Opinião

Os efeitos da ADI nº 6.284/GO no ordenamento jurídico tributário

Autor

  • Deonísio Koch

    é advogado tributarista professor de Direito Tributário ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de Santa Catarina (TAT) e ex-auditor fiscal estadual.

29 de outubro de 2021, 12h08

O STF deu provimento à Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.284/GO, com a fixação da seguinte tese: "É inconstitucional lei estadual que verse sobre a responsabilidade de terceiros por infrações de forma diversa das regras gerais estabelecidas pelo Código Tributário Nacional".

A decisão adotou como fundamento o disposto no artigo 146, III, "b", da Constituição Federal, que reserva à lei complementar a função de estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários [1].

O julgamento era sobre o pedido de inconstitucionalidade dos incisos XII-A e XIII e o §2º do artigo 45 [2] da Lei nº 11.651/91, do estado de Goiás, bem como dos incisos XII e XIII do Decreto nº 4.852/97, ao qual cabia a regulamentação da lei.  

Além das razões de decidir adotadas pelo STF sintetizadas na tese fixada, os dispositivos legais impugnados demonstram outras inconsistências que não foram abordadas no requerimento da Adin e, por isso, também não considerados pelo relator do acórdão.

Pretende-se dar destaque ao ponto em que a citada lei, em seu inciso XII-A do artigo 45, tenta expandir a concepção de interesse comum na situação que constitua fato gerador da obrigação tributária previsto no inciso I do artigo 124 [3] do CTN ao incluir o contabilista no polo passivo por responsabilidade solidária, respaldado na comunhão de interesse; esse profissional, segundo o texto legal, manteria interesse comum, juntamente com o contribuinte, com relação aos fatos geradores promovidos pelo estabelecimento ao qual presta serviços contábeis, sendo a responsabilidade vinculada a sua atuação de forma dolosa (§2º).

A inconsistência material da lei é evidente nesse ponto. A responsabilidade solidária por interesse comum se firma de forma natural; é uma sujeição passiva múltipla conectada a determinado fato gerador, como é o caso, por exemplo, de dois proprietários de um imóvel urbano com relação à obrigação tributária do IPTU. O interesse comum também se manifesta na solidariedade passiva entre duas ou mais empresas com relação à prestação de serviços na forma consorciada em determinado contrato, com relação ao pagamento do ISS. A empresas contratadas têm interesse no fato gerador desse imposto municipal e estão conectadas à situação definida como hipótese de incidência.

Sacha Calmon Navarro Coelho, ao analisar o tema, escreve: "O inciso I (do artigo 124, do CTN) noticia a solidariedade natural. É o caso dos dois irmãos que são co-proprietários 'pro indiviso' de  um trato de terra. Todos são naturalmente, co-devedores solidários do imposto territorial rural (ITR)" [4].

Essas circunstâncias materiais de sujeição passiva solidária não estão presentes numa relação contratual de prestação de serviços contábeis pelo contabilista. Esse profissional não tem nenhuma relação com os fatos geradores promovidos pelo seu contratante, e, por conseguinte, não se configura interesse comum para o enquadramento pretendido pela mencionada lei. Portanto, esses dispositivos, mesmo que não fossem declarados inconstitucionais, não resistiram ao debate doutrinário e ao crivo jurisprudencial.

Mas o presente artigo pretende colocar em evidência a repercussão da decisão do STF sobre o ordenamento jurídico específico da responsabilidade solidária de terceiros com relação às obrigações tributárias para os demais entes tributantes (União, estados, Distrito Federal e municípios) que regularam essa matéria, em seus respectivos territórios, mantendo pontos em comum com a legislação declarada inconstitucional pelo Supremo. Toma-se, por exemplo, as disposições das alíneas "a" e "b" do inciso XIII do artigo 45, nas quais a responsabilidade solidária é atribuída à pessoa que por seus atos ou omissões, concorre para a prática de infração à legislação tributária, citando, por exemplo, o responsável pelos serviços de instalação e manutenção dos equipamentos eletrônicos de controle fiscal, bem como as pessoas responsáveis pelo software básico do equipamento emissor de cupom fiscal (ECF). Essa responsabilização é imposta geralmente via lei ordinária do ente tributante, com fundamentos no inciso II do artigo 124 do CTN, segundo o qual são solidariamente obrigadas "as pessoas expressamente designadas por lei". Essa opção normativa parte do pressuposto que o mencionado dispositivo do CTN autoriza que lei local designe as pessoas solidariamente responsáveis, desde que observado o requisito de vinculação ao fato gerador previsto no artigo 128 do mesmo Codex.  

