Ambiente Jurídico

Apontamentos sobre as cidades sustentáveis — II

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4 de setembro de 2021, 10h43

Em 13 de abril de 2019, fiz algumas anotações sobre os dilemas do desenvolvimento sustentável[1] e a dificuldade de sua conceituação e aplicação no ambiente natural e no ambiente artificial, criado pelos humanos. Mencionei então o que denomino de a grande migração, quando a população brasileira passou de 52.000.000 em 1950 para 95.000.000 em 1970, para 170.000.000 em 2000 e para 213.393.000 em 2020, aumentando mais de quatro vezes em 70 anos [fonte: IBGE[2]], uma das maiores e mais rápidas migrações da humanidade; e como a população predominantemente rural em 1950 passou a 55% urbana em 1970 e a 85% em 2015[3]. Ao lado do crescimento populacional em si presenciamos no curto espaço de trinta anos o crescimento da população urbana de 53 milhões em 1970 para 138 milhões em 2000: um acréscimo de 124 milhões de habitantes na zona urbana nesse período. Embora a população rural tenha tido um declínio de 42 milhões para 32 milhões nesses anos, a área ocupada (dedicada à agricultura e à urbanização) aumentou sensivelmente, pois a população acrescida precisa morar, trabalhar, comer e vestir. Finalmente, o espetacular sucesso da agroindústria no Brasil, hoje o segundo maior exportador mundial de alimentos, cobra um preço alto do ambiente.

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Em 31 de julho de 2021, cuidei das cidades sustentáveis e a sua diferente integração no meio ambiente[4], pois espaço reservado aos humanos e suas necessidades peculiares; e mencionei, citando Simone Raskob, Conselheira para a Área de Meio Ambiente e Construção de Essen, Alemanha, e líder do projeto Capital Verde da Europa, que ‘ao mesmo tempo heroína e vilã, a cidade se tornou palco da inversão mais curiosa – e importante – do debate ambiental contemporâneo. Defende-se, agora, que só será possível salvar a natureza se, antes, repensarmos de maneira radical o urbano. A inversão é curiosa porque começa a revelar a impossibilidade de pensarmos as cidades como desconectadas do ambiente, apontando para a relação de ambas na equação da existência’.

Vejamos algumas cidades no mundo[5]. A região metropolitana de Tokyo, Japão, abriga 37 milhões de pessoas e é considerada uma das mais seguras, limpas, dinâmicas e inovativas cidades; foi reconstruída duas vezes, depois do terremoto Kanto em 1923, que destruiu 300.000 construções e matou mais de 100.000 pessoas, e do bombardeio aliado na 2ª Guerra Mundial, sempre de uma forma diferente; o sistema de trens e metrô chega a 4.500 km e transporta dez milhões de passageiros por dia. A região metropolitana de Los Angeles, Estados Unidos da América, abriga 13 milhões de habitantes; Londres abriga perto de 14 milhões de habitantes; Shangai, China, na foz do Rio Yangtze, conta com 24 milhões de habitantes e extensa área. Lagos, Nigeria, tem uma população de 15 milhões na cidade e 21 milhões na área metropolitana. Em Bangladesh, dois campos de refugiados rohingya, muçulmanos que deixaram Myanmar, abrigam em condições precárias 860.000 pessoas. São Paulo, a cidade mais populosa do Brasil, da América do Sul e de todo o hemisfério sul, abriga 21 milhões de pessoas em sua região metropolitana e 33 milhões se consideradas as cidades próximas, como Campinas, Jundiaí, Baixada Santista, Vale do Paraíba, Sorocaba[6].

As cidades não ajudam a manutenção dos processos ecológicos em si, como vimos, e têm uma participação relevante na degradação da natureza na área urbana e rural por elas ocupadas e no próprio equilíbrio do planeta. Um desses aspectos é a poluição do ar e seu reflexo na saúde humana e no aquecimento global. A rápida industrialização, a maior parte em áreas urbanas, fez da poluição do ar um problema de grande magnitude. 1,3 bilhões de pessoas vivem em áreas urbanas que não atingem os padrões da Organização Mundial de Saúde, aumentando o número de mortes e prejudicando o desenvolvimento das crianças. Não é um problema local, pois as correntes de ar não respeitam fronteiras; a poluição transfronteiriça deu margem a importantes disputas internacionais, a primeira em 1940 conhecida como Trail Smelter Arbitration entre os Estados Unidos e Canadá, envolvendo um fábrica situada no Canadá, próxima à divisa, cuja fumaça era trazida pelos ventos para o país vizinho; a decisão, aceita pelo direito internacional, foi de que um Estado não deve permitir atividades em área de sua jurisdição ou controle que cause dano ao Estado vizinho ou em áreas além de seu controle[7]. Do mesmo modo, a poluição gerada em uma parte da cidade reflete na outra parte, tornando a poluição do ar um problema de todos. Desde então aprendemos muito sobre a poluição do ar; sabemos que viaja grande distância e se junta à poluição vinda de outras fontes, tornando complexa a definição da origem e da responsabilidade.

Há estudos que demonstram os reflexos da poluição e do seu controle. Com cidades intensamente poluídas, a Lei do Ar Limpo de 1970, Estados Unidos da América, provocou uma melhora de 77% na qualidade do ar em todo o país, apesar do crescimento da economia, da população e do número de carros nas ruas. A lei foi aprovada por unanimidade no Senado e com apenas um voto contrário na Câmara, baseada em estudos científicos, responsabilidade e objetivos definidos. Entre suas provisões estava a redução de 90% das emissões de veículos, sendo que os carros de hoje são 99% mais limpos que os carros de antes de 1970. Pesquisadores calculam que os benefícios superam mais de 40 vezes o seu custo, a demonstrar que a despoluição do ar pode ser alcançada quando os líderes atuam com apoio na ciência[8].

