Público & Pragmático

A aplicação da prescrição aos processos em trâmite no TCU

Autores

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • Gustavo Schiefler

    é doutor em Direito do Estado (USP) advogado (Schiefler Advocacia) e professor (Zênite e IDP) em matéria de licitações públicas e contratos administrativos.

31 de outubro de 2021, 8h03

Inobstante sejam essenciais e nobres as finalidades constitucionais do Tribunal de Contas da União (TCU), é crucial que sua atuação seja desempenhada de acordo com parâmetros temporais razoáveis.

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É consenso que, como regra geral, incide a prescrição à pretensão estatal, seja punitiva ou ressarcitória, sobre atos ilícitos que importem dano ao erário. Aliás, a Constituição determina que os prazos prescricionais relacionados com práticas ilícitas que causem prejuízos ao erário devem ser estabelecidos por lei (artigo 37, §5º).

Esta compreensão é confirmada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente a partir dos Temas de Repercussão Geral nº 666 ("É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil") e nº 899 ("A pretensão de ressarcimento ao erário baseada em decisão do TCU é prescritível"), afora o Tema nº 897, que reconhece exceção à regra ("São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa").

Ocorre que nenhum dos temas de repercussão geral, já decididos, tratou da questão ora enfrentada: como aplicar a prescrição aos processos em trâmite no TCU?

O Tema nº 899, do STF, embora ensaie enfrentar a questão, especialmente no voto-vogal do ministro Gilmar Mendes, não a abrange diretamente, uma vez que se dedica à prescrição da pretensão de ressarcimento que seja lastreada em decisão proferida pelo TCU (fase executória do débito).

Diferentemente do que projetado pela Constituição, ainda não há lei que verse sobre a prescrição aplicável durante a tramitação de processos nos tribunais de contas.

Dada essa lacuna normativa, formou-se jurisprudencialmente o entendimento de que a Lei nº 9.873/1999 seria o diploma normativo a ser aplicado de modo supletivo. Esta lei trata do prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta, e, portanto, possui conteúdo materialmente harmônico com o que se pratica no TCU.

Tal diploma fixou o prazo quinquenal para o exercício da pretensão punitiva (artigo 1º, caput) e o prazo trienal para a incidência da prescrição intercorrente (artigo 1º, §1º).

Não obstante, o maior desafio em se aplicar a Lei nº 9.873/1999 aos processos em trâmite no TCU advém da necessidade de se interpretar casuisticamente os eventos interruptivos da prescrição.

O artigo 2º da lei estabelece esses eventos, que incidem sem limitação de recorrência, ou seja, sem limite de interrupções, as quais restauram integralmente o prazo prescricional. E dentre esses eventos, encontra-se a interrupção por "qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato" (inciso II).

A melhor interpretação para este dispositivo, em específico, é controversa. O que exatamente significa "qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato"? Seria, por exemplo, a abertura de uma Tomada de Contas Especial (TCE) um ato inequívoco, que importa apuração de fatos? Sim, mas inequívoco sobre quais fatos exatamente? Abrangeria fatos que somente viriam a ser identificados em desdobramentos investigativos posteriores deste mesmo processo?

Entende-se que não.

Tome-se como exemplo o comum caso das prestações de contas em convênios, em que existe o repasse de recursos de um ente público para outro, os quais, por sua vez, serão utilizados para custear diversas atividades de interesse dos convenentes, como a celebração de contratos administrativos pelo ente público que recebeu os recursos.

Neste caso, ao se inaugurar uma TCE para se apurar eventual incongruência na prestação de contas e a regularidade do uso de verbas de um convênio, elencam-se especificamente determinados atos ou despesas suspeitos. Neste caso, não há como se considerar, para efeito de interrupção da prescrição, que também estão, desde a origem, sob apuração, outras despesas realizadas neste mesmo convênio, que não foram identificadas como suspeitas neste ato inaugural, ainda que venham a ser apuradas posteriormente no mesmo processo.

Assim, quanto a essas despesas inicialmente ignoradas, supervenientemente suspeitas, não há como se reconhecer o ato inaugural do processo como marco interruptivo da prescrição — ainda que possam ser investigadas no mesmo processo, por guardarem em comum a origem dos recursos.

Note-se que a legislação exige, para a interrupção da prescrição, um ato inequívoco de apuração do fato, o que significa que ele deve ser um ato o qual incontroversamente apura um fato determinado e potencialmente ilícito.