O fato é que o STF retirou da competência legislativa os entes tributantes com relação à responsabilidade tributária solidária, por ser matéria a ser veiculada por lei complementar, por força do artigo 146, III, "b", da CF/88, deixando uma orientação clara que lei ordinária local não pode ampliar hipóteses e circunstâncias de responsabilidade de terceiros, nem pessoas, não previstas nos artigos 134 e 135 do CTN.

O ponto controvertido reside na abrangência da decisão do STF. Na fundamentação do acórdão foram mencionados apenas os artigos 134 e 135 do CTN, que, aliás, diga-se de passagem, tratam de responsabilidade subsidiária e pessoal, respectivamente, e não solidária, imprecisão interpretativo que não se pretende abordar neste artigo. A decisão não faz menção ao artigo 124 do mesmo código, embora as defesas da legitimação da lei goiana transitem por esse dispositivo.    

Essa não abordagem do artigo 124, em especial ao inciso II, pode indicar, numa primeira observação, a ausência de qualquer efeito da decisão sobre as regras de solidariedade preconizadas nesse dispositivo, não atingindo as leis ordinárias locais já aludidas.

Porém, a lei declarada inconstitucional tentava alojar no polo passivo por responsabilidade solidária pessoas que concorrem com a prática da infração à legislação tributária, como por exemplo a pessoa ou empresa que desenvolve e licencia serviços de manutenção a programas aplicativos ou ao software básico do equipamento emissor de cupom fiscal (ECF) capacitando-os a fraudar o Fisco (artigo 45, XIII, "b"). Essa mesma responsabilidade e outras da mesma materialidade, são normatizadas em outros entes tributantes, às vezes com outra roupagem jurídica, deixando de citar o interesse comum. Essa forma de responsabilização não encontra respaldo nos artigos 134 e 135, do CTN; seu fundamento de validade está no artigo 124, II, do CTN, dispositivo não citado na decisão.

Portanto, a decisão restritora da competência legislativa ordinária local com relação à obrigação tributária funda-se nos artigos 134 e 135 do CTN, mas trata também de matéria de solidariedade passiva construída pelos entes tributantes com base no artigo 124, inciso II, do mesmo código. Ou seja, há pontos em comum entre a matéria julgada como inconstitucional e as matérias veiculadas pelas legislações vigentes em diversos outros entes tributantes.

Eis a questão sensível. Até que ponto essas legislações dos demais entes tributantes que regulam a mesma matéria objeto da lei declarada inconstitucional, mas com fundamentos jurídicos diferentes, serão passíveis de questionamentos jurídicos a partir do paradigma da decisão do STF? Como fica a situação, por exemplo, se no estado de Goiás uma empresa ou pessoa desenvolver um software de ECF com mecanismo capaz de fraudar o Fisco, a partir da decisão do STF, já que a lei que atribuía a responsabilidade solidária foi declarada inconstitucional? Caso se firmar o entendimento no sentido que os entes tributantes nada podem legislar sobre obrigação tributária, o comando do inciso II do artigo 124 do CTN passa a ser letra morta.  

Talvez o STF não tenha considerado as consequências dessa decisão proferida de forma tão genérica ao dizer simplesmente que lei estadual não pode versar sobre responsabilidade de terceiros, indicando a possível inclusão nesse contexto a responsabilidade solidária estipulada no artigo 124, do CTN, em especial, o inciso II, que autoriza que lei designe expressamente pessoas como solidariamente obrigadas perante as obrigações tributárias. A decisão fez uma abordagem superficial, sem a aprofundamento técnico específica que a matéria requer. A matéria que já era controvertida passou a ser mais nebulosa com a decisão do STF.   

É oportuno lembrar que a Adin 6.284/GO retirou do sistema somente a lei objeto da causa, não produzindo efeitos, obviamente, sobre as leis dos demais entes tributantes que veiculam matéria semelhante, todavia, essa decisão emprestará fundamentos para a discussão e questionamentos de todas as normas que apresentam pontos de convergência com a lei declarada inconstitucional.  

