Seguros Contemporâneos

A busca pela efetividade do seguro-garantia em contratações públicas (2)

Autor

  • Roque de Holanda Melo

    é pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) professor da Escola de Negócios e Seguros e do curso de pós-graduação em Direito dos Seguros da Universidade Positivo membro consultor da Comissão de Direito Securitário da OAB-PR presidente da Comissão de Crédito e Garantia da Fenseg e vice-presidente da Junto Seguros S/A.

28 de outubro de 2021, 8h00

Dando continuidade à primeira parte do estudo, na coluna desta semana continuaremos tratando da busca pela efetividade do seguro garantia nas contratações públicas, e o diálogo como único caminho convergente.

O papel crucial dos resseguradores
Apesar de não estarem nominados na apólice de seguro emitida e apresentada ao segurado, os resseguradores desempenham um dos papéis mais primordiais nessa "cadeia" de responsabilidade entre os agentes que atuam no âmbito das contratações púbicas, assim como em qualquer outra operação de seguros que exija contratação de resseguro, qual seja, ofertar capacidade para as seguradoras que atuam no mercado brasileiro.

Nessa linha, se há uma seguradora emitindo seguro garantia no Brasil, é porque certamente há um painel de resseguradores que supre sua necessidade de capacidade financeira para pulverizar os ricos assumidos.

Portanto, cabe a cada ressegurador a importante missão de analisar, monitorar e exigir das seguradoras para quem oferta capacidade o cumprimento de requisitos mínimos para que tais seguradoras possam estar aptas ao cumprimento das exigências previstas na nova Lei de Licitações.

Trata-se, à toda vista, de um exercício constante e de extrema relevância para que, a um só tempo, haja uma transformação do mercado segurador e ressegurador que permita às seguradoras proporcionarem a segurança esperada pelo Estado, bem como crie condições para o constante e necessário aperfeiçoamento do modelo.

Aliás, se há um ator nessa relação que conhece o modelo de seguro com cláusula de retomada, certamente são as resseguradoras que, na sua quase totalidade, oferecem suporte de resseguros também para seguradoras que atuam em outros países, sobretudo os Estados Unidos, e estão acostumadas, portanto, a ressegurar contratos firmados com agente público com previsão de cláusula de retomada (step-in rights).

Dúvidas e incertezas
Não obstante o indiscutível avanço trazido pela nova Lei de Licitações no tocante ao processo de contratação pública para o Brasil, o fato é que ainda pairam muitas dúvidas e incertezas, sobretudo no tocante ao funcionamento das disposições legais versus a dinâmica e prática atualmente existente.

Obviamente que resumir o sucesso, insucesso ou ainda a efetividade do seguro garantia, única e exclusivamente, baseando-se no percentual de garantia a ser exigido, seria demasiadamente simplista para não dizer equivocado.

Ademais, consoante procuramos demonstrar nos tópicos anteriores, o fato é que há a necessidade inerente de atuação pautada por boas práticas e que devem ser adotadas por absolutamente todas as partes envolvidas no processo de contratação (segurador/ressegurador/tomador/corretor de seguros/segurado), bastando que apenas um desses atores deixe de cumprir adequadamente seu papel para que um resultado negativo quiçá impossibilite o atingimento do fim almejado.

A esse respeito, aliás, necessário destacar que procuramos abordar nos tópicos anteriores apenas as mais importantes atribuições de cada um dos players envolvidos no processo de contratação pública, sem nenhuma pretensão de esgotar as atribuições que são peculiares e afetas a cada um desses agentes. Aliás, necessário ponderar que há outros aspectos, igualmente relevantes, e que devem ser considerados nas discussões a fim de se criar um ambiente favorável e que de fato possibilite a efetividade da garantia a ser apresentada.

De igual forma, poderíamos incluir nesse rol, meramente exemplificativo, outros tantos e importantes atores que, igualmente, desempenharão papel de fundamental relevância no processo de contratação pública, a exemplo dos consultores jurídicos; empresas de regulação de sinistros; empresas de gerenciamento de riscos, e assim por diante.

Há, de fato, muito mais para ser discutido, novos regulamentos a serem criados e uma profunda e mais detalhada revisão dos instrumentos legais vigentes, inclusive a nova Lei de Licitações, de modo que o ambiente de contratações públicas possa entrar num círculo virtuoso de evolução contínua.

