Licitações e contratos

Direito patrimonial disponível e a nova Lei de Improbidade Administrativa

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

29 de outubro de 2021, 8h00

Certamente, um dos grandes avanços trazidos pela Lei nº 14.133/2021 diz respeito aos meios alternativos de solução de controvérsias, tema que, inclusive, foi objeto do primeiro artigo [1] que inaugurou esta coluna Licitações e Contratos. Nesse sentido, o legislador avançou substancialmente ao estabelecer que os direitos patrimoniais disponíveis são objeto de transação, submetendo-se às profícuas medidas conciliatórias.

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Todavia, não há negar que paira, no que tange à conciliação como um todo, um enorme receio por parte dos agentes administrativos em transacionar, maiormente por desconfiança do grau de controle externo que possa ser exercido, em especial, pelos Tribunais de Contas e Ministério Público.

Ocorre que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos foi enfática ao elencar alguns direitos patrimoniais disponíveis, como, por exemplo, o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, bem assim o cálculo das indenizações, lembrando, todavia, que este rol não é exaustivo. Logo, outros direitos patrimoniais disponíveis, que não necessariamente os exemplificados pela lei, podem ser objeto de acordo.

Quando a norma preconiza que o direito patrimonial da Administração Pública é disponível, por razão lógica a Administração pode dele dispor, negociando com a outra parte, notadamente, para fins de contratação pública, com o contratado, até que se alcance um ajuste que seja conveniente para ambas as partes. A literalidade do texto normativo não abre oportunidade para qualquer outra interpretação em sentido contrário.

Ao passo que a lei franqueia aos agentes administrativos essa margem de liberdade para concertar, elimina a possibilidade de sindicância dessa convenção por qualquer outro agente estranho à estrutura da própria Administração Pública. Pensar em sentido contrário seria manifesta contrariedade, incrementando a indesejada insegurança jurídica que deve ser extirpada do contexto das relações tratadas no âmbito do poder público.

Tais afirmações não eliminam, contudo, a incidência do controle, exercido pelas mais diversas linhas de defesa, conforme preconiza o artigo 169 da nova lei, que prioriza, inquestionavelmente, o controle interno [2]. Logo, até mesmo para fins de controle de toda contratação pública, o controle externo incide derradeiramente, interpretação que também decorre da literalidade revelada no texto normativo.

Portanto, quanto aos acordos firmados referentes aos direitos patrimoniais disponíveis, a sindicância do ato somente ocorre através do controle interno, nas suas mais variadas linhas de defesa, na conformidade da ordem estabelecida nos incisos do artigo 169 antes mencionado.

Bem se veja, assim, que a conciliação quanto aos direitos patrimoniais disponíveis não é indene de controle. Todavia, o controle que incide é o interno, exercido por agentes pertencentes à estrutura da Administração Pública, o que galvaniza o desiderato normativo, priorizando o protagonismo dos agentes envolvidos na transação.

E são benéficos os efeitos dessa linha interpretativa aqui sustentada, prioritariamente porque se aparta o temor do administrador público em se submeter à saudável política conciliatória, entusiasmadamente fortificada na nova lei, que segue o compasso das disposições contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), amplamente servível a todo o processo de contratação pública, segundo testilha o artigo 5º da Lei nº 14.133/2021.

Portanto, ilustrativamente, ao transacionar quanto ao equilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos, a conciliação obtida, se confirmada pelo controle interno (nas suas mais variadas linhas), não pode ser objeto de inquirição pelo controle externo. Nesse caso, por exemplo, é inviável se falar em superfaturamento, sobremais no contexto previsto no artigo 337-L do Código Penal Brasileiro.

A linha argumentativa aqui amparada encontra, todavia, um limite, a partir do qual passa a ser possível o controle externo: a existência do elemento anímico doloso. E foi justamente esse o critério utilizado pelo legislador na contemporânea Lei nº 14.230/2021.