Em resumo, a decisão do STF deixa uma orientação clara que lei ordinária local não pode ampliar hipóteses e circunstâncias de responsabilidade de terceiros não previstas nos artigos 134 e 135 do CTN. Ou seja, por força do artigo 146, III, "b", da CF/88, obrigação tributária (responsabilidade tributária) é matéria de lei complementar nacional. Todavia, a decisão não teve a mesma clareza com relação à situação específica do inciso II do artigo 124 do CTN sobre a possibilidade ou não de o ente tributante editar lei ordinária (ou complementar) para mencionar as pessoas a serem responsabilizadas por concorrerem na prática de infração tributária.

Conforme já comentado acima, a responsabilidade solidária é tratada no artigo 124, e não nos artigos 134 e 135, todos do CTN. Por essa razão, é razoável pensar que o legislador complementar estabeleceu uma norma de estrutura para possibilitar que os entes tributantes possam dispor sobre a responsabilidade solidária em lei ordinária local, nas situações de concorrência de atos e omissões na prática de infrações à legislação tributária, sempre observada a condição vinculante fixada no artigo 128, do CTN.

Portanto, pode-se antever um cenário imprevisível diante dessa decisão com relação à legislação dos demais entes tributantes que normatizaram a responsabilidade de terceiros, na condição de solidários, com pontos de semelhança com a lei decretada inconstitucional, com a possibilidade de uma corrida ao Judiciário para afastar essas responsabilidades, utilizando como paradigma os fundamentos da Adin em foco.

Por essas razões, entre outras, pode-se antever que a discussão sobre os reflexos dessa decisão do STF irá se intensificar nos tribunais nos dias vindouros. 

 


[1] A exigência de lei complementar nacional tem por objetivo manter um sistema tributário uniforme em todo território nacional em suas normas gerais.

[2] "Artigo 45 – São solidariamente obrigadas ao pagamento do imposto ou da penalidade pecuniária as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal, especialmente: (Redação do caput dada pela Lei Nº 19665 DE 09/06/2017) […] XII-A – com o contribuinte ou com o substituto tributário, o contabilista que, por seus atos e omissões, concorra para a prática de infração à legislação tributária; (Inciso acrescentado pela Lei Nº 17519 DE 29/12/2011). 
XIII – com o contribuinte ou o substituto tributário, a pessoa que por seus atos ou omissões concorra para a prática de infração à legislação tributária, notadamente a que tiver:
a) fabricado, fornecido, instalado, cedido, alterado ou prestado serviço de manutenção a equipamentos ou dispositivos eletrônicos de controle fiscal, bem como as respectivas partes e peças, capacitando-os a fraudar o registro de operações ou prestações;

b) desenvolvido, licenciado, cedido, fornecido, instalado, alterado ou prestado serviço de manutenção a programas aplicativos ou ao "software" básico do equipamento emissor de cupom fiscal
 ECF , capacitando-os a fraudar o registro de operações ou prestações;
c) praticado ato com excesso de poder ou infração de contrato social ou estatuto, ou ainda com abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial;
d) praticado ato ou negócio, em infração à lei, na condição de sócio ou administrador, de fato ou de direito, de pessoa jurídica, com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, sobretudo nas hipóteses de interposição fraudulenta de sociedade ou de pessoas e de estruturação fraudulenta de operações mercantis, financeiras ou de serviços;
e) participado, de modo ativo, de organização ou associação constituída para a prática de fraude fiscal estruturada, realizada em proveito de terceiras empresas;
f) promovido a ocultação ou alienação de bens e direitos da pessoa jurídica com o propósito de impedir ou dificultar a cobrança do crédito tributário. […] 
§ 2º A responsabilização do contabilista de que trata o inciso XII-A somente se dará no caso de dolo ou fraude, apurada mediante o devido processo legal. (Parágrafo acrescentado pela Lei Nº 17519 DE 29/12/2011)".

[3] "Artigo 124 – São solidariamente obrigadas: 
I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal; 
II – as pessoas expressamente designadas por lei.
Parágrafo único. A solidariedade referida neste artigo não comporta benefício de ordem".

[4] (Curso de Direito Tributário Brasileiro, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 594).

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    é advogado tributarista, professor de Direito Tributário, ex-conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário de SC (TAT) e ex-auditor fiscal do Estado.

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