Processo Tributário

Coisa julgada sobre questão constitucional tributária

Autor

  • Fernanda Donnabella Camano

    é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo advogada professora dos Cursos de Especialização e Extensão em "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisadora do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

31 de outubro de 2021, 8h00

Conforme anunciado em texto anterior desta coluna, o "macrotema" da coisa julgada comporta subtemas, entre eles o da questão prejudicial trazida pelo artigo 503, §1º, I a III, e §2º, do Código de Processo Civil (CPC).

Para descermos às outras ramificações daquele subtema, analisaremos nesta oportunidade a questão constitucional arguida e decidida enquanto prejudicial nas ações judiciais antiexacionais.

Ao atacar a exigibilidade do crédito tributário, os contribuintes poderão colocar em dúvida a constitucionalidade da regra-matriz de incidência de que depende a resolução do pedido o que, aliás, é uma prática rotineira do profissional do contencioso tributário.

Não obstante a decisão de (in)constitucionalidade, enquanto questão prejudicial, fazer coisa julgada, há quem sustente que isso não seria possível por força da interpretação do inciso III do §1º do artigo 503 do CPC, o qual prescreve a necessidade de o juízo ser competente em razão da matéria e da pessoa para decidir a questão prejudicial como se principal fosse. Assim afirmam, porque sustentam que a questão constitucional somente poderia ser apreciada e resolvida pelo Supremo Tribunal Federal nos modos principal e abstrato (ou seja, por meio das ações diretas de (in)constitucionalidade) ao ser decidida incidentemente pelos juízes e tribunais enquanto prejudicial nas demandas tributárias, sobre ela não poderia recair a coisa julgada.

Três objeções merecem ser postas na tentativa de revisitar e afastar essa ideia.

A primeira toca na combinação da evolução do contencioso judicial tributário com a gênese da questão prejudicial disciplinada pelo CPC. Se olharmos a história daquele contencioso desde o texto de 1988, constataremos que a era da massificação da litigiosidade relativa às "teses tributárias" tem se transformado na fase cooperativa entre contribuinte e Fisco, apontando para a desejável inibição da reprodução de demandas, especialmente aquelas que contêm o mesmo fundamento jurídico. Some-se a isso o fato de que a questão prejudicial, tal qual trazida pelo CPC, ter relação estreita com a coisa julgada sobre questão prevista nos Estados Unidos, instituto que nasceu preocupado com a coerência do direito, a autoridade e a eficiência das cortes, bem como a administração da Justiça. A coisa julgada sobre questão no direito norte-americano tem matriz no direito inglês do século 11 (estoppel), com a proibição às partes de negar suas declarações antes aduzidas no processo, calcada na boa-fé objetiva e na vedação de argumentar algo incompatível ao que outrora dito. Somente mais tarde (século 15) o estoppel inglês passou a demandar um julgamento final, abrangendo as questões decididas decorrentes das manifestações das partes e, assim, não se descolou da boa-fé objetiva e da cooperatividade.

Ou seja, nos dias de hoje, não é possível abordar o instituto como se em sua essência fosse "o mesmo" daquele vigente no código de 1973, isto é, interpretando-o ainda sob o modelo do Direito italiano quando a coisa julgada dizia respeito apenas à solução atribuída à lide e às partes.

A segunda, acerca do dispositivo que determina que o juízo deva ter competência para decidir a questão prejudicial como se principal fosse, significa apenas que não poderá ser incompetente de forma absoluta, nos termos estabelecidos pelo artigo 62 do CPC: "A competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função é inderrogável por convenção das partes" [1]. Trata-se de regra estatuída no interesse da administração da Justiça e, portanto, insuscetível de alteração pela conveniência dos litigantes.

Por exemplo, se A propõe uma demanda contra B e a União na Justiça federal, mas surge uma questão prejudicial entre A e B a ser decidida em outro juízo, aquele perante o qual a demanda é processada até poderá resolvê-la, mas sobre ela não recairá a coisa julgada.

E a terceira diz respeito aos modos de endereçamento e apreciação da questão constitucional pelos juízes e tribunais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.

Aquela questão (a prejudicial) pode ser submetida e resolvida nos modos incidental e concreto, como é o caso da questão constitucional enquanto prejudicial suscitada nas ações judiciais antiexacionais [2], em que todos os juízes e tribunais detêm competência para solucioná-la.

Também poderá ser arguida e apreciada nos modos principal e concreto. Nesse cenário, poderíamos pensar que a questão constitucional resolvida na ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária se dá nesses moldes, afinal, a crise de incerteza provocada pelo contribuinte, como leciona Dalla Pria [3], é gerada pela alegação de inconstitucionalidade da regra-matriz de incidência. A sentença conferirá interpretação a respeito da (in)constitucionalidade de tal norma jurídica que, por conseguinte, retira a dúvida quanto à submissão do contribuinte ao poder estatal no que concerne à exigibilidade do crédito tributário.

Por fim, nos modos principal e abstrato, tem-se que a decisão da questão constitucional se verifica de forma autônoma a qualquer conflito (atual ou potencial), por meio de ações judiciais propostas diretamente perante o Supremo Tribunal Federal (ADI/ADC), cuja competência é exclusiva dessa corte.

Ou seja, nada tem que ver a apreciação e resolução da questão constitucional exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal com os demais modos em que é suscitada e decidida por todos os juízes e tribunais.

Vê-se, pois, que inadmitir a formação da coisa julgada sobre a questão constitucional solucionada enquanto prejudicial nas ações judiciais antiexacionais, pode ser um mecanismo de defesa para que deixemos as "coisas como estão", ignorando que a coisa julgada sobre questão prejudicial ganhou um completo remodelamento com o código de 2015, além de fazer persistir os velhos tempos da litigiosidade perniciosa aos contribuintes, ao Fisco e à administração da Justiça.

 


[1] Sobre o tema, ver Luiz Guilherme Marinoni. Coisa julgada sobre questão. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters/RT, 2019.

[3] Direito processual tributário. São Paulo: Noeses, 2020.

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    é pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogada, professora dos cursos de especialização e extensão em Processo Tributário Analítico do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e pesquisadora do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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