Opinião

O Código Civil Chinês e suas contribuições para o regime de prescrição brasileiro

Autores

  • Atalá Correia

    é professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) e juiz de direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

  • Izadora N.S. Muniz

    é doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG/GO) advogada pesquisadora Acadêmica no Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

3 de setembro de 2021, 7h12

Muitas lições podem ser extraídas da entrada em vigor do Código Civil da República Popular da China, o que ocorreu em 1º de janeiro deste ano. Como nem todas poderiam ser aqui pinceladas, traremos uma visão geral do que se passou naquele país para, ao final, tecer observações sobre o regime da prescrição.

O nascer de nova codificação sempre causa algum espanto, pois muito se falou sobre o crepúsculo desses instrumentos legislativos [1]. Quando se lembra que o fato ocorreu em um dos maiores países do mundo, que não tinha outros códigos em vigor, o fenômeno ainda fala mais alto. Parece, portanto, que demandas de ordem social, política, lógica e econômica são elementos concretos que, para além das teorizações possíveis, estão sempre a exigir sistematicidade, operabilidade e previsibilidade do sistema normativo, sendo os códigos meios adequados para que isso se implemente.

Por outro lado, embora muito tenha sido dito sobre as supostas vantagens dos sistemas de common law [2], vê-se que a China aprofunda seus vínculos com os sistemas jurídicos da família romano-germânica [3]. Razões históricas ajudam a compreender essa escolha. Aquele país passou por longo processo evolutivo até o seu Código Civil, que, não sem críticas, é considerado notável conquista e meio adequado para lidar com diversos avanços tecnológicos [4].

Xi Zhiguo, doutor da Universidade de Ciência Política e Direito da China, explica que o processo de modernização do direito chinês se deu desde o final da dinastia Qing, substituída pela República da China (1911) [5]. Processo este que teve continuidade após a unificação chinesa promovida pelo Partido Nacionalista Chinês, resultando no primeiro e único Código Civil chinês, o Código Civil da República da China, apontado, com poucas exceções, como uma réplica do BGB (Código Civil Alemão). Esse período marcou a adoção naquele país de um modelo de legislação nos moldes do que ocorre na Europa Continental. Em 1° de outubro de 1949, com a fundação da República Popular da China, dirigida pelo Partido Comunista, aquele código foi revogado, bem como todas as demais leis em vigor. Vigorou, então, o niilismo legal próprio da doutrina marxista que vê o Direito como instituição burguesa. Entretanto, a construção de uma economia de mercado socialista tornou premente a revisão desses preceitos. Seguiram-se novas tentativas de elaboração de outro Código Civil, sem sucesso, em 1954, 1964, 1979 e 2002.

Os esforços só se revelaram frutíferos a partir de 2014, quando o Comitê Central do Partido Comunista da China editou uma resolução a determinar a compilação e promulgação de um Código Civil. A partir daí, a Comissão Permanente do Congresso Nacional do Povo Chinês estabeleceu um comitê de redação e elaboração do projeto, que dividiu sua atuação em dois momentos: no primeiro dedicou-se à elaboração da parte geral do Código Civil, com 205 artigos; no segundo, debruçou-se sobre a elaboração dos seis livros que compõem a parte especial (direitos reais, contratos, direitos de personalidade, família, sucessões e responsabilidade civil) [6].

O código foi aprovado paulatinamente. A parte geral foi aprovada pelo Congresso Nacional do Povo em 15 de março de 2017 e entrou em vigor em 1° de outubro daquele ano. Trata-se de revisão dos Princípios Gerais do Direito Civil da República Popular da China, cuja vigência iniciou-se em 1986.

Diz-se que quatro características marcam o código: 1) está orientado personalisticamente, com proteção da dignidade humana e dos nascituros, e não para os aspectos patrimoniais das relações; 2) incorpora a promoção dos ideais socialistas (igualdade, liberdade, boa-fé, ordem pública, boa moral); 3) reflete os tempos atuais, com regulação de internet, big data, proteção de dados e meio ambiente; e 4) é orientado para a resolução de problemas práticos da China [7].

O tema que mais de perto nos interessa, qual seja, o sistema de prescrição extintiva, encontra-se regulamentado na parte geral do código. Houve inovação quanto ao prazo geral de prescrição. Aumentou de dois para três anos o período para solicitar ao tribunal popular a proteção de seus direitos civis.

Como a China adotou um sistema jurídico próprio dos países que herdaram mais proximamente as raízes romanas, abraçando até mesmo a noção de prescrição, é possível traçar linhas comparativistas. Vale dizer, não se trata de comparar o absolutamente distinto, mas de avaliar como o direito de tradição europeia ali foi recebido e transformado. Com isso, vê-se que, ao longo do tempo, o Direito romano não perde sua vocação universalista de ius comune e permite diálogo entre os diversos direitos nacionais [8].

O fundamento da prescrição está na segurança jurídica, na necessidade de estabilização das relações jurídicas e pacificação social. Com esses objetivos em vista, o artigo 188 do Código Civil Chinês impõe uma limitação temporal para que as partes recorram ao Judiciário. Assim como vemos na maior parte dos sistemas legais do ocidente, a prescrição deve ser aventada como exceção, não podendo ser conhecida de ofício pelo julgador. Após o decurso do prazo, o devedor pode renunciar à prescrição, pagando o que deve. Há diversas causas de suspensão e interrupção da prescrição, que, em essencial, coincidem com aquelas dos demais países. Optou-se pelo caráter público das regras prescricionais, sem que possam ser alteradas por acordo pelas partes. Reconhece-se que há prazos decadenciais com relação aos quais não se aplicam as hipóteses de suspensão e interrupção.

