Opinião

O caso Favela Nova Brasília vs. Brasil: mudança efetiva ou simbolismo retórico?

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3 de setembro de 2021, 19h32

As intervenções policiais em comunidades no estado do Rio de Janeiro ostentam, de há muito, predicados incompatíveis com o Estado democrático de Direito.

Nesse sentido, em 18/10/1994, sob a diretriz formal de apreensão de automóveis roubados, drogas e armas, 13 pessoas foram assassinadas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, no que ficou conhecido como "chacina de Nova Brasília". Para além das execuções administrativas mencionadas, houve alegação de que três mulheres — duas destas menores — foram vítimas de tortura e atos de violência sexual praticados pelos agentes.

Em 8/5/1995, em nova intervenção policial, mais 13 pessoas foram eliminadas. Somando ambas as atuações, os 26 mortos receberam mais de cem tiros [1], tendo por origem os tambores de armas estatais.

Após pressão da opinião pública e de veículos da imprensa, as autoridades policiais apresentaram "atas de resistência à prisão" como causa direta da letalidade policial. Em movimento contínuo, houve alegação de que a investigação dos fatos mencionados teria sido realizada com o escopo de estigmatizar e revitimizar os falecidos, uma vez que os aspectos investigativos teriam sido direcionados à culpabilidade destes, e não acerca da utilização de força letal pela Polícia Civil.

Meses se passaram sem a materialização de qualquer indício de que os eventos seriam objeto de apuração, quer por parte da Polícia Civil do Rio de Janeiro, quer por parte do Ministério Público Estadual. Os autos processuais contêm assinaturas de mais de 121 promotores estaduais [2] sem qualquer satisfação material com vistas à obtenção de um resultado sob a égide do devido processo legal.

Ante as falhas e demora na investigação — com consequente apuração e punição de condutas —, em 3/11/1995 e 24/7/1996 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, doravante cognominada comissão, recebeu petições denunciando violação de direitos humanos, manejada pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e pela Human Rights Watch Americas.

Os relatórios de admissibilidade, lavrados pela comissão, foram emitidos em 25/9/1998 e em 22/2/2001. Após tal ocasião, a comissão, ao estabelecer o relatório de mérito, decidiu unificar os casos, atribuindo-lhes a identificação de caso número 11.566, dada a similitude do substrato fático nos casos analisados, bem como versarem sobre um mesmo padrão de conduta.

Em 31/10/2011, a comissão lançou o relatório de mérito número 141/11 [3], conforme o artigo 50 da Convenção Americana, com resultados conclusivos sobre a responsabilização internacional do Estado brasileiro por vulneração de direitos humanos das vítimas — e seus familiares — e sete recomendações.

O Estado brasileiro foi notificado acerca das disposições contidas no relatório de mérito em 19/1/2012, contendo este previsão expressa de dois meses para prestação de informações envolvendo o cumprimento das recomendações acima identificadas.

Após a concessão de dois adiamentos, a comissão determinou que o Estado brasileiro não havia avançado de maneira concreta no cumprimento das recomendações, o que motivou a submissão do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 19/5/2015, sob a identificação Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira e outros (Favela Nova Brasília) contra a República Federativa do Brasil.

De relevo destacar que a comissão submeteu à predita corte ações e omissões estatais ocorridas posteriormente a 10/12/1998, data da aceitação da competência da corte pelo Estado brasileiro, sendo permitido ao Estado a aceitação da competência para conhecimento completo do caso, pela corte, nos exatos termos do item 62.2 da convenção.