Enquanto todas essas revisões não forem promovidas, impõe-se o aprimoramento do diálogo entre as partes e a necessária vulnerabilidade para que todos reconheçam as próprias falhas e limitações, e promovam os ajustes necessários com vista ao atingimento do objetivo maior que é garantir, de forma efetiva, a proteção dos interesses do Estado/sociedade nas contratações públicas.

Desmistificando as 'verdades absolutas' e rompendo com paradigmas
Antes mesmo da entrada em vigor da nova Lei de Licitações, muitas autoridades e renomados especialistas se debruçaram sobre o tema e emitiram opiniões, por vezes acaloradas, sobre o tema. Após a entrada em vigor da nova lei, muitos outros pontos de vista se somaram, dando ainda mais cores ao assunto que, sem dúvida, é de vital importância para o futuro do nosso país.

Infelizmente, nem todas as ponderações baseiam-se em premissas sustentáveis e, embora a louvável intenção em se criar um ambiente seguro para as contratações públicas, procuram impor ao seguro-garantia a solução para problemas que, à toda vista, não são passíveis de serem resolvidos por qualquer forma de garantia.

Nos referimos aqui à expressão "seguro anticorrupção", que se tornou praticamente um slogan e que, inclusive, passou a ser utilizado como "sinônimo" de performance bond.

Há de se esclarecer, vez por todas, que não existe no Brasil e nem em qualquer outra parte do mundo seguro contra atos de corrupção. Trata-se de uma falsa expectativa que vem sendo criada e que, infelizmente, é propagada como se fosse uma verdade absoluta.

Ressalvados os casos em que restam comprovados a prática de atos de corrupção por parte do contratado sem qualquer envolvimento do Estado, inclusive através dos prepostos do órgão contratante, caso em que restaria hígida a garantia e, portanto, a obrigação de indenizar por parte do agente garantidor em caso de sinistro, via de regra, atos de corrupção envolvem, no mínimo, duas partes: o corruptor e o corrompido. E, no papel de corrompido, invariavelmente encontraremos um agente a serviço do Estado que, ao participar ativa ou passivamente do ato de corrupção, acaba por violar as disposições contratuais e legais aplicáveis ao tema, notadamente a cláusula de excludente de responsabilidade, a eximir o agente garantidor do compromisso de indenizar os prejuízos suportados pelo Estado.

Portanto, quando ouvirem novamente a expressão "seguro anticorrupção", lembrem-se de que tal instituto simplesmente não existe e que o tema precisa ser tratado com cautela e sob as luzes das leis vigentes e que regulamentam as contratações públicas e a matéria securitária no Brasil.

Importante destacar que não temos a intenção de diminuir ou evitar o tema, mas tão somente deixar claro que o problema de corrupção deve ser tratado com rigor e mediante o estabelecimento de mecanismos que visem a extirpar tal comportamento da sociedade, sem a tentativa de criar alternativas, à toda vista inexistentes, e que poderiam, inclusive, ainda que não intencionalmente, perpetuar as práticas de corrupção sob a justificativa de que, supostamente, haveria garantia para a prática de tais atos e que, portanto, eventuais prejuízos seriam supostamente reparados.

Outro aspecto que preocupa e, igualmente, vem sendo propagado por alguns profissionais que tentam se pronunciar sobre o tema é a afirmação de que a cláusula de retomada não funciona no Brasil porque as seguradoras, supostamente, jamais terão o interesse em retomar e concluir a obra ao invés de simplesmente pagarem a indenização e se "livrarem do problema".

Curiosamente, tais colocações, invariavelmente, são feitas por quem desconhece o tema securitário ou sequer vem acompanhando as discussões envolvendo a nova Lei de Licitações e seus reflexos no mercado segurador.

O fato é que os mercados segurador e ressegurador vêm acompanhando os debates em torno da lei de licitações por décadas e, inclusive, participaram ativamente das discussões envolvendo o tema, especialmente no tocante ao capítulo destinado às garantias contratuais.

E, ainda que não estejamos diante do texto de lei ideal (o mercado, inclusive, apontou várias sugestões de alteração do texto, porém estas, infelizmente, não foram acolhidas), o mercado sabe que precisa fazer a sua parte, de modo a auxiliar no atingimento do fim desejado pelo Estado. E, para isso, deverá fazer seu dever de casa, no sentido de promover ajustes importantes e que permitam, não apenas o acompanhamento da obra, mas também a sua efetiva retomada e conclusão, sempre que possível caso sobrevenha um sinistro.