Não fosse assim, a consequência, para fins ilustrativos, seria a de que, por exemplo, a 1ª Instrução de uma TCE para apuração de irregularidades no Programa de Governo X, e também cada nova Instrução, interromperia a prescrição em face dos responsáveis por todos os fatos ineditamente investigados nas (dezenas de) instruções seguintes. Se este Programa de Governo X contivesse cinco mil contratos, a prescrição sobre cada um deles seria interrompida a cada nova instrução do TCU, mesmo que sobre contratos que nunca tenham sido citados como suspeitos de prática ilícita. Mantendo-se uma cadência inferior a 5 anos para cada nova Instrução, caso algum novo fato suspeito seja identificado daqui a 50 anos, a pretensão punitiva e a pretensão ressarcitória sobre ele não estariam prescritas. Consequentemente, o potencial responsável por esse fato específico, que até então nunca havia sido apurado, terá de ter tido a improvável boa ventura de ter guardado, por décadas, os documentos que comprovem sua eventual inocência.

Se não houvesse a exigência legal de que a apuração deve ser inequívoca e, em interpretação sistêmica, sobre fato específico, haveria grande incentivo à abertura de processos administrativos com objetos os mais genéricos e amplos possíveis, capazes de interromper a prescrição sobre fatos desconhecidos, a serem possivelmente descobertos em desdobramentos de investigações exploratórias.

Percebe-se, do exemplo apresentado, que a linha de raciocínio ampliativa dos efeitos da interrupção prescricional gera resultados indesejados, sendo imprópria e incompatível não somente com a própria Lei nº 9.873/1999, mas também com a própria essência do instituto da prescrição, cuja finalidade última é evitar a possibilidade de existência de uma pretensão perpétua e subjugante, contrária às garantias do contraditório e da ampla defesa.

Evidentemente, um processo em trâmite no TCU pode ter desdobramentos que tragam à tona fatos que, originalmente, não estavam sob apuração. Contudo, nesse caso, a sua apuração inequívoca somente ocorre quando este fato é regularmente identificado no processo.

O tema dos eventos interruptivos da prescrição na Lei nº 9.873/1999 já foi tratado em doutrina e jurisprudência, valendo, portanto, o resgate delas.

Quanto ao aclaramento da definição de ato inequívoco, Marga Tessler defende que "Ato inequívoco é ato que não deixa dúvida". A autora explica que o ato inequívoco, que importa em apuração do fato, "é qualquer ato de ofício (princípio da oficialidade) que seja comunicado ao interessado ou indiciado (princípio da publicidade) […] que solicita informação, explicação, providências, documentos, […] pois é inequívoco que a autoridade está apurando os fatos".

A autora também explica o que não compõe tal definição:

"Note-se que fica afastado o mero monitoramento de atividades que não é comunicado ao interessado, ficam afastadas diligências internas do serviço público, oitiva de denunciantes ou informantes ao órgão, denúncias anônimas, etc.
Afastam-se tais atos para os efeitos interruptivos da prescrição, pois não prestigiam o princípio do devido processo legal e do contraditório, já que o possivelmente atingido pelo ato investigativo ainda não tomou conhecimento do mesmo.
Não se quer dizer que não pode ser feita investigação reservada, só que não tem o condão de interromper a prescrição
[1]."

É razoável e conforme a constituição a compreensão de que o conceito de "ato inequívoco, que importe em apuração do fato" tem relação intrínseca com o devido processo legal, com o contraditório e com o princípio da publicidade desta apuração.

Inequívoco para quem, afinal?

Ora, quem não deve ter dúvida de que o fato está sendo apurado? Em interpretação conforme a constituição, as pessoas potencialmente responsáveis pelo fato, pois é a estas que beneficia e interessa o instituto da prescrição. São essas pessoas que, uma vez cientes de que o fato está sob apuração, poderão então adotar as cautelas necessárias para a preservação de informações e documentos essenciais ao exercício do contraditório e da ampla defesa.

Enquanto os potenciais responsáveis não forem sequer identificados e não houver publicidade de que determinados fatos estão sob apuração, o prazo prescricional deve seguir em curso, pois a apuração ainda não é inequívoca, sobretudo para aqueles que precisam conhecê-la para poderem se acautelar e exercer, mesmo que futuramente, o contraditório e a ampla defesa.

A despeito de entender-se como correta, esta interpretação não é pacífica na jurisprudência, a exemplo do julgamento do Ag.Reg. MS 35208 [2], pelo STF, segundo o qual a abertura prévia de investigação, mesmo sem a intimação do interessado, constitui ato inequívoco que importa apuração do fato.

Por outro lado, em entendimento distinto e coerente com o que se defende neste artigo, no MS 37412 [3], o STF decidiu, por exemplo, que "entre a data dos fatos imputados ao impetrante e seu chamamento inicial ao processo, decorreram mais de dez anos, sem que investigações específicas tivessem se referido a ele e, consequentemente, sem participação ou produção de defesa na tomada de contas". Diante disso, não poderia haver interrupção da prescrição "por ausência de participação, convocação ou diligência a importar o impetrante naquela tomada de contas, instaurada em 2012".