Apresentados os argumentos, e produzidas as provas cabíveis, a corte iniciou a deliberação da sentença em 16/2/2017 [4], tendo sido, à unanimidade, reconhecida a responsabilidade do Estado brasileiro na violação de direitos humanos, havendo condenação em obligatio facere nos seguintes moldes: 1) oferecer gratuitamente, de forma imediata, o tratamento psicológico e psiquiátrico de que as vítimas necessitem; 2) publicar o resumo da sentença no Diário Oficial da União; 3) publicar o resumo da sentença em jornal de ampla circulação; 4) publicar e manter no ar por três anos o resumo e a íntegra da sentença no site do governo federal, do governo estadual e da Polícia Civil do Rio; 5) promover a divulgação de um site com a íntegra da sentença no Twitter e no Facebook do Ministério dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, da Polícia Civil do Estado do Rio, da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio e do governo do estado; 6) deverão ser inauguradas duas placas em memória das vítimas na praça principal da Favela Nova Brasília; 7) realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional; 8) estabelecer mecanismos normativos para que, na hipótese de mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida; 9) pagar uma indenização de US$ 35 mil a cada familiar das vítimas. As sobreviventes de violência sexual devem receber, cada uma, US$ 50 mil; 10) apresentar à corte um relatório sobre as medidas adotadas; 11) investigar de forma eficaz as duas chacinas; 12) investigar de forma eficaz os estupros da primeira chacina; 13) publicar anualmente um relatório oficial com dados relativos às mortes ocasionadas durante operações da polícia em todos os estados do país; 14) implementar um programa ou curso permanente e obrigatório sobre atendimento a mulheres vítimas de estupro, destinado a todos os níveis hierárquicos das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro e a funcionários de atendimento de saúde; 15) adotar as medidas necessárias para que o estado do Rio de Janeiro estabeleça metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial; 16) adotar as medidas legislativas ou de outra natureza necessárias para permitir às vítimas ou a seus familiares participar de maneira formal e efetiva da investigação conduzida pela polícia ou pelo Ministério Público; 17) adotar as medidas necessárias para uniformizar a expressão "lesão corporal ou homicídio decorrente de intervenção policial" nos relatórios e investigações da polícia ou do Ministério Público em casos de mortes ou lesões provocadas por ação policial.

Resta claro que a sentença imposta ao país busca corrigir décadas de falhas nas investigações policiais, marcados pela burocracia, dilação de prazos sem justificativas coerentes, falta de atenção na condução de investigações e inação de quaisquer outros órgãos que poderiam ter buscado superar a situação mesmo após a notificação do relatório da Comissão Interamericana. A denúncia da violência policial, ademais, não é pontual e configura, na realidade, uma conduta institucionalizada no Brasil.

O caso é importante pois representa a proteção do direito humano ao acesso à Justiça, às garantias judiciais e a condução diligente de investigações policiais, bem como o direito a uma duração razoável do processo. Ainda nesse sentido, a decisão tem uma forte carga simbólica, pois consiste na primeira sentença em que o país foi condenado em âmbito internacional por reconhecida violência e negligência policial. Entre as sanções impostas ao Brasil, destaca-se a obrigação de conduzir investigações e punir os responsáveis pelos crimes cometidos de forma célere e eficaz. Entretanto, faz-se importante destacar que a aplicabilidade da sentença, no que concerne à criação de políticas públicas, se torna difícil e imprecisa, uma vez que a sentença não estabelece objetivos, parâmetros e prazos para a supervisão na tomada de tais medidas.

Essa imprecisão compromete a aplicabilidade das decisões internacionais, criando sanções que vinculam a corte a uma supervisão constante e ad infinitum, criando uma distorção entre o papel do judiciário internacional e a condução de políticas nacionais. Infelizmente, até agora, pouco ou nada mudou em relação à atuação das forças policiais no Brasil.

Consignar o que ocorre no Brasil como mera violência policial parece servir a fins distintos que os determinados no ato sentencial acima plasmado. Para a efetiva mudança, cuja urgência se assimila do forte teor contido na condenação, é imprescindível a alteração das estruturas que permitem — e institucionalizam — a abominável prática das execuções extrajudiciais. A realidade objetivamente verificável no Brasil distancia-se da generalidade da violência, aproximando-se do conceito de "massacre", forjado por Zaffaroni, o que consistiria em qualquer prática de homicídios "de um número considerável de pessoas, por parte de agentes de Estado ou de um grupo organizado com controle territorial, em forma direta ou com clara complacência, levada a cabo em forma conjunta ou continuada, fora de situações reais de guerra que impliquem forças mais ou menos simétricas" [5].