Não temos aqui, em absoluto, a pretensão de dizer que o tema é de fácil solução, ou que já se encontram reunidos todos os elementos necessários a proporcionar essa virada de página no modelo de garantia para contratações públicas vigente.

Por outro lado, o momento exige protagonismo e coragem de todas as partes envolvidas, na busca pelo modelo que trará mais efetividade para as garantias nas contratações públicas do Brasil. Com isso em mente, os mercados segurador e ressegurador estão cientes de suas responsabilidades e da necessidade de se criar um ambiente não apenas favorável, mas que torne a retomada e conclusão das obras por parte do agente garantidor não mais um sonho, mas, sim, uma realidade no nosso país.

Duas certezas se revelam inexoráveis nesse processo, que certamente está longe de um desfecho conclusivo: a primeira, no sentido de que muitos erros ainda serão cometidos. A frase, necessário esclarecer, revela-se não como uma crítica, mas, sim, como um necessário exercício de vulnerabilidade, que exigirá o reconhecimento dos erros e a adoção de medidas rápidas para adequar eventuais falhas/lacunas existentes na lei, bem como no atual modelo de garantia e contratação. O segundo aspecto, e não menos importante, é que existe apenas um caminho a ser perseguido, o diálogo e a busca por soluções convergentes.

Nossa intenção com esses singelos apontamentos não foi outra senão apenas despertar a atenção para aspectos relevantes, entre tantos outros que poderiam ser citados e que envolvem a contratação pública no Brasil, especialmente decorrentes da nova sistemática que será implementada face à nova Lei de Licitações; tentar desmistificar informações que nos afastam da realidade; reforçar que embora não sendo perfeito o modelo passará, muito em breve, a ser exigido nas novas contratações públicas e que, portanto, somente o diálogo nos permitirá avançar em termos do constante e necessário aprimoramento e adaptação do modelo recém-aprovado, para que possamos, de forma ágil e eficaz, superar outras dificuldades que certamente serão encontradas pelo caminho.

O fato é que após mais de duas décadas de discussão o tema ainda guarda incertezas e dúvidas para muitos, absolutamente justificáveis ante a imprecisão de alguns dispositivos legais. Restam-nos, pois, duas alternativas: fechar os olhos e afirmar que o modelo não é factível de ser operado ou ainda que não funcionará no Brasil, ou agirmos juntos, em busca dos constantes aprimoramentos legais e operacionais necessários ao atingimento do objetivo maior, que é contar com um mecanismo de garantia efetivo e que proporcionará maior segurança para o Estado e com reflexos positivos para toda a sociedade.

Conclusão
A despeito de ser o seguro-garantia a única modalidade de garantia a possibilitar a retomada e conclusão da obra por parte do agente garantidor, a finalidade/resultado precípuo dessa modalidade de seguro nas contratações públicas somente será passível de ser alcançada na medida em que todos os atores envolvidos nesse processo desempenharem adequadamente os seus papéis.

Basta que apenas um dos agentes citados neste exercício deixe de cumprir seu relevante papel para que os efeitos negativos possam ser experimentados por todos os demais, fazendo sucumbir não apenas o anseio do Estado, mas a efetividade do seguro-garantia no âmbito das contratações púbicas.

Ademais, sem embargo às obrigações e responsabilidades inerentes a cada ator envolvido no processo de contratação, ainda há muitas dúvidas e incertezas sobre os desdobramentos e futuro das contratações públicas a partir da realidade exigidas pela nova Lei de Licitações, impondo-se maior diálogo entre as partes envolvidas a fim de que, a um só tempo, possam ser superadas as dúvidas existentes, bem como pavimentado o caminho para que seja construído um modelo de contratação e de garantia que contribua para o crescimento e desenvolvimento de nosso país.

Por fim, é importante se ter em mente que a nova lei não representa um fim, mas apenas o meio de um processo de transformação, que se iniciou há mais de 25 anos (tempo aproximado de tramitação da nova Lei de Licitações), e que somente será efetivo, caso mantido o diálogo e disposição de todos na busca pelos melhores caminhos para tornar o seguro-garantia ainda mais efetivo no Brasil.

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

Autores

  • é pós-graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), professor da Escola de Negócios e Seguros e do curso de pós-graduação em Direito dos Seguros da Universidade Positivo, membro consultor da Comissão de Direito Securitário da OAB-PR, presidente da Comissão de Crédito e Garantia da Fenseg e vice-presidente da Junto Seguros S/A.

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