Observatório Constitucional

Importância da fase de implementação das decisões na jurisdição constitucional

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30 de outubro de 2021, 8h00

Introdução

Os estudos de jurisdição constitucional possuem um grande foco na análise do conteúdo dos direitos fundamentais ou da legitimidade do órgão judicial para a prolação de determinada decisão, sendo mais escassos os trabalhos que tratam dos mecanismos de implementação das decisões na fase pós-decisória ou pós-deliberativa dos Tribunais.

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Esse fato ocorre, em grande parte, pelo caráter normocêntrico e juriscêntrico dos trabalhos e do ensino jurídico, no qual a Constituição sempre ocupa o lugar de destaque e o juiz é visto como principal agente de aplicação da lei, capaz de executar, por conta própria e sem maiores problemas, suas decisões.

Contudo, a experiência tem demonstrado como é problemática a fase de implementação das decisões, conforme inclusive destacamos em outro artigo publicado nesta coluna.

Essas dificuldades se tornam ainda mais evidentes nos casos em que os tribunais são chamados a intervir em políticas públicas de larga escala, como nos casos comumente noticiados de ações ou decisões envolvendo o direito à saúde, à educação ou ao meio ambiente, além de temas que se relacionam com a tributação do patrimônio dos cidadãos e com as mazelas do sistema prisional.

No presente artigo, buscamos demonstrar como essa questão é enfrentada no direito comparado, a partir das experiências da Alemanha, dos Estados Unidos e da Colômbia, e quais os impactos dessa discussão no Brasil, já que o desenvolvimento de mecanismos institucionais de implementação das decisões na jurisdição constitucional é um ponto em comum que reúne dúvidas e soluções de inúmeros países herdeiros da tradição do controle de constitucionalidade.

Além disso, entendemos que esse tema constitui uma importante agenda de pesquisa e experimento, tanto no âmbito acadêmico, em virtude de suas implicações teórico-normativas, mas também sob o viés prático daqueles que trabalham, no dia a dia, com ações que apresentam desafios em relação à sua fase de implementação.

Análise da fase de implementação das decisões no Direito Comparado

Na Alemanha, a Lei Fundamental prevê, no artigo 94, II, que a lei regulará a organização e o processo do Tribunal Constitucional Federal, determinando os casos em que as suas decisões terão força de lei (Gesetzeskraft) e efeito vinculante (Bindungswirkung), que são regulados no §31 da Lei do Bundesverfassungsgericht.

Ao comentar sobre essas normas, Reinhard Gaier destaca que "a força de lei provê uma forma mais eficaz de se cumprirem as decisões do Tribunal Constitucional, pois dela surge diretamente o direito vigente"[1].

A eficácia expansiva das decisões é reforçada pela diversificação das técnicas decisórias e pela autoridade construída pelo Tribunal Constitucional. Nessa linha, ao invés de proferir uma simples decisão de inconstitucionalidade, que abre espaço para a promulgação de nova lei, poderá o Tribunal se utilizar da decisão de interpretação conforme à Constituição, de modo a manter o programa legislativo, porém com influência direta e vinculativa da opção exercida pela Corte [2].

Há ainda a competência atribuída ao Tribunal de determinar o modo como suas decisões serão executadas. É o que dispõe o parágrafo 35 da Lei Orgânica da Corte, que estabelece que "O Bundesverfassungsgericht pode estabelecer, em suas decisões, quem deve executá-las; também pode, no caso específico, definir o modo como será a execução" (Das Bundesverfassungsgericht kann in seiner Entscheidungbestimmen, wer sie vollstreckt; es kann auch im Einzelfall die Art und Weiseder Vollstreckung regeln).

Ou seja, a Corte é dotada de liberdade para definir o meio mais apropriado de execução de suas decisões, o que leva a doutrina a afirmar que essa regra de competência transforma o Tribunal Constitucional Federal em verdadeiro "Senhor da Execução" (Herrder Vollstreckung), já que ele poderá, de ofício, executar diretamente seus acórdãos, gerindo as consequências da decisão ou então delegando a tarefa a outro órgão [3].

Em sede de execução direta, uma das mais importantes construções se refere à competência do tribunal para estabelecer regras de transição, amoldando o acórdão à realidade existente.

Destarte, ao declarar inconstitucional o parágrafo 210 do Código Penal alemão, que regulamentava a prática do aborto, o tribunal entendeu que não poderia deixar uma lacuna até que o legislador regulamentasse novamente a questão [4]. Por isso, fez um arranjo, com base no §35, para que a antiga legislação fosse considerada válida até a promulgação da lei nova (bis zumInkrafttreten einer gesetzlichen Neuregelung).