Assim, em que pese a importância das medidas que promovem efeitos simbólicos [6] — ou seja, aqueles que provocam mudanças na opinião pública acerca de um determinado problema que vinha sendo invisibilizado, tornando-o um problema de direitos humanos, que merece atenção da mídia, da população, das instâncias políticas, dos juristas e do sistema de justiça como um todo —, ou o reconhecimento de garantias judiciais e processuais indispensáveis, é preciso pensar em formas de concretizar políticas públicas que produzam efeitos materiais concretos, capazes de provocar mudanças substanciais na realidade de diversos brasileiros, que sofrem com a violência cometida por agentes de segurança pública contra grupos marginalizados que vivem nas periferias das grandes cidades.

Em audiência pública de supervisão de cumprimento de sentença, levada a efeito no último dia 20, o Brasil foi severamente criticado pela juíza-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Elizabeth Odio Benito, para quem o Estado brasileiro parece ser incapaz de se comunicar, se perdendo em ações de competências privativas e dependendo de boa vontade de agentes esparsos [7].

A recalcitrância do Estado brasileiro em cumprir com o determinado pela Corte Interamericana, somada com a incapacidade de, enquanto Estado, se organizar para um fim comum e romper com a nefasta tradição de um Estado de "massacre", não só deteriora a imagem do Brasil no cenário geopolítico, como também impõe uma severa derrota ao Estado democrático de Direito, expondo as chagas de um império da lei que existe somente para cidadãos selecionados, ao passo em que lega a barbárie aos ditos periféricos. 

Enquanto não houver reconhecimento interno da necessidade de alteração dos mecanismos que permitem a violação frequente dos direitos humanos no país, no que tange ao "massacre" estatal, a reconciliação do Brasil com sua tradição jurídica gozará dos mesmos efeitos da condenação vertida, qual seja, o simbolismo retórico.

É preciso que o Estado cumpra integralmente com as medidas de reparação ordenadas na sentença, não somente para restabelecer uma imagem positiva perante a comunidade internacional, mas, especialmente, para criar mecanismos capazes de evitar que violações dessa espécie voltem a ocorrer de forma tão frequente. De todo modo, a sentença estabelece um forte precedente na responsabilização dos países por violência policial, o que, por si só, já é uma vitória.

 


[1] LARA, Bruna. Condenado por chacinas no alemão, Brasil ignora sentença de Corte Internacional. The Intercept Brasil, 2018. Disponível em: https://theintercept.com/2018/04/02/chacina-alemao-brasil-corte-interamericana/. Acesso em: 20 de agosto de 2021.

[2] SOARES, Rafael. Duas chacinas em Nova Brasília: casos de impunidade sob nova investigação. O Globo, 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/rio/duas-chacinas-em-nova-brasilia-casos-de-impunidade-sob-nova-investigacao-24684273. Acesso em: 19 de agosto de 2021.

[3] COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório nº 141/11. Mérito. Casos 11.566 e 11.69. Cosme Rosa Genoveva, Evandro de Oliveira e outros. (Favela Nova Brasília). Brasil. 31 de outubro de 2011.

[4] Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil. Sentença de 16 de fevereiro de 2017 (Exceções preliminares, mérito, reparações e custas), p. 34-35

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raul. La Palabra de los Muertos: Conferencias de Criminologia Cautelar, EDIAR, Buenos Aires, 2011.

[6] Sobre a diferença entre efeitos simbólicos e materiais, ver: GARAVITO, Cesar A. Rodriguez; FRANCO, Diana Rodríguez. Cortes y cambio social: cómo la Corte Constitucional transformó el desplazamiento forzado en Colombia. Bogotá: Centro de Estudios de Derecho, Justicia y Sociedad, Dejusticia, 2010.

[7] CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Audiencia pública de Supervisión de Cumplimiento del Caso Favela Nova Brasília Vs. Brasil. Youtube, 20 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QBhpuJlRroE.

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