Processo Familiar

O padrastio enquanto estado familiar e sob os limites da paternidade socioafetiva

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

31 de outubro de 2021, 8h10

Introdução
Diante de famílias recompostas ou reconstituídas, ou de famílias anaparentais formadas, inclusive por adoção, a inserção de um novo parceiro decorrente da superveniente união e perante o filho do outro, institui o denominado estado familiar do padrastio ou do madrastio. É um instituto de frequência comum pela recorrência de novas uniões que a legítima busca da felicidade colocou em mora e em frustação de êxito as uniões pretéritas.

Estas relações parentais de afinidade demandam situações exigentes de uma melhor regulação jurídica. Notadamente quando as primeiras prospecções sobre o presente e o futuro dessas relações avocam, em primazia, a plena efetividade do princípio constitucional da proteção integral da criança e do adolescente e, no particular, mecanismos de ordem pública que assegurem, de fato, essa proteção.

Nosso ordenamento vigente se apresenta deficitário à tarefa de juridicizar o estado familiar do padrastio, face a imperiosa necessidade de cumprir-lhe estabelecer os limites próprios que o distinga da paternidade/maternidade socioafetivas ou de situá-lo, de outro turno, também na figuração hibrida do padrasto ou madrasta, em posição equiparada e equipotente ao do pai ou da mãe, aderindo o elemento do afeto como vínculo. Afinal, neste déficit normativo, reside a ausência de menções legais e expressas sobre o amor e a afetividade, valores que se colocam inerentes na juridicidade das relações, sob a essência exponencial do jurídico, embora os vocábulos substanciais estejam fora dos pergaminhos da lei, e não simplesmente na legalidade enquanto tal.

Configurações
Vejamos, então:

(i) a um, a configuração jurídica do marido da mãe ou da esposa do pai, enquanto apenas formalizada pela relação imediata na perspectiva limitada das relações de convivência com os enteados, conduzidas por uma simples afinidade parental, não implica, em ato imediato, a inferência do elemento socioafetivo, que se constrói ou não, no decurso do tempo.

Realmente, o vínculo existente será apenas o vínculo civil, ou conforme a leitura do artigo 1.595 do Código Civil, por mera ficção jurídica, um vínculo por afinidade, sem implicações maiores de relações de afeto.

O padrasto não declina de sua condição de terceiro, não pretendendo assumir a qualidade substitutiva de pai, colocando-se, de início, apenas expectador de um núcleo familiar contido na relação originária. Ou seja, o padrastio não constitui, em tempo e modo, uma “paternidade instantânea”, com deveres e direitos próprios. Existe, porém, um vínculo jurídico, e até afetivo, mais das vezes, a tanto admiti-lo incluído em obrigação de os parentes por afinidade prestar alimentos, quando no artigo1.694 do Código Civil, não distingue a origem parental para esse fim, como sustenta Maria Berenice Dias; ou ainda, reconhecido o direito de visita ao ex-enteado, entre outros efeitos jurídicos.

(ii) a dois, o padrasto, mesmo não detendo maiores vínculos de afeto, não poderá, a eximir-se de uma eventual sociopaternidade, atuar sem exação dos deveres mínimos de apego e de proteção, sob pena de incidir em posições de manifesta desafeição, o que não se coaduna com os princípios de respeito e de solidariedade aos enteados.

O afeto de uma relação é construído na medida da sua inteira disponibilidade. “Valor, respeito e apego”, diria Joseph Raz, filósofo do Direito no Balliol College, de Oxford, diante da universalidade do tema e em experiência de singularidades, numa tríade de permissivos à atuação adequada do padrasto ou madrasta.

A propósito, temos fundadas críticas ao artigo 1.636 do Código Civil por contribuir, de forma adversarial a essa atuação, ao afastá-los de qualquer interferência sobre o exercício do poder familiar, cuja regência continua exclusivamente pertencente aos pais, nada obstante estejam ou possam estar o padrasto/madrasta, em boa medida, a prestar apoio, inclusive material, à formação adequada dos enteados.

Ou seja, falta-lhes o devido papel jurídico diante da realidade jurígena das famílias reconstituídas (reconstituted family), famílias recompostas (blended family), quando os recasamentos os colocam em cena diante da nova família, protagonistas que nela se prestam a um desempenho efetivo.

Nada obsta, antes aconselha, a possibilidade de um compartilhamento do poder familiar, sempre em proteção da criança, porquanto a repartição da autoridade parental significa, com destaque, o reconhecimento mais eficiente e eloquente de uma multiparentalidade ao tempo que se conceda ao padrasto/madrasta as mesmas responsabilidades parentais que são atribuídas aos pais. Um exercício concorrente onde cada um, com poderes próprios ou repartidos, atuará em favor do filho e do enteado.

