Improbidade em debate

Improbidade, ressarcimento e um diálogo entre precedentes

Autores

29 de outubro de 2021, 8h00

O manuseio dos precedentes judiciais, no Brasil, não raro produz disfuncionalidades. Um desses exemplos é trazido neste texto por tocar a improbidade administrativa, alcançando um tema de repercussão geral já decidido (897) e dois temas de recursos especiais repetitivos, um bem recentemente enfrentado (1.089) e outro ainda pendente de solução (1.096).

Spacca
Pois bem. Como sabido, o Supremo Tribunal Federal, no Tema 897 de repercussão geral, decidiu, em 8/8/2018, que "são imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa". No curso dos debates, sem embargo, um ponto inspirou particular discussão.

É que, prescrita a pretensão punitiva fundada da matriz de responsabilidade da improbidade, mas conservada a exigibilidade do ressarcimento ao erário, haveria o potencial paradoxo de que a afirmação da rubrica originadora da reparação (prática de ato ímprobo) não mais pudesse ocorrer, conquanto uma de suas peculiares consequências (ressarcimento ao erário) ainda se conservasse possível.

Essa discussão não apenas lapidou o julgado rumo ao estabelecimento do dolo como condição para a imprescritibilidade (recrudescendo requisitos para tornar mais severo o crivo da atemporalidade), como também repercutiu, por provocação do ministro Alexandre de Moraes, noutro questionamento: presente a necessidade de comprovação de elemento subjetivo de tipo ímprobo, qual haveria de ser, à luz do devido processo legal, o rito a ser seguido?

Spacca
A despeito das pertinentes ponderações feitas pelo ministro Alexandre de Moraes, o colegiado dedicou menos importância à questão do rito, ao final tratando a definição da premissa de configuração de uma ato de improbidade como uma necessária questão prejudicial a ser enfrentada e que, uma vez superada, conduziria à reparação como consequência.

Essa visão deu margem a que, independentemente do procedimento, uma ação, já prescrita a pretensão punitiva em improbidade, pudesse prosseguir, ou ser ajuizada, em prol da reparação, desde que nela se demonstrasse, a par do dano cujo ressarcimento de pretendia, a ilicitude da conduta e, em especial, o elemento subjetivo do tipo, isto é, o dolo.

A ênfase dada no julgado sobre a indispensabilidade do dolo chamou atenção, ao mesmo tempo em que ofuscou outro dado importante: a igual indispensabilidade de comprovação do dano. Foi esse ponto, aliás, que em parte ensejou a oposição de embargos de declaração, nos quais se suscitou "omissão em relação ao debate acerca da necessidade ou não de comprovação de dano concreto quando do ajuizamento da ação".

Ainda que tenham os aclaratórios sido rejeitados, voto-vista do ministro Alexandre de Moraes acabou por elucidar aquele aspecto: "Com efeito, o Plenário decidiu, com toda a clareza, que: (…) compete ao Ministério Público comprovar a prática do ato de improbidade administrativa doloso, desde que tipificado na Lei 8.429/1992, e não somente a existência do dano, garantindo-se ampla defesa ao réu".

Cabe aqui uma rápida digressão: com a sobrevinda da Lei nº 14.230/2021, temos para nós que o dolo exigido pelo Tema 897 de repercussão geral deve ser, em qualquer hipótese, direto, não mais se admitindo o dolo genérico; ademais, restou em larga medida prejudicada a discussão, travada naquele tema, sobre o rito cabível para o ressarcimento, eis que, a teor da nova redação dada ao artigo 17, caput, a ação de improbidade, a exemplo de uma ressarcitória autônoma, passa a se processar pelo procedimento comum, com derrogações pontuais pela Lei nº 8.429/1992 — e encerra-se a digressão.

Retomando nossas considerações para avançar no objeto do texto, guardando alguma relação com aquele julgado proferido no Tema 897 de repercussão geral, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão publicado no último dia 13, definiu no Tema 1.089 de recursos especiais repetitivos que em "ação civil pública por ato de improbidade administrativa é possível o prosseguimento da demanda para pleitear o ressarcimento do dano ao erário, ainda que sejam declaradas prescritas as demais sanções previstas no art. 12 da Lei 8.429/92".

É dizer, em linha com o Tema 897 de repercussão geral, que o Superior Tribunal de Justiça, na especial hipótese em que a prescrição é reconhecida em ação de improbidade em curso, reconheceu a desnecessidade de instauração apartada, e do zero, de ação de ressarcimento autônoma, aproveitando-se o feito previamente instalado.

Dado que a própria ocorrência ou não de improbidade representaria questão prejudicial condicionante do ressarcimento, a ação, em que pese veiculasse pretensão prescrita a não mais poder desencadear punições outras, poderia ser aproveitada não apenas na parte em que deduzida pretensão (imprescritível) de reparação ao erário, mas, sobretudo, no que dissesse respeito ao preenchimento do indisputável requisito, prejudicial, de configuração de improbidade dolosa como ilicitude originadora daquela obrigação, como bem apontaram trechos do aresto emanado do Supremo Tribunal Federal transcritos literalmente no julgado lavrado pelo Superior Tribunal de Justiça:

"(…) Portanto, eventualmente prescrita a improbidade, propõe-se a ação de ressarcimento, fundada na prática do ato de improbidade, vai se processar evidentemente com instrução, como se improbidade fosse. E essa ação de ressarcimento é imprescritível nos termos da Constituição" (trecho do voto do ministro Edson Fachin).