Em outra decisão sobre proibição de partidos políticos, o tribunal considerou que haveria uma lacuna em relação ao que aconteceria com os mandatos de seus parlamentares. Determinou, então, que estes deveriam permanecer inalterados, até que o legislador estipulasse as condições para o caso. Deixou claro, contudo, que a sentença deveria ser cumprida de imediato e sem maiores duvidas quanto a sua validade [5].

Nos Estados Unidos, o debate sobre a implementação das decisões judiciais surgiu no âmbito das ações estruturais (structural injunctions), principalmente a partir do famoso caso Brown vs. Board of Education of Topeka, de 1954, que tratou da eliminação da segregação racial no sistema de ensino no sul dos Estados Unidos [6]

Para cumprir essa complexa decisão que buscava reformular todo o sistema de educação pública, a Suprema Corte norte-americana constatou que as medidas usuais de implementação, como a contempt of power e a execução forçada de ordens preestabelecidas, não eram suficientes. Optou, portanto, pela utilização de novos instrumentos como a elaboração de planos judiciais e o estabelecimento de um cronograma ou calendário de execução [7].

No ano seguinte à primeira decisão, em 1955, a Corte prolatou a decisão conhecida como Brown II, na qual emitiu a primeira ordem executiva para que fosse eliminada a segregação nos distritos escolares o mais rápido possível, a partir da atribuição conferida às autoridades escolares, sob supervisão do Poder Judiciário Federal, ao qual foram delegados os poderes para a supervisão dessas medidas [8].

A Colômbia também possui uma rica experiência sobre o assunto, com autores que defendem a realização de uma virada conceitual, para que se analise, de forma mais detida, não apenas a fase de formação das decisões, mas também, e com especial atenção, a fase de implementação desses julgados [9].

O mais importante experimento colombiano com a questão de implementação das decisões judiciais ocorreu nos casos em que a Corte Constitucional declarou a existência do estado de coisas inconstitucional das políticas públicas existentes naquele país, em especial no âmbito do sistema penitenciário e da política de atendimento ao deslocamento forçado de pessoas [10].

De acordo com o tribunal, o estado de coisas inconstitucional se configura "quando se constata a violação repetida e constante de direitos fundamentais que afetam um número significativo de pessoas e cuja solução requer a intervenção de distintas entidades para atender problemas de ordem estrutural".

Com base nessa situação de inconstitucionalidade sistêmica e em uma leitura proativa do artigo 13 da Constituição da Colômbia, que impõe ao Estado a obrigação de promover "as condições para que a igualdade seja real e efetiva", com a adoção de "medidas em favor dos discriminados ou marginalizados", o tribunal adotou uma postura de maior atuação nesse processo para superação da situação de inconstitucionalidade.

Para atingir esse objetivo, a corte se utilizou de um amplo arsenal de técnicas e instrumentos de implementação, como a realização de audiências públicas e de monitoramento, a celebração de acordos e a definição de planos de implementação. Desenvolveu, ainda, indicadores capazes de avaliar a melhoria da política pública e nomeou peritos, mediadores ou auxiliares para atuarem nesses processos [11].

Ao final, foram observados incrementos nas políticas públicas estatais, embora os desafios ainda sejam muitos.

As perspectivas para o caso brasileiro

No Brasil, a realização de estudos e o desenvolvimento de instrumentos capazes de aperfeiçoar a fase de implementação das decisões proferidas no âmbito da jurisdição constitucional ainda é muito incipiente.

O tema ganhou maior fôlego a partir do deferimento, pelo STF, da medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, na qual se declarou o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro.

A decisão foi muito criticada sob a alegação que poderia justificar um super ativismo da Corte no âmbito das políticas públicas. Apesar disso e dos impactos positivos produzidos com a implementação das audiências de custódia e o descontingenciamento de recursos do Funpen, pouco se avançou na melhoria do sistema prisional, o que decorre, em grande medida, da ausência de fiscalização e engajamento da Corte nas etapas de implementação da medida cautelar.

O caso da ADPF 347 contrasta com outro exemplo julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em ação envolvendo o direito à educação e a ausência de vagas para crianças em creches municipais, direito social assegurado pelo artigo 7º, XXV, da Constituição Federal, o tribunal paulista realizou audiência pública na qual participaram representantes de diversas organizações da sociedade civil dedicadas ao tema [12].

No julgamento de mérito, o tribunal condenou o município a criar, no mínimo, 150.000 vagas até 2016, com a inclusão de recursos públicos suficientes em seu orçamento. Condenou ainda o ente local a elaborar um plano de ampliação de vagas e construção de novas unidades em sessenta dias, com a apresentação de relatórios semestrais monitorados pelo Tribunal, pela sociedade civil, Defensoria Pública e Ministério Público [13].

