Controvérsias Jurídicas

A contemporaneidade dos fatos e a prisão cautelar

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

2 de setembro de 2021, 8h00

Há no Brasil a falsa percepção de que o combate à criminalidade perpassa, necessariamente, pelo encarceramento, resultando nos últimos anos na subversão do instituto da prisão cautelar. Não são raras as oportunidades em que nos deparamos com decretações de prisões preventivas sem a devida fundamentação legal, distantes dos requisitos legais apontados pelos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal.

O princípio fundante do processo penal é o do estado de inocência (CF, artigo 5º, LVII, e Pacto de San José da Costa Rica, artigo 8º), segundo o qual nenhuma pessoa poderá ser considerada culpada antes da sentença penal condenatória transitada em julgado.

Segundo Guilherme Madeira Dezem: "Desta lição decorre a clara regra: o acusado deve ser tratado como inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, porque de fato e juridicamente é inocente. Desta forma, qualquer medida automática que restrinja direitos fundamentais não pode ser aceita" [1].

No mesmo sentido, Aury Lopes Jr: "Muito importante sublinhar que a presunção constitucional de inocência tem um marco claramente demarcado: até o trânsito em julgado. Neste ponto nosso texto constitucional supera diplomas internacionais de direitos humanos e muitas constituições tidas como referência. Há uma afirmação implícita e inafastável de que o acusado é presumidamente inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (…)" [2].

Recentemente, o STF alterou seu posicionamento sobre a execução antecipada da pena após o julgamento em segunda instância, mas antes do trânsito em julgado. No julgamento das ADPFs 43, 44 e 54, as quais tinham por objeto verificar a compatibilidade entre o CPP, artigo 283, e a Constituição Federal, entendeu a Suprema Corte não ter sido a execução antecipada recepcionada pela Carta Magna.

Ressalte-se que o mesmo raciocínio deve ser aplicado à execução antecipada de pena superior a 15 anos, após condenação pelo Tribunal do Júri (CPP, artigo 492, I, "e"). Aqui, cuida-se de hipótese de cumprimento antecipado de pena ainda em primeira instância, com colisão aos princípios constitucionais derivados do devido processo legal.

Para o sistema jurídico pátrio, a liberdade é a regra e a prisão, a exceção. Somente em situações excepcionais, ditadas pela urgência em tutelar a efetividade do processo, a higidez das provas ou a paz social, o sistema admite a prisão processual antecipada, cotejando o direito individual com o bem comum.

São as denominadas prisões cautelares (flagrante, temporária e preventiva), que somente se justificam para atender a necessidades de extrema urgência. Assim como o processo civil se serve do binômio fumus boni iuris e periculum in mora para a concessão de tutela antecipada, são requisitos formais da prisão cautelar o fumus comissi deliciti e o periculum libertatis. O primeiro se refere à necessidade de elementos mínimos de prova da existência do crime e de indícios suficientes de autoria; o segundo, por sua vez, diz respeito ao perigo que a liberdade do acusado pode trazer para a sociedade, o sistema econômico, o regular andamento do processo ou a garantia da aplicação da pena.

Presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis, o julgador deverá verificar se o pedido de prisão cautelar, em específico a preventiva, encontra fundamento nas hipóteses do CPP, artigos 312 e 313, sendo vedada qualquer tipo de interpretação extensiva da norma penal para prejudicar o acusado.

Diz o CPP, artigo 312 que "a prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado". Tirando as quatro hipóteses trazidas pelo texto legal, é inadmissível a constrição da liberdade do acusado.

Há de se dizer que, com o advento da Lei nº 12.403/11, ficou ainda mais evidente a excepcionalidade das prisões cautelares, sendo dever do juiz verificar se existem medidas alternativas à prisão que melhor se adequem ao caso concreto, nos termos do CPP, artigo 319. Além do mais, foram extintas as prisões decorrentes da pronúncia e da sentença penal condenatória recorrível, as quais passaram a ser tratadas como prisão preventiva (CPP, artigos 413, §3º, e 387, §1º).

