Opinião

A inaplicabilidade da trava legal às compensações de créditos do Tema 69/STF

Autor

  • Fabio Artigas Grillo

    é advogado doutor em Direito do Estado pela UFPR conselheiro seccional e presidente da Comissão de Direito Tributário da OAB-PR membro da Comissão Especial de Direito Tributário do CFOAB e Conselheiro do Instituto de Direito Tributário do Paraná (IDT).

1 de setembro de 2021, 9h14

Com o julgamento dos embargos de declaração opostos no Recurso Extraordinário nº 574.706/PR, ocorrido perante o Supremo Tribunal Federal em maio passado, imaginou-se que seria o capítulo final de uma novela que durou mais de 20 anos para terminar, resultando no Tema 69 em grau de repercussão geral ("O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do Programa de Integração Social ou PIS e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social ou Cofins").

No entanto, a Receita Federal do Brasil (RFB), por meio de sua força-tarefa denominada "auditoria de créditos oriundos de ações judiciais, informados em declarações de compensação, referentes à exclusão do ICMS da base de cálculo da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins", vem dando início aos procedimentos de verificação e homologação dos créditos judiciais sobre a matéria, habilitados, compensados e declarados pelos contribuintes deles titulares.

Tensionando ainda mais esse contexto, circulou nos últimos dias a existência de documento interno da Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), juntado nos autos 5000538-78.2017.4.03.6110 em processo que tramita no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, logo após o Pretório Excelso ter publicado o acórdão dos mencionados embargos de declaração, indicando a orientação da RFB segundo a qual a parcela do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que consta nas notas de entrada, ou seja, na tomada de crédito, também não poderia ser contabilizada.

Com essa postura conflitiva, típica de quem não aceita a derrota judicial, a RFB vem dando início à abertura dos procedimentos fiscalizatórios e, com isso, travando automaticamente as futuras compensações com o saldo remanescente de referidos créditos a título de PIS e Cofins. Na prática, os contribuintes que possuem decisões transitadas em julgado e créditos habilitados para compensação perante a própria RFB estão sendo impedidos de exercer esse direito mesmo após tantos anos de embate judicial, até que a verificação oficial seja finalizada  com a homologação expressa ou lavratura de auto de infração.

Ou seja, ao que tudo indica, ainda teremos mais judicialização a respeito desse desdobramento relativo à incabível imposição da trava às compensações de créditos judiciais do PIS e Cofins decorrentes do Tema 69 STF.

Mencionada trava legal está prevista expressamente pelo artigo 74, §3º, VII, da Lei nº 9.430/1996, com a alteração promovida pelo artigo 6º, da Lei nº 13.670/2018, impondo a vedação à compensação do crédito objeto de pedido de restituição ou ressarcimento e o crédito informado em declaração de compensação cuja confirmação de liquidez e certeza esteja sob procedimento fiscal.

Ou seja, aqueles sujeitos passivos que tiverem realizado procedimento de compensação de indébito tributários federais estão, a partir da vigência dessa limitação legal, impedidos de realizar novas compensações caso estejam sob procedimento de fiscalização por parte da RFB. Assim, somente poderão ser retomadas as compensações após encerrada a fiscalização fazendária.

Ocorre que a trava legal em questão, imposta pelo artigo 74, §3º, VII, da Lei nº 9.430/1996, configura regra geral que não se aplica ao regime jurídico específico dos créditos judiciais decorrentes da Tese 69 da repercussão geral fixada pelo pretório STF no Recurso Extraordinário nº 574.706/PR. Isso em função do disposto pelos artigos 19, VI e 19-E, III, §1º, ambos da Lei nº 10.522/2002, combinados com o Parecer SEI nº 7698/2021/ME.

Seguindo o disposto nesses artigos 19, VI, e 19-E, III, §1º, da Lei nº 10.522/2002, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), por meio de sua Procuradoria-Geral Adjunta de Consultoria e Estratégia da Representação Judicial  Coordenação-Geral da Representação Judicial da Fazenda Nacional  Coordenação de Consultoria Judicial, expediu o acima referido Parecer SEI nº 7698/2021/ME.

Pelo disposto nos artigos 19, VI, e 19-E, III, §1º, da Lei nº 10.522/2002, tem-se, no regime normativo específico e excepcional à regra geral, os créditos judiciais decorrentes de ações individuais albergadas pelo Tema 69 do STF não podem se valer de entendimento divergente daquele ao qual estão vinculados objetivamente pelo Parecer SEI nº 7698/2021/ME, inclusive para fins de revisão de ofício do lançamento e de repetição de indébito administrativa.