Ao lado dessas medidas de grande alcance há outras mais localizadas, ligadas à nossa estrutura urbana e como nossas cidades se organizam. O aquecimento global tem refletido em sensível aumento de temperatura nas cidades, levando a um aumento de mortes e causando sofrimento, principalmente aos idosos e às crianças. Uma massa de ar quente que manteve a temperatura na Europa a mais de 40º por vários dias em 2003 levou à morte de 15.000 pessoas na França, perto de 20.000 pessoas na Itália e mais de 70.000 mortes no continente europeu no verão mais quente em 500 anos, que segundo os cientistas estava claramente ligado ao aquecimento global, este causado pela emissão de gases de efeito estufa em atividades humanas. Há previsão de que, em cinquenta anos, um terço da população mundial viverá em lugares com a sensação do Saara[9]. Simulações computacionais estimam que até o final do século as áreas urbanas da bacia do Mediterrâneo, o interior norte-americano e trechos do Centro-Oeste e da Amazônia, no Brasil, poderão ficar 5º mais quentes e menos úmidas ou até superar essa marca, conforme estudo publicado na revista Nature Climate Change[10].

A urbanização tem um papel central no aumento do calor nas cidades, pois a pavimentação e as construções armazém o calor, elevando a temperatura acima daquela encontrada em ambientes naturais. Uma solução simples é aumentar as áreas de sombra pelo plantio de árvores, que bloqueiam o sol e guardam umidade; estudos demonstram que a temperatura em regiões arborizadas podem ser até 5º mais frescas que nos bairros sem vegetação[11]. É preciso considerar, o que não tem sido percebido, que a cobertura vegetal da cidade tem o mesmo valor, a mesma importância do sistema de águas, de esgotos, do sistema viário.

O sistema legal permite uma atuação mais incisiva em favor da despoluição e da arborização das cidades. O descuido com a poluição do ar nas áreas urbanas ofende a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), que prevê no artigo 2º da preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, e estabelece no art. 4º, dentre seus objetivos (incisos I e III), a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação do meio ambiente e o estabelecimento de critérios e padrões de qualidade ambiental. O Estatuto das Cidades (Lei 10.257/2001) estabelece que a política urbana visa a garantir o direito a cidades sustentáveis para as presentes e futuras gerações. A Política Estadual de Mudanças Climáticas de São Paulo, (Lei estadual 13.798/2009), artigo 5º, inciso I, estabelece o compromisso do Estado frente ao desafio das mudanças climáticas, estabelecendo mecanismos hábeis à compatibilização do desenvolvimento socioeconômico com a proteção do clima[12]. A Lei municipal 10.365/1987, de São Paulo, disciplina o corte e a poda da vegetação de porte arbóreo no município de São Paulo, considerando tal vegetação um bem de interesse comum a todos os munícipes[13].

As cidades são um elemento chave na preservação ambiental do planeta e na qualidade de vida de seus habitantes. A estrutura legal existente e a que possa ser criada permite uma atuação incisiva, proativa, dos nossos políticos, administradores e, principalmente, da nossa população duramente atingida pelos desacertos do passado e de hoje. É preciso construir o futuro.

[1] ConJur – O desenvolvimento é sustentável? Acesso em 28-7-2021

[2] IBGE | Projeção da população acesso em 28-7-2021

[3] População rural e urbana | Educa | Jovens – IBGE acesso em 28-7-2021

[4] https://www.conjur.com.br/2021-jul-31/ambiente-juridico-apontamentos-cidades-sustentaveis

[5] National Geographic Magazine, abril de 2019.

[6] Região Metropolitana de São Paulo – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org) acesso em 3-9-2021

[7] DAVID HUNTER, JAMES SALZMAN, DURWOOD ZAELKE, International Environmental Law and Policy, Foundation Press, 1998, Nova York, pág. 504, 505.

[8] National Geographic Magazine, The Fight for Clean Air, abril de 2021, pág. 54.

[9] National Geographic Magazine, Beating the Heat, julho de 2021, pág. 47.

[10] Áreas urbanas do Mediterrâneo, dos EUA e do Brasil podem ficar 5°C mais quentes até 2100 – 04/01/2021 – Ambiente – Folha (uol.com.br) acesso em 3-9-2021

[11] National Geographic Magazine, julho de 2021, pág. 78. Trata-se de um estudo feito em Los Angeles em um dia quente de julho ao longo da Vermont Avenue, com diferente presença de árvores ao longo dela e na proximidade. Os trechos mais arborizados apresentavam uma temperatura menor entre 5º e 6º C do que as áreas sem cobertura vegetal.

[12] É interessante que um dos objetivos da LE nº 13.798/09 é ‘implementar ações de prevenção e adaptação às alterações produzidas pelos impactos das mudanças climáticas, a fim de proteger principalmente os estratos mais vulneráveis da população’; no entanto, a urbanização desordenada, a regularização fundiária urbana, problemas econômicos e a indisciplina da administração e da população fazem das áreas vulneráveis os locais menos arborizados, com mais zonas de calor e maior poluição ambiental, inclusive do ar. A disciplina do uso do solo prevista na Seção X, art. 10, precisa de urgente implantação.

[13] A lei cuida da preservação, poda e supressão da vegetação de porte arbóreo, mas não determina a recomposição ou o florestamento do sistema viário, praças, áreas livres e terrenos, tema hoje urgente e necessário.

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