Se tudo muito se parece com aquilo que se vê entre nós, chama atenção que a segunda parte do artigo 188 considere que o prazo de prescrição começa a fluir da data em que o titular do direito sabe ou "deveria saber" que seu direito foi prejudicado e quem é o devedor. Para contrapor a incerteza que daí deriva, há um limite máximo para ajuizar as ações, de 20 anos desde a data do dano. Nesse ponto, o Código Civil Chinês inspirou-se claramente na reformulação feita pelos alemães, em 2002, no regime da prescrição, posteriormente adotada no Código Civil Francês.

Como se sabe, no contexto brasileiro, o Código Civil é fruto de trabalho acadêmico realizado na década de 1970 e, sendo aprovado em 2002, estava alheio às principais discussões que então se travavam no campo do direito prescricional, que levaram a Alemanha a propor os sistemas que posteriormente vingou em outros países. Com isso, embora a sistematicidade do Código Civil brasileiro indique um regime prescricional claramente objetivo, contado a partir da data do dano, a jurisprudência tem optado, sem critérios claros, por soluções pontuais em que, aqui e ali, prestigiam um termo inicial subjetivo, contado da data do conhecimento, efetivo ou potencial, do dano.

Os precedentes vão, aos poucos, derrogando a regra legal, o que no mais das vezes está bem assentado em preocupações legítimas com a justiça do caso concreto, mas que, de modo geral, descura-se das incertezas que isso provoca a longo prazo. Ademais, a solução descuida da operabilidade, princípio norteador do Código Civil, paradigma que sistematizou e pré-definiu os prazos de prescrição (artigo 205 e 206, CC/2002), pois sempre paira dúvida circular sobre qual deve ser o termo inicial para a prescrição (objetivo ou subjetivo) e sobre quando, afinal, já não se pode discutir os litígios que surgem de uma relação jurídica.

Nesse sentido, em uma análise comparativa, o código chinês, somando-se ao exemplo de outras legislações, traz alguma contribuição sobre o caminho jurídico que, no futuro, deveria ser trilhado pelo Brasil dentro dessa temática. Deveríamos adotar solução análoga, que possibilite apontar uma limitação final, para além da qual não é possível litigar, mesmo que considerado um termo inicial subjetivo [9].


[1] Rodrigo Xavier Leonardo, por oportunidade da vigência do Código Civil Argentino de 2015, já apontava a necessidade de maior reflexão sobre o ponto (https://www.conjur.com.br/2016-abr-04/codificacao-direito-civil-seculo-xxi-volta-futuro-parte).

[2] RUBIN, Paul H. Why Is the Common Law Efficient? The Journal of Legal Studies, vol. 6, no. 1, 1977, pp. 51–63, Disponível em JSTOR, www.jstor.org/stable/724189, acesso em 4.4.2021. Sobre o papel dos precedentes naquele país, vide QI, Zhang. O sistema de precedentes e a justiça das decisões judiciais na China. Revista de Processo, , p. 369-389, n. 224, 2013.

[3] Para uma visão mais detalhada sobre o estudo do direito romano naquele país, vide SCHIPANI, Sandro. Fundamentos romanísticos y derecho chino: Reflexiones sobre un esfuerzo común para ampliar el sistema. Revista de Derecho Privado, n° 35, Julio – Diciembre, 2018, disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3223731, acesso em 16.4.2021. Não se trata de uma aproximação apenas do direito privado, conf. COSTA CERQUEIRA, Gustavo Vieira. O Novo Direito Internacional Privado Chinês. Revista dos Tribunais, n. 906, p. 181-228, abril de 2011.

[4] Os elogios podem ser vistos em AYALEW, Dessie Tilahun. China’s Recent Civil Law Codification in the Hightech Era: History, Innovations, and Key Takeaways. Tsinghua China Law Review, Vol. 13, No. 1, Aug, 2020. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3803710, acesso em 9.4.2021. A crítica quanto a um modelo importado "legal transplant", dissociada da cultura local, pode ser vista em JIANG, Hao. Chinese Tort Law between Tradition and Transplants. In Comparative Tort Law: Global Perspectives (M. Bussani, A. Sebok ed., Edward Elgar Publishing, 2015), Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=2705916, acesso em 16.04.2021

[5] ZHIGUO, Xi. O caminho para um Código Civil chinês. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 21. ano 6. p. 291-304, out.-dez. 2019.

[6] Essa divisão mostra alguma inovação. Em primeiro lugar porque os direitos de personalidade em geral integram a parte geral dos Códigos ocidentais. Para além disso, no Brasil, há um livro destinado às obrigações e suas fontes, o que abrange os contratos e a responsabilidade civil, mas não há um livro exclusivo para a responsabilidade civil.

[7] AYALEW, op. cit.

[8] REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard. The Oxford Handbook of Compartive Law. Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 713, ebook.

[9] Para uma visão aprofundada do ponto, vide CORREIA, Atalá. Prescrição: entre passado e futuro. São Paulo: Almedina, 2021.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco da Universidade de São Paulo, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, presidente da Seção Estadual do Distrito Federal da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), membro da Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo e membro do Instituto Brasileiro de Estudos em Responsabilidade Civil.

  • é doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG/GO), advogada, pesquisadora Acadêmica no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!