Opinião

Lei nº 14.195/2021: a nova citação eletrônica através do legal design

Autores

  • Dierle Nunes

    é professor da UFMG e da PUC-Minas. Membro honorário da Associação Iberoamericana de Direito e Inteligência Artificial. Diretor do Instituto Direito e Inteligência Artificial (Ideia). Doutor em Direito pela PUC-Minas/Universitá degli Studi di Roma "La Sapienza".

  • Catharina Almeida

    é advogada graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Membro do Grupo de Estudos em Neuroética e Neurodireito (GENe) e Grupo de Estudos em Economia Comportamental.

3 de setembro de 2021, 10h53

No último dia 26, foi sancionada a Lei n° 14.195, fruto da conversão da Medida Provisória n° 1.040, que trata da facilitação para abertura de empresas, entre outros temas do ambiente de negócios, mas que incluiu alterações na redação do Código de Processo Civil (CPC). As matérias de cunho processual não constavam do texto original da medida provisória, todavia foram integradas via emenda ao texto final da lei; apesar da constitucionalidade discutível, por se tratar de matéria estranha à proposta original (vide decisão do STF na ADI 5127) [1]. Mas este último ponto não é o argumento deste texto.

Nosso objetivo é propor a necessidade de que se leve a sério o design como facilitador da implementação da proposta da nova citação eletrônica. Antes, no entanto, vejamos parcela das alterações.

Entre as relevantes mudanças, ficou instituída a preferência pela citação por meio eletrônico no prazo de até dois dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do CNJ (artigo 246).

Caso a citação eletrônica não seja confirmada em três dias úteis do recebimento, o ato processual não se presumirá efetivado, e deverá ser procedida a citação por correio ou pelos demais meios admitidos. Nessa hipótese, o citando deverá apresentar justa causa para a ausência de confirmação do recebimento da citação eletrônica, sob pena de o ato ser considerado atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% do valor da causa, destinada em favor do Judiciário (artigo 246, §1º-A, B e C).

O cadastro para o recebimento das citações, como regra da nova redação do artigo 246 do CPC, deverá ser feito pelo próprio citando (salvo convenção processual prévia) [2], que deverá fornecer um endereço eletrônico válido para o recebimento do ato. No intuito de estimular a regularidade do cadastro, o novo inciso VII do artigo 77 inseriu como dever das partes manter seus informar e manter atualizados seus dados cadastrais, e sua violação poderá também ensejar multa por ato atentatório à dignidade da Justiça, revertida para o Estado.

Ainda de acordo a nova legislação, foram determinadas informações obrigatórias que devem constar do mandado de citação eletrônico, para orientar os citandos de como proceder com a confirmação de recebimento e com a identificação na página eletrônica do órgão judicial citante.

A mudança criou uma possível antinomia entre a contagem de prazo do inciso V, do artigo 231, com a do novo inciso IX, que pode ser dirimida, numa primeira leitura e no atual sistema, com a aplicação do inciso V para a citação nos termos da Lei 11419/06 e o inciso IX para a citação eletrônica do CPC.

Recorde-se que a citação "por meio eletrônico, conforme regulado em lei" já se encontrava legalmente prevista no revogado inciso V do artigo 246 do CPC.

Porém, a ausência de regulamentação legal e infralegal, a falta de um sistema nacional unificado e integrado de dados eletrônicos, bem como a ausência de estímulo aos litigantes pela citação eletrônica, resultaram em uma situação de pouca aplicabilidade prática desse mecanismo, ficando restrito a pessoas jurídicas elencadas na organização interna dos tribunais estaduais.

Essa situação evidencia que uma nova ferramenta tecnológica, tal como a citação eletrônica, mesmo que apresente vantagens em relação aos modelos tradicionalmente adotados, só passa a ser efetiva quando existirem estruturas, mecanismos e regulamentações dentro do sistema processual que permitam e incentivem o seu exercício na prática dentro de uma abordagem de design centrado no ser humano.

Para tanto, a nova legislação veio privilegiar o meio de citação menos oneroso, menos burocrático e mais célere, e estipulou as regras de partida para essa implementação, mas a etapa mais relevante se inicia agora.

Pode se observar, de início, que a eficácia prática da medida dependerá, principalmente, do modo como será regulamentada a base de dados do Poder Judiciário pelo CNJ, e seu sucesso também ficará condicionado à recepção do bom uso da ferramenta pelas partes, servidores, bem como pelos magistrados, isto é, os reais beneficiados pela implantação do novo mecanismo.

Exatamente nesse contexto, surge a importância de que os órgãos responsáveis, em especial o CNJ, coloquem em prática de modo consciente e planejado, com estruturas desenhadas para propiciar um ato de citação eficiente, mas também acessível, informado, comparticipativo, que propicie a segurança dos dados dos citandos, bem como a indispensável segurança jurídica de que estes tomem conhecimento real do conteúdo da citação, em face da percepção de que tal chamamento instrumentaliza o exercício efetivo do contraditório e da ampla defesa.