Aliás, mesmo que se adote uma intepretação ampliativa dos efeitos interruptivos da prescrição com base no artigo 2º, II, da Lei nº 9.873/1999, é de se formar consenso, no mínimo, que o fato sob apuração deve ser específico e inequívoco para o próprio investigador no bojo do processo administrativo, sob pena de se desnaturar por completo o instituto da prescrição, dada a permanente possibilidade de desdobramentos investigativos que atraiam novos fatos ao processo.

Vale o registro de que a Advocacia Geral da União (AGU), no Parecer AGU 991-2009/PGF/PFE-Anatel [4], entendeu haver distinção entre os prazos prescricionais de infrações independentes, ainda que em trâmite no mesmo processo, e que, assim, a apuração de um fato não interrompe a prescrição de outro. A conclusão foi a de que, se "a administração incluir fatos novos que prevejam punições autônomas, não sendo o caso de continuidade e permanência da infração, os prazos prescricionais (quinquenal e intercorrente) serão independentes para cada fato".

Outro exemplo elucidativo sobre o tema pode ser encontrado na atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A temática aqui tratada foi abordada no julgamento do PAS nº 06/2016, com apoio na doutrina de Pontes de Miranda:

A Lei nº 9.873/1999 qualifica o ato de apuração que é apto a interromper a prescrição: ele deve, necessariamente, ser inequívoco. Não se pode, portanto, admitir que a instauração de um processo com escopo absolutamente genérico seja apta a interromper o curso do prazo prescricional de fatos específicos, que não se relacionam diretamente ao objeto inicial da apuração. Qualquer outra interpretação dá espaço para o arbítrio da Administração Pública, estimulando-a, ao menos nas fases iniciais de apuração, a delimitar o objeto da sua análise em termos cada vez mais vagos com o objetivo de preservar, ao máximo, sua pretensão punitiva e subvertendo a regra da prescritibilidade e o princípio da separação das pretensões.

"Princípio da separação das pretensões — A interrupção limita-se à pretensão que está em causa, e não se estende a qualquer outra que se irradie da mesma relação jurídica que é res reducta; nem se opera a respeito de outra pessoa que aquela que pratica o ato interruptivo [5]."

Aplicando-se este raciocínio aos processos em trâmite do TCU, conclui-se que, nos termos do inciso II do artigo 2º da Lei nº 9.873/1999, a prática de atos originalmente voltados para apuração de um determinado conjunto de fatos não pode ser utilizada como marco interruptivo de condutas diversas, surgidas com a ampliação do escopo da investigação.

O raciocínio é aplicável igualmente à prescrição intercorrente no âmbito do TCU.

Assim, se, exemplificativamente, o TCU instaurou TCE, mas, durante três anos (artigo 1º, § 1º, da Lei n.º 9.873/1999), não apurou, inequivocamente, os atos ilícitos específica e originariamente imputados ao potencial responsável, deve-se, então, concluir que houve paralisação excessiva do processo, o que reclama o reconhecimento da operação da prescrição intercorrente.

Aqui também deve prevalecer a noção de "não ser qualquer despacho que obsta a decretação da prescrição intercorrente no processo administrativo, mas somente aqueles que inequivocamente importem na apuração do fato ou aquele que resolva o mérito do processo [6]". Em interpretação até mais restritiva, cita-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no âmbito do Tema Repetitivo nº 328: "É de três anos o prazo para a conclusão do processo administrativo instaurado para se apurar a infração administrativa ('prescrição intercorrente') [7]".

Enfim, uma vez pacificado o entendimento de que, como regra geral, incide a prescrição da pretensão punitiva e ressarcitória do Estado, a maturação do tema depende agora da estabilização sobre a forma de aplicação deste instituto, com especial atenção aos eventos interruptivos e à necessidade de se impor, conforme as sugestões apresentadas, uma interpretação conforme a constituição para a Lei nº 9.873/1999.


[1] TESSLER, Marga Barth. O Exercício do poder de polícia e o prazo prescritivo para a aplicação da sanção administrativa depois da lei nº 9.873/99. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 01, out. 2008. Disponível em https://revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao002/marga_tessler.htm. Acesso em 28 out. 2021.

[2] STF, MS 35208 DF Relator: DIAS TOFFOLI, Julgamento: 15/12/2020

[3] STF, MS 37412 DF Relator: CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 22/04/2021.

[5] CVM, PAS nº 06/2016, Julg. em 3 nov. 2020. Ref. a PONTES DE MIRANDA, Francisco C. Tratado de Direito Privado, t. 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 401-402.

[6] GAMA, Carlos Alberto. A prescrição intercorrente no processo administrativo federal – Lei nº 9.873/99. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 199, p. 99-102, set. 2017

[7] STJ. REsp 1115078/RS, Relator: Ministro Castro Meira, Julgado em: 10/03/2010

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    é professor de Direito Administrativo na USP e no IDP (Brasília), advogado, consultor, árbitro especializado em Direito Público e fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.

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    é advogado no escritório Schiefler Advocacia, doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Direito Administrativo na pós-graduação do IDP (online).

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