A recentíssima Lei nº 14.230/2021, que altera, substancialmente, a Lei nº 8.429/1992 — Lei de Improbidade Administrativa — exige o elemento doloso para concretização da improbidade, eliminando a culpa como elemento subjetivo que oportuniza a configuração do ato como ímprobo. Assim sendo, as práticas conciliatórias exercidas pelos agentes administrativos quanto aos direitos patrimoniais disponíveis só, e somente só, podem ser objeto de controle externo, para fins de improbidade, se perpetradas com dolo, cuja definição é delineada pela própria lei, que, no §2º do artigo 1º, assim o define como sendo "a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais".

Para além, o §3º, também do artigo 1º, é enfático ao afirmar que "o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa", pelo que, sem dolo, não há que se falar em improbidade, caminho este que igualmente deve ser adotado no que concerne à persecução penal, cuja gravidade exige um dolo bem mais específico e contundente.

A concessão inserta na Lei nº 14.133/2021 volve-se à solidificação de bons ajustes para a Administração Pública, que, via de regra, vivencia as peculiaridades idiossincráticas decorrentes de um gerir administrativo cada vez mais complexo e exigente. A eficiência, eficácia e efetividade buscadas pelo legislador (artigo 5º) somente de consolidam se houver maior liberdade de atuação.

O concerto, dessa forma, pode despontar como a solução mais viável e, por isso, a que deva — por imposição constitucional — ser alcançada. Não basta que a norma carreie amplo grau de inovação e, assim, possibilite a celebração de acordos pela Administração Pública quanto aos direitos patrimoniais disponíveis se, ao final, houver ações de controle externo tendentes a suprimir a atuação dos agentes públicos exercentes da função administrativa. Em outras palavras, é necessário que o Poder Executivo seja visto como uma parte do Estado tão apta a transacionar, acordar ou a celebrar compromissos quanto os membros do controle externo, notadamente quanto aos direitos patrimoniais disponíveis.

De todo modo, é imperioso que haja a assimilação do conteúdo normativo pelo administrador público, pois que, da leitura dos dispositivos que tratam do tema — designadamente parágrafo único do artigo 151, da Lei nº 14.133/2021 —, ainda que estritamente literal, sem qualquer alvoroço de uma interpretação mais eloquente, já se faz perceber que a norma visa à melhoria na tomada de decisões administrativas, buscando, como dito, a eficiência e qualificando as decisões administrativas com uma segurança jurídica mais decisiva, é dizer, com menores riscos e incertezas.

À guisa de encerramento, sem qualquer pretensão de exaustão, é possível pronunciar que, nada obstante todas as incógnitas que ainda pairam sobre a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ainda é cedo para tirar conclusões mais profundas ou terminativas. Entretanto, já há um maior grau de confiança, que decorre, também, da edição da Lei nº 14.230/2021.

É de se esperar, pois, que a compreensão dos controladores externos se volte ao cumprimento do espírito da norma, sem excessos ou opressões, pena de ser mantida a mesma estagnação que contamina o dia a dia da Administração Pública. Se há outorga normativa para perpassar por alguns direitos patrimoniais disponíveis, o escopo normativo deve ser acatado, possibilitando uma convergência, sem fraqueza e acanhamento, entre a compreensão dos olhares do controle externo e o que pode (na medida do que realmente é possível) ser efetivado pela Administração Pública.

Lastreado nessa nova interpretação, emergirá uma Administração Pública mais proporcional e menos irracional, com escolhas efetivamente praticáveis, reforçando uma segurança no trato da coisa pública, envolta num quadro de incertezas e de mudanças permanentes.

Em boa hora despontam as alterações na Lei de Improbidade Administrativa, eliminando as consequências nefastas da paralisação da máquina pública, porquanto elimina a culpa como suficiente para categorização da improbidade. Na dúvida, se disponível o direito, transacione!

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    é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em Administração, sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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