O papel de cada um dos envolvidos merece ser analisado sob o prisma da realidade do sistema judicial brasileiro em nível nacional, a fim de regulamentar procedimentos que de fato possam contribuir para a efetividade da ferramenta, e evitar que ela se torne apenas mais um obstáculo burocrático nas etapas morosas de um processo judicial.

Na lição de Cristiane Iwakura, quando a implementação de estruturas é feita de maneira inadequada [3], o efeito pode ser reverso ao que se pretendia, dando origem a novos problemas.

Por exemplo, poderia se pensar que a construção de um banco de dados com endereços eletrônicos dos citandos seria facilitada com a extração direta de dados dentre aqueles fornecidos pelas pessoas jurídicas no cadastro da Receita Federal. Todavia, embora a medida possa à primeira vista parecer eficiente, na realidade a segurança jurídica do mecanismo ficaria comprometida em razão da desatualização de dados, e pela ausência do consentimento no uso dos dados para os fins de citação, o que resultaria justo motivo para a ausência de recebimento da comunicação processual, e inviabilizaria seu objetivo primordial.

Ou seja, não basta que o procedimento de citação eletrônica fique estruturado de maneira técnica, deixando de lado o comportamento e as necessidades reais dos reais afetados pela medida.

Essa abordagem para o desenvolvimento da citação eletrônica na prática, com foco nas necessidades de seus usuários é chamada de legal design embasado no ser humano e que garante que a solução realmente melhore a vida daqueles para os quais foi projetada. A partir de tal pressuposto são construídos modelos jurídicos adequados, que sejam capazes de atender aos fins pretendidos, e ao mesmo tempo assegurem a segurança do sistema e os direitos fundamentais dos sujeitos afetados.

Essa noção participativa do design envolve consultar e colaborar ativamente com uma ampla gama de partes interessadas em um sistema para compreender suas perspectivas e incorporar suas prioridades na inovação [4]. Tal perspectiva vem auxiliando as mais modernas e eficientes experiências de Justiça digital do mundo, como a do aclamado Civil Resolution Tribunal do Canadá (CRT), que tornou o design centrado no ser humano o pressuposto de um modelo de resolução adequada de conflitos altamente eficiente e acessível aos cidadãos [5].

Tal percepção induz que os interesses dos stakeholders devam ser tomados em conta na elaboração das estruturas acerca da remodelada citação eletrônica.

Como visto, ao CNJ foi atribuído o dever de regulamentar a base de dados do Poder Judiciário, definindo como se dará o cadastro dos envolvidos e o envio das comunicações. E a partir da técnica do legal design, tomando em consideração os principais sujeitos afetados, vislumbram-se algumas questões essenciais.

Percebe-se que as pessoas jurídicas a serem cadastradas, os citandos, terão o dever e a responsabilidade ativa pelo ato do cadastramento no sistema (opt-in). Ocorre que incide sobre esse ato um fator comportamental de inércia. Em outras palavras, por quais motivos os citandos ficariam estimulados a fornecerem seus endereços eletrônicos para citação nesse sistema?

Por um lado, existe a função coercitiva em favor desse objetivo central na inserção dos dispositivos sancionadores nos artigos 77, VII, e 246, §1º-C, que atribuem aos magistrados o poder sancionador pela ausência de cadastro do citando ou pelo não recebimento injustificado da comunicação eletrônica.

Nesse contexto, caberia à magistratura exercer adequadamente o poder sancionador, considerando que, caso as consequências jurídicas legalmente previstas não sejam aplicadas no momento devido, a força de coerção dos dispositivos poderá restar ineficaz, inviabilizando a efetividade da citação eletrônica e gerando novas burocracias processuais.

Lado outro, incumbe ao próprio CNJ estimular o cadastro dos participantes mediante sua atuação positiva, o que pode ser feito através da regulamentação eficiente, detalhada e informativa dos passos que devem ser seguidos para o cadastro, procedimento este que deve ser simples e visualmente acessível, e fixando prazo razoável para adaptação dos stakeholders ao novo modelo.

O sistema também terá de ser delineado de modo funcional, acessível e informativo para partes e servidores, sendo que essa tarefa ganha complexidade em razão da coexistência de múltiplos sistemas judiciais sem interoperabilidade, devendo cada um deles ser implementado regionalmente para contemplar a nova ferramenta.

Para além dos sistemas e bancos de dados, o bom design jurídico também se aplica ao conteúdo do ato citatório eletrônico [6], momento ideal para o incentivo de condutas processuais através de medidas indutivas (nudges) delineadas conscientemente para estimular a efetiva participação do citando na lide em favor de sua efetividade [7] [8].

