Opinião

Pobre processo legislativo, maltratado mais uma vez

Autores

  • Michel Lutaif

    é mestre em Direito do Estado pela USP membro do Observatório de Processo Legislativo e Políticas Públicas da FDUSP.

  • Arthur Balbani

    é mestrando em Direito do Estado pela USP assistente jurídico do TJSP e membro do Observatório de Processo Legislativo e Políticas Públicas da FDUSP.

2 de setembro de 2021, 12h07

Costuma-se dizer que a história se repete duas vezes: a primeira como tragédia e a segunda como farsa.

No último dia 27 foi publicada a Lei nº 14.195/2021, decorrente da conversão da MPV nº 1.040/21, que promoveu reformas em diversos dispositivos atinentes ao Direito Privado, alterando, entre outras leis, o Código Civil. Contudo, à parte de seu mérito — o qual não será objeto de nossa análise , chama atenção a falta de técnica legislativa empregada no momento da conversão. E, infelizmente, tal lapso não é inédito.

Em primeiro lugar, o artigo 43 da lei, que alterava trechos do Código Civil, teve seu caput vetado pela presidência da República. O dispositivo, como é de praxe, mencionava o diploma normativo a ser alterado, preconizando que "a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com as seguintes alterações (…)"  além de renomear um capítulo específico do código. Entretanto, a despeito do veto aposto ao caput, foram sancionados alguns dos dispositivos que efetivamente se desejava dar nova redação.

Com isso, tais alterações se tornaram acéfalas. Ou seja, na lei sancionada constam novas redações a determinados dispositivos normativos (artigos 48-A e 206-A, por exemplo), mas sem menção a qual diploma se estava a alterar, já que o caput, que indicava que os dispositivos se referiam ao Código Civil, simplesmente não entrou em vigor. Formalmente, então, a lei não aponta de qual norma se tratam os novos artigos, cabendo ao aplicador do Direito a tarefa de identificar a localização topológica da alteração feita.

Poder-se-ia dizer que se trata de uma questão de interpretação, uma vez que é claro que o legislador se referia ao Código Civil  bastaria, para tanto, o mero contraste entre a redação final e a redação original para que se notasse, no contexto, a localização das mudanças feitas; alternativamente, também poderia se chegar à localização do dispositivo mediante a consulta ao autógrafo remetido pelo Senado Federal à Presidência da República.

Contudo, em nosso entendimento, tal conclusão não é possível. Isso porque, sob essa ótica, estar-se-ia admitindo o veto a palavras ou trechos de um dispositivo, o que é proibido pela Constituição Federal, uma vez que o caput do artigo 43 da lei também alterava a denominação de um dos capítulos do Código Civil. A disposição constitucional é cristalina no sentido de que, em casos como esse, ou se veta o texto em sua integralidade ou se sanciona a norma sem ressalvas. A Constituição não permite um meio-termo nessa situação. Forçar validade a parte de um dispositivo vetado abriria um perigoso precedente e geraria insegurança jurídica no futuro, principalmente em casos nos quais o veto promovido seja menos "inocente" do que o ora verificado.

Ademais, a situação, além de teratológica, gera também outras dúvidas: o presidente da República irá reconsiderar o veto, como já se cogitou em outras ocasiões no Brasil, mesmo sabendo que não há qualquer previsão legal para tanto? O Congresso Nacional derrubará o veto em sessão conjunta para sanar o problema e para que o dispositivo volte a ter sua redação original, apontando que as reformas se referem ao Código Civil? E, nesse caso, a vigência das novas redações retroagirá à da Lei nº 14.195/21 ou se dará apenas na ocasião da promulgação dos vetos derrubados? Como se vê, há enorme insegurança jurídica decorrente da falta de técnica legislativa.

Outro evidente defeito de legística é encontrado no artigo 41 da lei. Pretendeu-se, no processo de conversão da medida provisória, transformar todas as Eirelis (empresas individuais de responsabilidade limitada)  introduzidas no código em 2011 pelo artigo 980-A , em sociedades unipessoais, independentemente de alteração de registro. Até então, trata-se de opção política do legislador, que decidiu por descontinuar as Eirelis, o que, do ponto de vista formal, não encontraria qualquer óbice.

O problema se mostra quando a própria Lei não revoga o artigo 980-A, que continua a autorizar a criação de novas Eirelis. Isso porque o Poder Executivo sancionou o artigo 41 da lei, mas vetou as alíneas "a" e "e" do inciso XXIX do caput do artigo 57 do projeto de conversão, que se propunha justamente a revogar os artigos 44, inciso VI, e 980-A, que regulamentavam a figura jurídica das Eirelis no Código Civil.

Em síntese: todas as Eirelis existentes na vigência da lei foram convertidas em sociedades unipessoais, mas ainda continua possível constituir uma nova Eireli com base no artigo 980-A – e mais, se a mesma vier a ser criada, continuará a gozar de personalidade jurídica. O legislador, para utilizar o jargão popular, "tampou o sol com a peneira": solucionou o problema prático ora existente, mas não adotou medida alguma para impedir que, no futuro, novas Eirelis sejam criadas. E tal solução pode, inclusive, ser inócua: aqueles que porventura desejem continuar com a Eireli em detrimento da sociedade unipessoal têm a possibilidade de, simplesmente, reconvertê-las, ou mesmo encerrar a sociedade ora existente e constituir novamente uma Eireli.

É tragicômico que, nas razões do veto, o presidente da República tenha fundamentado sua decisão mencionando reflexos tributários indesejados e dificuldades de adaptação, que comprometem a boa reputação internacional do Brasil "em termos da qualidade do ambiente de negócios". Os efeitos da novel legislação e do desastrado processo legislativo por detrás da mesma são diametralmente opostos: o que se observa é justamente a promoção de mais insegurança jurídica e a criação de novos embaraços à legislação societária, o que poderia ter sido evitado se fossem respeitadas mínimas técnicas de legística.

A insegurança jurídica ainda pode ser agravada, caso o Congresso Nacional venha a derrubar o veto presidencial e abolir por completo as Eirelis Brasil. Afinal, já que não é impossível que até a derrubada dos vetos novas Eirelis sejam criadas, como restará sua situação jurídica? Serão convertidas em sociedades unipessoais, como aquelas que antecederam a sanção da Lei n° 14.195/21? Ou serão simplesmente extintas, por ausência de previsão legal?

Novamente, como na derrubada do veto aos dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o Congresso está diante de uma escolha de Sofia. Para contornar uma insegurança jurídica causada pelo veto mal formulado da presidência da República, poderá também provocar outras, mas por razões diversas.

Seria cômico se não fosse trágico. Seria compreensível se não fosse a segunda vez.

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