Mencionado parecer SEI é direto e não comporta interpretações fiscalistas pela RFB: "Essa orientação é relevante para que a Secretaria Especial da Receita Federal passe a observar, quanto ao tema, o teor artigo 19-A, III e §1º da Lei nº 10.522/2002, de maneira que não mais sejam constituídos créditos tributários em contrariedade à referida determinação do Supremo Tribunal Federal, bem como que sejam adotadas as orientações da Suprema Corte para fins de revisão de ofício de lançamento e repetição de indébito no âmbito administrativo".

O parecer em questão tem caráter vinculante e não pode ser considerado pela RFB em suas fiscalizações como meramente sugestivo. O mesmo é determinante e vinculativo a todos os auditores fiscais da RFB, tornando a imposição da famigerada trava legal ato abusivo e sem validade jurídica, resultando em coação administrativa explícita.

Deve-se ressaltar que não se está impedindo  ou, até mesmo, questionando  que a RFB exerça deu poder-dever fiscalizatório, ao contrário; consoante disposto no artigo 150, §§1º e 4º, do Código Tributário Nacional (CTN), a administração tributária dispõe de cinco anos para homologar referida compensação do PIS e Cofins, contados do efetivo encontra de contas decorrente do envio dos respectivos formulários PERD/COMP, eis que o direito compensatório está gravado por condição resolutiva até sua efetiva homologação em referido prazo legal.

Com efeito, o regime jurídico imposto nos artigos 19, VI, e 19-E, III, §1º, por meio da Lei nº 10.522/2002, enquanto regramento especial afasta a imposição da trava legal prevista pelo artigo 74, §3º, VII, da Lei nº 9.430/1996, que é regra geral para as demais compensações. O Parecer SEI nº 7698/2021/ME tem caráter vinculante para a RFB e PFN por disposição expressa dos artigos 40, §2º, e 42, ambos da Lei Complementar nº 73/93, responsável pela disciplina jurídica dos pareceres da AGU e seus órgãos, entre eles a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN)

Segundo a precedência da matéria perante o STF, por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança nº 24.631/DF [1], o parecer jurídico tem a seguinte repercussão: "Quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídica deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir".

Em suma, fechar os olhos para a aplicação do disposto pelos artigos 19, VI, e 19-E, III, §1º, da Lei nº 10.522/2002, bem como artigos 40, §2º, e 42, ambos da Lei Complementar nº 73/93, permitindo a imposição automática e via sistema da trava legal objeto do artigo 74, §3º, VII, da Lei nº 9.430/1996, implica contrariedade direta ao princípio da legalidade, na tríplice acepção constitucional (artigo 5º, II; 37, caput; e também 150, I, CF88).

Da mesma forma, caso mantida a trava legal do artigo 74, §3º, VII, da Lei nº 9.430/1996, a incoerência da RFB estará evidenciada não só em relação ao corolário da legalidade, mas, ao mesmo tempo, da razoabilidade, proporcionalidade, praticabilidade, boa-fé e confiança legítima. Além, é claro, de ignorar a escorreita jurisprudência sobre a matéria perante os tribunais superiores.

Conclui-se, portanto, pela obrigatoriedade de que, independentemente da existência de procedimento de fiscalização em curso, a administração tributária federal (RFB) receba e processe normalmente todas as declarações de compensação apresentadas pelos contribuintes que tenham por objetivo compensar os créditos judiciais de sua titularidade, amparados na coisa julgada formal e material decorrentes de suas ações individuais transitadas em julgado, de acordo com o Tema 69 STF e o Parecer SEI nº 7698/2021/ME, eis que os artigos 19, VI, e 19-E, III, §1º, da Lei nº 10.522/2002 fixam regime normativo específico e excepcional à regra geral da trava legal imposta pelo artigo 74, §3º, VII, da Lei nº 9.430/1996.

 


[1] STF, MS 24631, Relator ministro JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 09/08/2007, DJe-018 31-01-2008, PUBLIC 01-02-2008, EMENT VOL-02305-02 PP-00276, RTJ VOL-00204-01 PP-00250). Perante o Superior Tribunal de Justiça – STJ prevalece o mesmo entendimento: STJ, REsp 1094218/DF, Relatora ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 25/08/2010, DJe 12/04/2011.

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