"(…) Então, não há a menor possibilidade de essa ação de ressarcimento se basear em responsabilidade objetiva. Na ação de ressarcimento de dano ao erário, a parte ré só pode ser condenada se comprovada a improbidade" (trecho do voto do ministro Luiz Fux).

"Por óbvio que se o ressarcimento de dano ao erário pressupõe um ato de improbidade administrativa reconhecido judicialmente, nada impede que, na ação de ressarcimento, se busque exatamente a declaração da prática de um ato de improbidade administrativa apenas para efeito de ressarcimento do Tesouro" (trecho do voto do ministra Rosa Weber).

Ainda que, a exemplo do Tema 897 de repercussão geral, o Tema 1.089 de recursos especiais repetitivos enfocasse como requisito a necessária comprovação de ato de improbidade doloso, a exigência de demonstração do dano, por mais trivial que pudesse parecer, seguiu sendo tratado com menor destaque.

Eis que surge, então, a importância a cercar o Tema 1.096 dos recursos especiais repetitivos, ainda pendente de julgamento, afetado para o fim de "definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)."

Já dissemos, no passado, que não é desconhecida a tendência do Superior Tribunal de Justiça de responder afirmativamente à questão (vide REsp 1.014.161, DJ de 20/9/2010), mas há alguns pontos a se considerar. Em primeiro lugar, o julgamento do Tema 1.096 não poderá desconsiderar a superveniência da Lei nº 14.230/2021 e as sensíveis mudanças por ela introduzidas na Lei nº 8.429/1992 no que concerne ao incremento da exigência de comprovação de dano efetivo em improbidade para fins de ressarcimento, como bem apontam os artigos 12, caput [1], e 21, I [2].

Em segundo lugar, o referido Tema 1.096 igualmente deverá dialogar com entendimento da 1ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça, ainda que insulado, no sentido de que, mesmo admitido o dano in re ipsa para configuração de ato de improbidade, não está a presunção apta a fundamentar a cominação de sanção de ressarcimento ao erário (REsp 1.755.958, DJ de 6.9.2019), como, aliás, acabou por se consagrar na já citada nova redação do artigo 21, I, da Lei nº 8.429/1992, com redação dada pela Lei nº 14.230/2021.

Finalmente, em terceiro lugar — e eis aqui o ponto fulcral deste texto —, não pode passar ao largo do Tema 1.096 o fato de que, em havendo prescrição da pretensão punitiva fundada em ato ímprobo que invoque qualquer sorte de dano presumido, descaberá a perpetuação da ação, dado que inviabilizada estará a reparação ao erário.

Mais bem explicando, presunção não implica comprovação efetiva. Presunção, ao contrário, técnica processual que reputa comprovado, a partir de fatos conhecidos, um fato desconhecido — e de que são exemplos os efeitos da revelia e a comoriência —, pressupõe, na realidade, a não comprovação daquilo que, por força de lei ou de decisão judicial, passa a ser considerado como se comprovado estivesse.

Disso se extrai que, a teor do Tema 897 de repercussão geral, ecoado pelo Tema 1.089 de repetitivos, sendo exigível, como condição para pretensão de ressarcimento fundada em ato de improbidade, não somente o dolo, mas também a comprovação efetiva do dano cuja reparação se pretende, nenhum lastro terá a pretensão de ressarcimento.

Dito de outro modo, ainda que a presunção de dano pudesse se prestar a fazer configurar a prática de ato de improbidade, e ainda que fosse o ato doloso, a imprescritibilidade não superaria o óbice, imprescindível, de quantificação de dano efetivo, o que não se verifica no dano tido como in re ipsa.

Ainda a bem da clareza: contrário das legais, inexistem presunções judiciais absolutas. O dano in re ipsa, que na prática veicula exótica inversão do ônus da prova em desfavor do réu, até poderia, com ressalva de nossas críticas, se prestar a funcionar para a configuração de ato de improbidade, como já se extraía de uma leitura contrario sensu do artigo 21, I, mesmo antes de sua reforma. O que não se concebe, ao revés, é que a necessidade de comprovação de dano efetivo exigida pelo Tema 897 de repercussão geral, reiterada pelo Tema 1.089 de recursos especiais repetitivos possa se dar em função de uma presunção.

Por isso é que, insistindo o Ministério Público no prosseguimento de ação que, face à prescrição das demais pretensões punitivas, pretenda se limitar ao ressarcimento, não poderá furtar-se à indispensabilidade da comprovação de dano efetivo, à falta do qual não haverá que se falar em ressarcimento ao erário — ou, sequer, em interesse processual.

* Este texto é dedicado a Rafael Bonassa Faria, com quem trocamos proveitosas ideias que acabaram por inspirar o escrito.


[1] "Artigo 12 – Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato".

[2] "Artigo 21 – A aplicação das sanções previstas nesta lei independe:
I – da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público, salvo quanto à pena de ressarcimento e às condutas previstas no artigo 10 desta Lei; (redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)".

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!