Interesse público

Regulação da inteligência artificial: o desafio de definir quem conforma valores

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

2 de setembro de 2021, 8h00

Não gera mais qualquer estranhamento a afirmação da ubiquidade das novas tecnologias  e com elas, do uso de inteligência artificial  nas esferas privada e pública. Ao contrário, expressões como e-government, governo digital, serviço pública digital, administração baseada em telemática; todas elas ingressam no vocabulário e mesmo no universo normativo brasileiro. No tema dos serviços públicos digitais, por exemplo, não obstante a ainda recente edição da Lei 14129/2021, que "dispõe sobre princípios, regras e instrumentos para o Governo Digital e para o aumento da eficiência pública", o recentíssimo relatório da comissão especial constituída para a análise da PEC 32/2020, materializadora da reforma administrativa, contempla no inciso XXIV conferido ao artigo 37/CF, seja "obrigatória a utilização de plataforma eletrônica de serviços públicos". O movimento reconhece um dado de realidade que se põe à Administração Pública, e que não pode ser ignorado.

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Nessa mesma esteira, tem-se a questão atinente à inteligência artificial, cujas aplicações no campo preditivo e mesmo decisório já se apresentam à exaustão no mundo da vida — e são a todo momento indicadas como ferramentas poderosas para a qualificação da ação administrativa, seja no seu desenho original, seja no monitoramento de seus resultados. Inequívoco que o uso adequado de evidências permite uma adequada avaliação dos tradeoffs envolvidos em todo processo decisório  donde o forte apelo a seu uso quando se cuida da Administração Pública, encarregada da gestão de recursos escassos para o atendimento a demandas ilimitadas.

Põe-se, então, a espinhosa questão atinente à regulação da IA, trazendo de pronto duas posições contrapostas: de um lado, aqueles que sustentam que a regulação de IA pode constringir o potencial de desenvolvimento da ferramenta, limitando seus possíveis benefícios em nome de uma resistência puramente cultural; de outro lado aqueles que afirmam que deixar aberto o espaço de operação dos agentes de IA para o amadurecimento da percepção social quanto ao seu uso pode criar uma dependência de seus usurários que tornaria mais difícil estatuir-se limitações no futuro. A visão de túnel do usuário  aquela mesma que nos leva a "concordar" com tudo para ter acesso ao último aplicativo que gera um avatar, um "eu digital"  favoreceria o uso de ferramentas de IA que determinem captura de dados diretos e metadados, cujo uso com potencial danoso nem passe pela cabeça do usuário. Nisso residiria, por exemplo, o risco  e quebrar essa cultura de utilização livre pela via da regulação teria seu custo político.

Advertência importante nessa quadra é formulada por Pasquale, em seu livro "New laws of robotics: defending human expertise in the age of AI" [1]. É certo que a regulação de atividade dinâmica como é o desenvolvimento e a aplicação de IA envolverá muito mais uma matriz de regulação principiológica do que a delimitação de regras de comando e sanção, na sua modelagem mais tradicional. Nisso reside a dificuldade  identificar entre valores que podem se ver promovidos ou desprestigiados pelo uso de IA, quais os que devam merecer especial consideração na regulação. O risco está em que, na visão do autor, essa hesitação em identificar-se quais valores devam conformar a IA pode culminar na disseminação de uma cultura de IA que conforme ela, os valores praticados pela sociedade.

No Brasil, pelo menos duas iniciativas no campo da regulação de IA merecem referência: 1) a Portaria Ministerial MCTI nº 4979, de 13 de julho de 2021 [2], que institui a Estratégia Brasileira para Inteligência Artificial; e 2) o PL 21/2020, de autoria do deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE) [3], que mereceu o regime de urgência, e hoje se encontra em Plenário, aguardando deliberação. Não resisto a apontar a curiosa incoerência recomendação que encerra a justificativa da proposição "regulações impostas ao setor devem ser precedidas de amplo debate público, envolvendo, especialmente, o setor empresarial, especialistas e a sociedade civil"  e o regime de urgência que lhe foi conferido, que caminha em direção oposta.

Em que pese a relevância de que essas iniciativas tragam à luz a discussão; fato é que o baixo grau de visibilidade do debate em torno delas atrai o risco de que a matéria seja tida como de domínio exclusivo dos técnicos, abdicando em alguma medida, dos valores democráticos da representação que a deliberação legislativa deve sempre aportar.

Vale ainda advertir para a circunstância de que em especial a medida legislativa proposta parece incidir em equívoco contra o qual adverti em trabalho recente  aquele de que a regulação se pretenda apresentar a partir de um modelo único [4], one-size-fits-all, para aplicações de IA que podem guardar profundas diferenças, seja por sua própria estrutura, seja pelo tipo de dados com que este mesmo mecanismo lida.

O desafio de regulação de IA é grande  mas também nele a questão principal parece ser quem deve dominar o processo. E a melhor ferramenta posta aos humanos para esse domínio é presidir, com firmeza, abertura democrática e transparência, a conformação dos valores que se há de prestigiar na regulação desse campo.

 


[1] PASQUALE, Frank. New laws of robotics: defending human expertise in the age of AI. Cambridge, Massachusetts – London, England: The Belknap Press of Harvard University Press, 2020.

[3] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340, acesso em 1/09/2021.

[4] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas públicas para inteligência artificial: uma contribuição para uma agenda prioritária. in IOCKEN, Sabrina; WARPECHOWSKI, Ana Cristina Moraes e GODINHO, Haloisa Helena Antonacio M. Políticas públicas e os ODS da Agenda 2030. Belo Horizonte: Editora Forum, 2021.

Autores

  • é professora da Universidade Estácio de Sá, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School. Pós-doutorado em Administração pela Ebape/FGV e Doutora em Direito pela Universidade Gama Filho (2006), é também Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unesa/RJ, procuradora do Município do Rio de Janeiro e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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