Opinião

A importação da presunção de omissão de receita para o processo penal

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1 de setembro de 2021, 10h36

Como tem revelado a experiência jurídico-penal, é prática cada vez mais recorrente da Receita Federal comunicar ao Ministério Público, via representação fiscal para fins penais, a respeito da existência de autuações fiscais lavradas com base no artigo 42 [1] da Lei nº 9.430/96. A Receita tem alertado o Parquet para a ocorrência do crime contra a ordem tributária previsto no artigo 1º, I [2], da Lei nº 8.137/90. Tais comunicações têm resultado em condenações de acusados que, provocados, deixaram de comprovar a origem de recursos movimentados em suas contas junto a instituições financeiras, presumindo-se, assim, a ocorrência de uma conduta típica.

Nossa jurisprudência, incluindo-se o Supremo Tribunal Federal [3], o Superior Tribunal de Justiça [4] e os Tribunais Regionais Federais, vem admitindo essa prática, declarando, repetidas vezes, que: "Se na esfera administrativa é ônus do contribuinte comprovar, de maneira cabal e inequívoca, documentalmente, a natureza não tributável de cada um dos depósitos apontados pela autoridade fazendária como receita omitida, no âmbito do processo penal, basta que o réu traga indícios suficientes para gerar dúvida razoável no espírito do julgador acerca da existência de receita omitida" [5] (grifos do autor).

Todavia, sem imiscuir-se nas discussões tributárias ínsitas à (in)constitucionalidade e (i)legalidade do referido artigo 42 da Lei nº 9.430/96, convém tecer breves considerações críticas a respeito da importação equivocada, para o âmbito penal, de instituto de Direito Tributário calcado em presunção.

Como é cediço, o processo penal, por força de suas especificidades, é regido por princípios próprios, destacando-se, no que aqui interessa, o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF/88) [6] enquanto norma probatória e norma de julgamento [7]. Nesse sentido, é de todo assente que "no processo penal não existe 'distribuição de cargas probatórias', como no processo civil, senão mera 'atribuição' de carga ao acusador (…)" [8], de modo que, em caso de dúvida, a absolvição penal é o único deslinde processual juridicamente aceitável, pois "somente havendo prova robusta, forte, altamente confiável, de indiscutível qualidade epistêmica (…), é que (se) autoriza uma sentença penal condenatória, pois apta a superar a barreira do 'acima da dúvida razoável" [9].

Desse modo, admitir a instauração de persecução penal, derivada de representação fiscal para fins penais lastreada no artigo 42 da Lei nº 9.430/96, a fim de que o agente, na esfera criminal, a exemplo do que ocorre no processo administrativo, produza prova capaz de elidir a praesumptio juris tantum, tem por resultado prático uma inaceitável inversão do ônus da prova, subvertendo, por indevida equiparação dos campos administrativo e criminal, um dos princípios basilares do processo penal: a presunção de inocência.

Não bastasse a deflagração de ações penais com lastro quase que exclusivo em representações do Fisco e na inconstitucional inversão do ônus da prova, verifica-se ainda a ocorrência de diversas condenações cujo sustentáculo principal é a própria recusa ou omissão do acusado — outrora apenas contribuinte — em comprovar a origem dos depósitos realizados em suas contas bancárias. Sucede que, como destaca Leonardo Muraro, "somente poderá ser passível de incidência do imposto de renda o que efetivamente for 'renda', após o abatimento das despesas (custos etc.)" [10], de forma que, "por exemplo, no caso dos depósitos bancários realizados na conta movimentada por uma empresa de factoring, não podemos considerá-los como renda, pois na verdade nada mais são do que o capital de giro da empresa" [11].

Trocando em miúdos, com a aplicação indiscriminada do artigo 42 da Lei nº 9.430/96, há hipóteses de incidência do Imposto de Renda (IR) sobre valores que não constituem, efetivamente, renda tributável, mas, sim, montantes que, pelas mais variadas razões, não tiveram sua procedência demonstrada pelo contribuinte. O problema, sob a ótica penal, é justamente a presunção de que referida ausência de demonstração — que se traduz, na prática, em ônus probatório à defesa — possibilite a conclusão automática de ocorrência de um crime tributário.

Assim, na seara tributária, a controvérsia cinge-se à presunção de que houve a falta de recolhimento de tributo federal aos cofres públicos. Na seara criminal, entretanto, essa mesma presunção estende-se à própria materialidade do delito, que pode ou não ter ocorrido. Assume-se, ao arrepio do subprincípio in dubio pro reo, a ocorrência de crime, tornando equiparáveis um fato conhecido — a não comprovação da origem dos valores movimentados — e um fato desconhecido ou duvidoso — supressão ou redução de tributo —, com a consequente prolação de um édito condenatório que, supostamente, deveria superar qualquer dúvida razoável.

Justamente porque uma pena representa um gravame muito maior do que uma sanção meramente administrativa, é que os riscos de uma condenação criminal equivocada devem ser mitigados. Os princípios que regem o Direito Penal garantem ao acusado camadas de proteção por vezes inexistentes em outras esferas, as quais não podem ser ignoradas ou superadas. A única presunção aceitável no processo penal é a presunção de inocência.

 


[1] "Artigo 42 – Caracterizam-se também omissão de receita ou de rendimento os valores creditados em conta de depósito ou de investimento mantida junto a instituição financeira, em relação aos quais o titular, pessoa física ou jurídica, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos utilizados nessas operações".

[2] "Artigo 1°-  Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias".

[3] STF, HC 121.125/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. em 10.06.2014, DJe 05.09.2014.

[4] STJ, AgRg no REsp 1.321.677/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, j. em 07.08.2014, DJe 22.08.2014.

[5] TRF3, Apl Crim 0015100-32.2015.4.03.6181/SP, Rel. Des. Fed. José Marcos Lunardelli, 11ª Turma, j. em 27.11.2020, DJe 02.12.2020.

[6] "Artigo 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

[7] Moraes, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 424 e ss.

[8] Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 110.

[9] Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 398.

[10] Muraro, Leonardo. A omissão de receitas de acordo com a presunção legal do artigo 42 da Lei 9.430/96 e a questão dos depósitos bancários. Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 83/2008, Nov-Dez, p. 147-153.

[11] Muraro, Leonardo. A omissão de receitas de acordo com a presunção legal do artigo 42 da Lei 9.430/96 e a questão dos depósitos bancários. Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 83/2008, Nov-Dez, p. 147-153.

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