No âmbito do STF, é possível citar o julgamento do habeas corpus 143.988, no qual a Segunda Turma determinou não apenas a definição de critérios e parâmetros para obstar a superlotação em unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei, mas também propôs a criação de um observatório judicial, na forma de comissão temporária, para acompanhar os efeitos da deliberação do Tribunal em relação aos dados estatísticos [14].

Mais recentemente, ao conceder habeas corpus coletivo para determinar a aplicação da regra do CPP que impõe a substituição da prisão preventiva por domiciliar dos pais e responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência (artigo 318, III e VI, do CPP), a Segunda Turma determinou a realização de audiência pública na fase de implementação do acórdão, com base no artigo 21, XVII, do RISTF e artigo 139, VIII, do CPC, para fins de identificação dos entraves ao cumprimento da ordem [15].

As informações obtidas na audiência foram utilizadas para reposicionar o tribunal em relação às próximas etapas de cumprimento, o que afasta inclusive uma das críticas a esse instituto, que é vislumbrado por muitos como mero expediente de abertura formal ou legitimação simbólica das decisões do STF.

Também foi determinada a realização de novas audiências de monitoramento direto da ordem coletiva em relação a determinados tribunais pré-selecionados, o que revela uma real preocupação da corte com a implementação estratégica e gradual de decisões em casos complexos e estruturais.

Portanto, a construção e o aperfeiçoamento dos instrumentos de implementação das decisões no âmbito da jurisdição constitucional constitui importante agenda de debate e pesquisa. Já não basta mais apenas produzir decisões de valor simbólico, sob pena de transformarmos nossos acórdãos em promessas constitucionais não cumpridas, meras folhas de papel, impotentes diante da realidade crua dos fatos.


[1] GAIER, Reinhard. A Execução das Decisões na Jurisdição Constitucional. Revista DPU nº 51. mai-jun. 2013. p. 13.

[2] LANDFRIED, Christine. in: TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjörn (ed). The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995. p. 440.

[3] BENDA, Ernst; KLEIN, Eckart. Verfassungsprozeβrecht. Heidelberg: C.F. Müller, 2001, p. 520, 555-556.

[4] BVerfGE 96, 409 [413]

[5] BVerfGE 2, 1 [77]

[6] KLARMAN, Michael. Court, Congress and Civil Rights. In: DEVINS, Neil; WHITTINGTON, Keith E. (Ed.). Congress and the Constitution. Duke University Press, 2005; FISS, Owen. The Fate of an Ideia Whose Time Has Come: Antidiscrimination Law in The Second Decade After Brown vs. Board of Education. University of Chicago Law Review, nº 742, p. 176-178, 1973-1974.

[7] DANTAS, Eduardo Sousa. Ações Estruturais e o Estado de Coisas Inconstitucional: a tutela de direitos fundamentais em casos de graves violações pelo poder pública. Curitiba: Juruá, 2019. p. 36.

[8] WEAVER, Russel. The rise and decline of structural remedies. San Diego Law Review,

v. 41, p. 1620, 2004. Nota de rodapé 16.

[9] ARIZA, Libardo José. The Economic and Social Rights of Prisoners and Constitutional Court Intervention in the Penitentiary System in Colombia. In: MALDONADO, Daniel Bonilla. Constitutionalism of the Global South: The Activist Tribunals of India, South Africa and Colombia. New York: Cambridge University Press, 2013. p. 133. Nota de rodapé 10.

[10] Sentença T-153-98 e Sentença T-025/2004

[11] DANTAS, Eduardo Sousa. Ações Estruturais e o Estado de Coisas Inconstitucional: a tutela de direitos fundamentais em casos de graves violações pelo poder pública. Curitiba: Juruá, 2019. p. 57.

[12] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação 0150735-64.2008.8.26.0002. Apelante: Ação Educativa Assessoria Pesquisa e Informação e outros. Apelado: Municipalidade de São Paulo. Câmara Especial. Relator: Desembargador Samuel Júnior. Julgado em 29 de julho de 2013.

[13] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação 0150735-64.2008.8.26.0002. Apelante: Ação Educativa Assessoria Pesquisa e Informação e outros. Apelado: Municipalidade de São Paulo. Câmara Especial. Relator: Desembargador Samuel Júnior. Julgado em 29 de julho de 2013.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 143.988. Relator ministro Edson Fachin. Segunda Turma. j. 28.8.2020.

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 165.704. Relator ministro Gilmar Mendes. Segunda Turma. j. 13.4.2021.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

  • é juiz auxiliar no STF, mestre em Direito pela UERJ e doutorando em Direito pela USP.

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