Primeiros ensaios nessa ordem ocorreram com a lei francesa de 4 de março de 2002, contemplando a intervenção de terceiros na vida das crianças, e com maior destaque, o ordenamento jurídico inglês, que disciplinou com exaustividade a questão, institucionalizando o papel do padrasto.

Por outro lado, cumpre lembrar ordenamentos jurídicos que também estabelecem mecanismos voluntários de assunção de responsabilidades a respeito do filho do outro, por exemplo os de França, Reino Unido e Holanda.

Anota-se, ademais, que o artigo 2.009, 1, “f”, do Código Civil português, ao referir sobre pessoas obrigadas a alimentos, colocam vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada, “o padrasto e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste”.

Aspectos relevantes outros ganham lugar no trato da repartição de responsabilidades parentais para incluir o terceiro, como o padrasto quase-parente, pai-substituto (de ocasião ou não), tudo a exigir latitudes maiores de previsão legislativa.

Em Direito Civil. Famílias (2011), Paulo Lobo refere ao artigo 1.687, “b”, do Código Civil Alemão (BGB – Bürgerliches Gesetzbuch), onde permitido ao padrasto e à madrasta, o “direito de codecisão com seu cônjuge nas questões da vida diária do filho, se aquele(a) detiver a guarda unilateral”, a depender do comum acordo com o outro genitor. Em doutrina de Wilfried Schluter situações que tais são como o exercício de um “pequeno direito de guarda”.

Estatuto jurídico
Silvia Tamayo Haya, em El estatuto jurídico de los padrastros. Nuevas perspectivas jurídicas (Editorial Reus, Madrid, 2009) trouxe expressiva contribuição ao tema, ao defender a elaboração de ordenamentos próprios. É o que se reclama por urgente, em nosso sistema jurídico.

Não há negar que o direito carece contextualizar, no plano jurídico, as famílias recompostas (stepfamilies), sempre mais numerosas, para assinalar, com as devidas adequações, a figura do padrastio, concedendo-lhe um estatuto jurídico próprio, sempre com especial atenção à pessoa da criança.

Certo é que o princípio constitucional da igualdade, como situado no Direito de Família, não mais apenas alcança a igualdade substancial entre os filhos (artigo 226, parágrafo 6º, da Constituição), a igualdade entre os cônjuges e companheiros (artigo 1.511 do Código Civil) e a igualdade na direção da sociedade conjugal, exercida em colaboração pelo marido e mulher (artigo 1.567 do Código Civil).

Uma nova igualdade caminha a alcançar o pa(ma)drastio em condição equipotente a do(a) genitor(a) biológico(a), quando enteados são considerados como filhos de fato dos novos companheiros dos seus pais, formando-se paternidades ou maternidades duplas.

Certo também, nas famílias recompostas, imperativo pelo casamento, que ambos os consortes, assumam mutuamente as responsabilidades pelos encargos da família (artigo 1.565 do Código Civil), não custa lembrar, no berço das origens, os artigos 197, I, e 217, parágrafo 3º, da Lei 8.112/1990 (regime jurídico dos servidores civis da União), que incluem os enteados nos direitos ao salário família e à pensão previdenciária e, muito adiante, a Lei 11.924/2007 (Lei Clodovil), assegurando-lhes o direito de requerer em registro civil o patronímico do padrasto ou da madrasta. Esta opção, todavia, não implica, efeitos jurídicos expansivos à instituição automática da paternidade socioafetiva.

É o exercício de um começo para a consolidação das relações de afeto, derivada da relação de convivência familiar, a tanto poder tornar possível a consideração mútua formadora de uma nova espécie de filiação, que se extrai do artigo 1.615 do Código Civil.

Temos no tema a prospecção do presente e do futuro. Mais esse futuro se apresenta presente, na recente decisão da 4ª Turma do STJ, que no REsp. 1.487.596, (relator ministro Antônio Carlos Ferreira, julgamento em 28/9/2021) assinalou:

“(…) A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição). Isso porque conferir "status" diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos”. 3. No caso dos autos, a instância de origem, apesar de reconhecer a multiparentalidade, em razão da ligação afetiva entre enteada e padrasto, determinou que, na certidão de nascimento, constasse o termo "pai socioafetivo", e afastou a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios. (…)”.

No novo paradigma da família plural, impende reconhecer, a um só tempo, a importância das funções parentais do padrastio e, sobretudo, a segurança aos valores da individualidade da criança e do adolescente, como valores prioritários.

É sobre esse segundo viés que impõe sublinhar, acerca da autonomia privada do filho menor enquanto submetido à convivência do padrastio, independente de maior interferência ou não do poder familiar do seu genitor, vezes mitigado às visitações ou somente à companhia do filho em finais de semana alternados, como se o pleno exercício da autoridade parental fosse satisfeito apenas pelo direito de visitação.

Dessas diversas situações fáticas assinala-se um rol de acontecimentos de repercussão já conhecidos que indicam o quanto a autonomia da vontade do filho do outro deve ser considerada e levada a sério nas inquietudes e problemas existenciais de relacionamento.