A reforma introduzida pela Lei nº 13.964/19 foi responsável por trazer ao sistema duas condicionantes temporais autorizadoras da prisão cautelar, quais sejam: fatos novos e fatos contemporâneos. Somente será legal a decretação de prisão cautelar que disser respeito a fato novo praticado após o cometimento do crime, tal como ocorre quando o acusado ameaça uma testemunha. Também só será legal a prisão cautelar quando o fato que ensejou a prisão e a decretação for contemporâneo.

Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci: "O ponto a ser evitado é alicerçar prisão cautelar em fato pretérito muito antigo, mesmo que se trate de prática de delito grave. Se uma infração penal é concretamente séria, o que se espera é a decretação cautelar de pronto; não há cabimento em se esperar vários meses, investigando o delito, com o suspeito solto para, depois, somente quando a denúncia for recebida, a prisão ser deferida" [3].

Em verdade, o próprio fundamento do periculum libertatis não subsiste se o acusado tiver contra si mandado de prisão preventiva por fato ocorrido anos atrás. A razão autorizadora da quebra do estado de inocência é a necessidade imediata de prisão do imputado por fato supostamente criminoso cometido nos dias presentes, trazendo perigo atual ou iminente ao corpo social.

Acerca da característica da contemporaneidade, chamada de atualidade por Guilherme Madeira Dezem, citamos: "As medidas cautelares somente podem ser impostas caso haja a característica da atualidade. Vale dizer, a medida cautelar deve estar relacionada a um fato que seja contemporâneo à sua imposição" [4].

De igual forma entendeu o STJ:

"1. Não é lícita a prisão, preventiva ou temporária, por descumprimento do acordo de delação premiada, extraindo-se, por esse motivo, efetiva situação de ilegalidade. Precedentes. 2. Embora se indique grave crime praticado por organização criminosa voltada para a prática de delitos contra a Administração Pública, trata-se de fatos do ano de 2014 e mesmo a indicada ação de limpeza geral de documentos é de 07 de janeiro de 2015, não autorizando a prisão temporária em novembro de 2018 (quase quatro anos após), possuindo atualidade apenas a ocultação ou mentira sobre fatos da colaboração premiada" [5].

"1. A prisão preventiva é compatível com a presunção de não culpabilidade do acusado desde que não assuma natureza de antecipação da pena e não decorra, automaticamente, do caráter abstrato do crime ou do ato processual praticado (artigo 312, § 2º, CPP). Além disso, a decisão judicial deve apoiar-se em motivos e fundamentos concretos, relativos a fatos novos ou contemporâneos, dos quais se possa extrair o perigo que a liberdade plena do investigado ou réu apresenta para os meios ou os fins do processo penal (artigos 312 e 315, CPP) (…)" [6].

Não restam dúvidas que a decretação da prisão preventiva por fato antigo, e, portanto, não contemporâneo, resulta em uma ilegal antecipação dos efeitos mais gravosos da sentença condenatória no âmbito criminal, qual seja, o cumprimento de pena restritiva de liberdade em regime prisional fechado, contrariando o mandamento do CPP, artigo 312, §2º [7].

Dessa maneira, concluímos que a ausência da contemporaneidade da ordem de prisão cautelar exclui a urgência para a supressão da liberdade individual, tornando-a desnecessária e ilegal. Nesses casos, em vez de proteger a sociedade, a ordem econômica, o processo ou a aplicação da pena, a prisão cautelar apresenta o único e exclusivo objetivo de antecipar o efeito mais gravoso de sentença penal condenatória em momento no qual ainda não se formou em definitivo o juízo de culpabilidade.

 


[1] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo penal, 7ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, 2021, p. 870

[2] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal, 18ª edição, Ed. SaraivaJur, 2021, p. 640

[3] NUCCI, Guilherme de Souza, Curso de Direito Processual Penal, 18ª edição, Ed. Forense, 2021, p. 695.

[4] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de Processo penal, 7ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, 2021, p. 868

[5] STJ, HC 479227/MG, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 18/03/19.

[6] STJ, HC 633110/MG, Rel. Min Rogério Schietti Cruz, DJe 19/03/21.

[7] artigo 312, § 2º, CPP. Não será admitida a decretação de prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento da denúncia.

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