Opinião

Ação popular: quando o interesse privado é dissimulado em direitos coletivos

Autor

  • Pedro Mazalotti Teixeira

    é advogado graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e mestrando em Direito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

29 de outubro de 2021, 19h12

O cenário atual demonstra haver maior interesse e participação popular na política e nas decisões tomadas pelo Estado — como exemplo, as várias manifestações ocorridas nos últimos anos[1]Para além dessas manifestações, a participação da cidadania na fiscalização do bem comum se dá também pela via judicial, por meio do ajuizamento, cada vez mais frequente, de ações populares.

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Trata-se de instrumento processual previsto na Lei 4.717/1965, que pode ser proposto pelo cidadão — qualquer pessoa detentora de direitos políticos — com o objetivo de anular ato lesivo ao patrimônio público ou aos bens públicos, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, e obter o respectivo ressarcimento. No entanto, assim como é possível identificar casos de líderes de manifestações, supostamente organizadas na defesa de interesses públicos e gerais, que estavam, em verdade, as utilizando na perseguição de seus próprios interesses estritamente privados, autores populares também podem se utilizar indevidamente de ações populares.

De início, é preciso reforçar que a ação popular não deve e não pode ser utilizada como instrumento de proteção de interesses particulares, desvirtuando-a de seu espírito, como bem destacado neste trecho de obra do falecido Ministro do Supremo, Teori Zavascki: "o que caracteriza a ação popular, desde as suas mais remotas origens romanas, é o exercício da ação por qualquer membro da coletividade, com maior ou menor amplitude, para defesa de interesses coletivos"[2]. Essa proibição, inclusive, já foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ): "a ação popular não é servil à defesa de interesses particulares, tampouco de interesses patrimoniais individuais, ainda que homogêneos"[3].

Nesse sentido, quando identificado o uso dissimulado da ação popular para proteção de interesses privados, o Judiciário vem extinguindo os processos por inadequação da via processual escolhida, impedindo que prevaleça o abuso de direito processual. Porém, além de abuso de direito processual, a utilização de ações populares para defesa de interesses pessoais também poderá ser considerada como litigância de má-fé, nos termos do artigo 80, III, do Código de Processo Civil, podendo ensejar a condenação dos autores populares no décuplo das custas do processo.

A 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em ação popular[4] na qual se pretendia a invalidação de edital de licitação para contratação de empresa para prestação do serviço de transporte público municipal, entendeu que subjazia ao pedido interesse pessoal dos autores, os quais prestavam o mesmo serviço e, portanto, se beneficiariam do impedimento a uma nova contratação.

Da mesma forma, a 7ª Turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região reconheceu que os autores de ação popular[5] em que se pretendia a invalidação de concurso público para seleção de práticos portuários, por questões atinentes às notas proferidas em uma das provas, por terem participado do mesmo concurso e, portanto, perseguiam interesses próprios. O processo foi, em razão de tal fato, extinto sem exame de mérito.

Ainda no tema licitação pública e ainda no âmbito da justiça federal, não é raro o Tribunal Regional Federal da 1ª Região extinguir ações populares[6] que buscam a nulidade de procedimentos licitatórios quando constatado que tinham sido ajuizadas por autores que possuíam relações privadas com empresas que participaram dos certames e que haviam sido derrotadas, reconhecendo terem sido ajuizadas com base em interesses pessoais.

O desvirtuamento de ações populares também pode ocorrer quando movidas pelo interesse em eventuais honorários de sucumbência, em causas de valores elevados. Se, por um lado, os autores populares são isentos de custas processuais (nada pagando em caso de derrota, salvo hipótese de má-fé), por outro a Lei da Ação Popular expressamente prevê que a sentença incluirá no valor condenatório o pagamento de honorários advocatícios aos advogados dos autores populares, os quais, segundo o Código de Processo Civil, poderão ser fixados na proporção de até vinte por cento sobre o valor da condenação. Assim, os honorários advocatícios podem se revelar incentivo de ajuizamento de ações populares envolvendo atos ou contratos de grande vulto da Administração Pública, notadamente quando se trata de sociedades de economia mista e empresas públicas, como a Petrobras e o BNDES.

Porém, além de interesses financeiros, outra hipótese de utilização indevida de ações populares ocorre quando se perseguem interesses políticos individuais, normalmente para causar impacto negativo na imagem ou reputação de governantes ou parlamentares eleitos ou de ocupantes de cargos de confiança nos três Poderes. O termo "vingança política" foi alcunhado pela 1ª Câmara Cível, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao descrever a motivação de autor popular, ex-vereador de Uberaba (MG), e dar provimento ao recurso de apelação de ex-secretário de governo do mesmo município e réu na ação, pra reformar a sentença de primeira instância que o havia condenado[7].

O mesmo termo foi utilizado pela 9ª Câmara de Direito Público, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao confirmar sentença de extinção de ação popular, consignando o modus operandi do autor popular: "um projeto de vingança contra a Câmara de Vereadores de Ribeirão Preto, seus ex-colegas e a prefeitura municipal, que resultou, de acordo com o MM. Juízo a quo, em mais de uma centena de ações populares sem qualquer substrato fático"[8]

Em suma, no que pese a importância do aumento da participação cidadã na proteção do patrimônio público, exercido por meio de ações populares, é necessário identificar os casos em que os interesses dos autores são outros, de natureza privada, de finalidade diferente daquela para qual a ação popular foi concebida. É justamente isso que os tribunais têm feito e devem continuar fazendo: coibir a dissimulação da proteção de interesses particulares por meio de ações populares que apenas artificiosamente tutelariam o interesse coletivo.

Referências:
[1] Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2018/06/manifestacoes-de-junho-de-2013-completam- cinco-anos-o-que-mudou.html; https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-07/manifestacoes-contra-corrupcao-e-em-defesa-das-vacinas-e-da-educacao

[2] Teori Albino Zavascki. Processo Coletivo. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 77.  

[3] STJ. REsp 776.857, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 18/02/2009.  

[4] TJSP. Apl 0038297-05.2009.8.26.0053, 2ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Corrêa Vianna, julg. 01/02/2011.  

[5] TRF2. Apl 0100942-77.2014.4.02.5102, 7ª Turma, Rel. Des. Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, julg. 07/12/2016

[6] TRF1. Reexame Necessário 2009.34.00.020008-8, 5ª Turma, Rel. Des. Daniele Maranhão, julg. 04/07/2018.  

[7] TJMG. Apelação 1.0000.00.195828-9/000, 1ª Câmara Cível, Rel. Garcia Leão, julg. 06/02/2001.  

[8] TJSP. Reexame Necessário 0252451-09.2009.8.26.0000, 9ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Décio Notarangeli, julg. 11/09/2013.  

Autores

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    é advogado, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e em Business Law MBA pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

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