho de estabelecer uma pauta de plenário foi desenvolvido, na presidência do STF, em parceria com o Secretário de Plenário. Estabeleceu-se uma metodologia pragmática. Tomar-se-ia por base a "teoria dos sistemas". Com a análise de todos os casos em plenário, agrupou-se os processos por aproximação temática. Não havia temas a priori, mas sim os verdadeiros temas levados ao plenário. Aqueles que pudessem ser identificados primeiramente, transformaram-se nas primeiras pautas. E os mesmos temas criados em 2004 se mantêm até hoje. "Tribunal de Contas" era a Pauta Temática nº 1 (P.1) porque naquele primeiro ano, o Tribunal estava sendo instado a decidir acerca das atribuições e limites de decisão da Corte de Contas. Havia muitas dúvidas que estavam plasmadas em mandados de segurança impetrados.

A construção da pauta, entretanto, nunca foi uma tarefa linear, sem desafios. Por vezes, a definição da tese central do processo para fins de agrupamento poderia reduzir o horizonte de possibilidades hermenêuticas do caso. Por exemplo: uma ADI que tratasse de direitos fundamentais deveria fazer parte da Pauta Temática nº 8 (geralmente questões de natureza procedimental) ou da Pauta Temática nº 15 (exame da substância de algum direito fundamental)? A depender da opção de enquadramento, uma nova posição política do Tribunal seria revelada. Essa complexidade já estava colocada nos primeiros meses.

O trabalho de aprimoramento da pauta ainda geraria na necessidade de elaboração dos relatórios de cada processo, com a identificação da tese central, dos argumentos, da posição externada por AGU, PGR e dos votos já proferidos, inclusive com informações referentes a impedimentos dos ministros. Com essa novidade (que perdura até hoje), o público ganhou, ao longo desses últimos anos, um panorama muito claro do trabalho do STF e dos temas que que viria a decidir. Foi também na presidência do ministro Nelson Jobim que a pauta de julgamentos (com os processos categorizados nas pautas temáticas) passou a ser elaborada semestralmente e, com isso, pela primeira vez na história, o Tribunal passou a — com o perdão do trocadilho — "pautar" as discussões nacionais.

Evidentemente, essa história de formação da pauta do Tribunal é bem mais rica, repleta de camadas e foi escrita em vários capítulos que mereceriam, em algum momento, uma descrição. Afinal, a formação e aprimoramento da pauta do plenário, de alguma forma, convolou-se em uma linha fina, quase que imperceptível, que deu direção ao crescimento do papel político do Tribunal.

Nos limites desse texto, proponho algumas considerações acerca dos efeitos da pauta do plenário — vários deles não imaginados em 2004 — para a própria institucionalidade do Tribunal:

(a) A alteração da metodologia de chamamento de processos do plenário marcou definitivamente a ascensão da ideia de "política judiciária" e, portanto, a noção de que o Supremo também exerce função política como agente (e não apenas como jurisdição).

(b) De uma função quase que figurativa (ao menos desde a presidência do ministro Ribeiro da Costa entre dezembro de 1963 e dezembro de 1966 durante os primeiros anos de Regime Militar), o presidente do STF passou a exercer papel central nessa política judiciária, o que permitiu a identificação do tom e das prioridades de cada Presidência do Tribunal. Não quero ignorar que a criação do CNJ com sua primeira sessão ordinária em junho de 2005 também deu novos contornos ao presidente do STF (na condição de presidente do CNJ também), mas não se pode ignorar a importância da direção da pauta do plenário nesse fortalecimento.

(c) Aumento da noção de colegiado no Tribunal, já que, a partir de 2004, os ministro passaram a participar mais da formação da pauta e as "11 ilhas" deixaram de ser tão isoladas assim. A interação entre os componentes ganhou uma nova dinâmica com a apresentação das propostas de prioridade de julgamento de cada Ministro e a obrigação de composição desses interesses pelo presidente na formatação da pauta definitiva de julgamentos.

(d) Possibilidade de melhor antecipação e preparação de cada ministro em relação ao calendário de julgamentos e a cada processo. Pela primeira vez, seria possível que os demais ministro chegasse à sessão plenária com o mesmo nível de preparo e análise processual que o relator. Não tenho dúvida de que isso contribuiu também para o aumento do tamanho dos votos com a possibilidade real de se ter manifestações diferentes do tradicional "acompanho o relator".

(e) Diante da pauta antecipada para o semestre, os ministros e suas equipes passaram a tentar antever o resultado, simulando posições e votos que seriam adotados para aquele processo (especialmente os polêmicos). Com isso, os entendimentos de bastidor também ganharam uma dinâmica diferente e até aproximações de votos passaram a ser mais frequentes diante de dificuldades concretas que o processo apresentava. A interação entre os Ministros do STF fora do momento solene de plenário antes de 2004 tinha conformação bem diferente do que hoje existe.

(f) Criação de expectativas do público em geral com a pauta do Tribunal, o que ajudou a tornar a Corte assunto mais corriqueiro entre as pessoas. A imprensa em geral passou a dar nova cobertura aos assuntos da jurisdição constitucional e seus setoristas ganharam espaço na mídia. O STF se tornava pauta de notícias e ingressava no espaço público sem possibilidade de retorno.

(g) Poder Executivo e Poder Legislativo também passaram a dedicar mais atenção ao cronograma de julgamentos do Tribunal, que deixava de ser órgão jurisdicional meramente reativo. O trabalho dos Poderes deveria agora considerar o planejamento de julgamento do STF. Prioridades políticas erma agora rearranjadas em função das expectativas de decisão de cada processo. O Tribunal ingressava, em definitivo, na política ativa em contexto da separação de Poderes, e não mais sairia.

Ao final, após 17 anos, o STF alterou a sua auto-percepção e sua própria identidade, assumindo, com cada vez mais naturalidade, os benefícios e os prejuízos de participar ativamente como real player político na esfera pública, manejando a sua pauta e calculando a conveniência e oportunidade do tempo de cada decisão colegiada.


[1] De fato, entre 2004 e 2006, o STF atingiu o seu recorde histórico de processo em tramitação ao atingir o patamar de 120 mil causas. 2004, inclusive, foi o ano de aprovação da Emenda Constitucional nº 45, de 30.12.2004, que trouxe o regime da “repercussão geral da questão constitucional”. Após isso, os números começaram a se reduzir: 73.257 processos em 2010, 39.988 processos em 2014, 16.333 processo em 2019, segundo as estatísticas do STF;

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!