É paradigmático o caso do pré-adolescente Bernardo Uglione Boldrini, de Três Passos (RS), cuja morte repercutiu nacionalmente. Ele chegou a procurar o Ministério Público por conta própria pedindo para não morar mais com o pai e a madrasta. E “indicou duas famílias com as quais gostaria de ficar” relatando “detalhes de sua rotina, marcada pela indiferença e pelo desamor na casa em que vivia.”

No núcleo da problematização convivencial aqui exemplificada tem-se como questão de fundo, a necessidade de se ter um pai ou mãe mais presente, aptos a dar aos filhos nas famílias recompostas, mais afeto e mais seguridade perante um padrastio que esteja exercido com relações abusivas ou tóxicas.

São precisos novos olhares de vigília, mormente quando na guarda unitateral o filho resista, com frequência, ao retorno à residência básica, em sinais de evidentes desconformidades no ambiente familiar, tudo a reclamar ajustamentos de conduta.

Em contraponto, a jurisprudência reconhece a legitimidade ativa do padrasto para o pleito de destituição do poder familiar em procedimento contraditório, diante do seu legitimo interesse de adotar o filho do outro cônjuge ou companheiro em modalidade da adoção unilateral prevista no parágrafo único do artigo 1.626 do CC (STJ – 3ª Turma, REsp. nº 1.106.637-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 01.06.2010).

O contexto indica crianças reprimidas em seu verdadeiro “eu” por obediência automática ao “eu” do pretenso novo pai, quando insuficientes as relações adequadas, em manifesto prejuízo ao seu desenvolvimento emocional ou à própria integridade física por agressões intercorrentes.

Quando esses mecanismos falham, também em relação aos próprios pais, colocados em segunda união, ocorre um déficit de vida que se traduz na espécie de identidade falsa (false-self), em oposição ao “eu verdadeiro”, assumida defensivamente, então, pelo filho e enteado, como observou, no século passado, o psicanalista britânico Donald Winnicott: expressava ele a importância de “uma mãe suficientemente boa” e presente, para a segurança e o aperfeiçoamento emocional e afetivo. De igual modo ao padrasto em contributo a essa formação de uma família saudável.

Tem-se, em boa medida, a percepção de um “abandono emocional”, referido pela psicóloga polaca Alice Miller (The Gifted Child), a que se submete a criança, desprovida de providencias protetivas e de “um lugar seguro de pertença”, diante dos novos arranjos familiares, quando o padrastio seja exercido sem o compromisso real de validação dos novos laços familiares de uma família recombinada.

Vale conferir a lição doutrinária de Clóvis Beviláqua, quando comentando o art. 384 do Código Civil de 1916, correspondente ao atual poder familiar do art. 1.634 do CC/2002, anotou:

"(…) Se o pai não se desempenha dessa missão sagrada, não somente infringe preceito da moral, como, ainda, ofende direitos do filho. Por isso, embora não deva intervir, senão em casos graves e manifestos, porque é da maior conveniência cultivar-se o afeto da família, o direito se mantém vigilante pela sorte dos filhos. (…).".

É com base no paradigma de proteção dos filhos, havidos por qualquer origem, com mesmos direitos e qualificações, que situados nas famílias neoconfiguradas como enteados, destinatários de perfeita igualdade de tratamento, devam receber a vigília constante do direito.

De lege ferenda
Destarte, sustento pela conveniente e periódica averiguação biopsicossocial do relacionamento entre enteados e padrastos, como sujeitos de uma relação que se espera harmônica e construtiva, em prevenção de a convivência familiar apresentar risco à segurança física ou emocional da criança.

Cuido da previsão, de lege ferenda, de uma curadoria dos vínculos neofamiliares, em tutela jurídica da multiparentalidade, com intervenção necessária à proteção dos enteados de menor idade. Desde quando o STF reconheceu a possibilidade jurídica da multiparentalidade ou do duplo vínculo de filiação (RE 898.060, repercussão geral, julgamento em 21/9/2016), que o padrastio assume, nessa linha diretiva, espectro de maiores responsabilidades.

Assim, dentro da nova estrutura familiar, se de um lado, o padrasto ou a madrasta, aportam como novos pais psicológicos, senão socioafetivos em construção, cabe a estes prover os enteados das chances de uma adequação convivencial, oferecendo-lhes segurança e proteção. Em outras palavras, o cuidado como valor jurídico, é o protótipo de uma relação, cujo atributo importa na responsabilidade dos seus papeis familiares.

No ponto, ponderável uma delegação do poder familiar ou de sua codireção, vindo-se alterar o art. 1.636 do Código Civil.

Conclusões
O padrastio há de ser inclusivo para uma coexistência parental afirmativa em favor e proteção associada da nova família.

A tanto, "as leis não bastam, os lírios não nascem das leis".

Autores

  • Brave

    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), integrante da Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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