Nesse sentido, a previsão do dispositivo incluído no §4º do artigo 246 destaca que o ato citatório venha acompanhado de orientações para realização da confirmação de recebimento, bem como de código identificador no ambiente eletrônico do tribunal. Esse design vem para estimular o acesso à informação pelos litigantes, tornando o processo mais simples e compreensível, em prol da comparticipação.

Não se limitando aos requisitos descritos na lei processual, seria interessante que o conteúdo do comunicado de citação incentivasse a autocomposição processual, expondo os benefícios da realização de acordos, além de advertir em destaque os citandos acerca da sanção processual contida no artigo 246, §1º-C, caso a comunicação não seja confirmada no prazo adequado.

As informações insertas no ato de citação eletrônica devem ser transmitidas com linguagem objetiva, concisa, simples, clara, acessível, eficiente e direcionada ao público-alvo específico dos citandos (plain language). Isso porque a boa compreensão das informações processuais pelo citando assegura os seus direitos informacionais e viabiliza o exercício democrático da cidadania.

No mesmo sentido, a informação pode ser transmitida de modo eficaz, com auxílio de recursos de visual law, principalmente através de infográficos, links de direcionamento ao ambiente de confirmação, ícones gráficos, recursos de cores e tipografia que permitam aos citandos compreender determinado conteúdo relevante de maneira muito mais simples.

Acerca do impacto prático do legal design das comunicações processuais sobre a participação dos litigantes no processo, a implicação não é meramente hipotética, e já foi verificada em experimentos práticos. Os pesquisadores de Harvard James Greiner e Andrea Matthews testaram diferentes cartas de comunicação no âmbito da Corte Municipal de Débitos Tributários em Boston, e analisaram a taxa de presença na audiência inicial entre o grupo controle e o grupo que recebeu as cartas pensadas com legal design. A diferença foi significativa, visto que o segundo grupo que sofreu a intervenção apresentou índices de participação 84% superiores em relação ao grupo controle (um aumento de 13% para 24% de participação efetiva) [9].

Ademais, evidente que a estruturação do desenho jurídico adequado da citação eletrônica passará por etapas de implementação, em que cada versão da plataforma, ou do conteúdo do ato citatório, deverá ser alinhado gradativamente, com o acompanhamento dos resultados e pontos de melhora em cada uma das fases.

Já que se observou a ineficácia da citação eletrônica, da forma como ela estava estruturada anteriormente no CPC, foi necessário remodelar completamente o seu desenho estrutural de modo a permitir aplicabilidade e efetividade do mecanismo. O mesmo processo se dará durante a implantação, permitindo evoluções e adaptações que se mostrarem necessárias.

Em suma, a implantação universal da citação eletrônica no processo civil teve apenas seu primeiro passo com a regulamentação da nova Lei nº 14.195/2021 e os órgãos responsáveis poderão se beneficiar de estratégias do legal design para oferecer a melhor efetividade do novo mecanismo. Apenas um sistema conscientemente desenhado com foco nos interessados (stakeholders) pode propiciar soluções adequadas para as suas reais necessidades, assegurando a manutenção das garantias fundamentais e segurança jurídica aos jurisdicionados nesse processo.


[1] Vide nota IBDP: https://url.gratis/eWlcxr.

[2] Cf. proposta do Prof. Antônio do Passo Cabral in: https://t.me/transformacoesnoprocesso

[3] IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Legal design e acesso à justiça: criação de sistemas processuais eletrônicos acessíveis e ferramentas intuitivas no ambiente jurídico digital. In: NUNES et al. Direito Processual e Tecnologia: Os Impactos da Virada Tecnológica no Âmbito Mundial. Salvador: JusPodivm, 2021.

[4] HAGAN, Margaret. Participatory Design for Innovation in Access to Justice. Daedalus, 2019. v. 148, p. 120–127.

[5] HENDERSON. Is access to justice a design problem? https://url.gratis/tb2zDp

[6] Em relação à CRT Salter pontua que "the CRT’s template-driven letters are "massively popular," as "people really struggle with writing formal letters… Giving them the language, giving them the statutory references is really, really helpful." https://url.gratis/tb2zDp.

[8] Cf. NUNES, Dierle; ALMEIDA, Catharina. Medidas indutivas em sentido amplo do artigo 139, IV do CPC: o potencial do uso de nudges nos módulos processuais executivos para satisfação de obrigações por quantia certa — Partes 1 e 2. Revista de Processo, 2022 (no prelo).

[9] GREINER, Daniel James; MATTHEWS, Andrea.The Problem of Default, Part I. SSRN, 2015. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2622140 .

Autores

  • Brave

    é sócio do escritório do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e UFMG, membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do CPC/2015 e diretor acadêmico do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (Ideia).

  • Brave

    é membro do Grupo de Estudos em Neuroética e Neurodireito – GENe e do Grupo de Estudos em Economia Comportamental e monitora da disciplina de Direito Processual Civil na UFMG.

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