Interesse Público

Reforma da Lei de Improbidade e novatio legis in mellius implícita

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28 de outubro de 2021, 8h00

Em coluna publicada nesta ConJur no dia de 19 de novembro do ano passado, sustentei, com base nos princípios penais aplicáveis ao Direito Administrativo sancionatório, a retroatividade da nova presunção de singularidade na contratação direta de advogados (e contadores) pela Administração Pública, mercê da disciplina mais benéfica à categorização dos serviços trazida a lume pela Lei 14.039/20, que alterou a Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia Nacional) e o Decreto-Lei nº 9.295, de 27 de maio de 1946 (que rege a profissão de contador).

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Por uma questão de coerência de pensamento e argumentativa, é evidente que também reputo que a Lei 14.230, de 26 de outubro deste ano, responsável pela recentíssima reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), tem aplicabilidade retroativa, a despeito da ausência no seu corpo de disposição específica, que restou não acatada durante o curso do processo legislativo [1].

Com efeito, as ações de improbidade administrativa são ações judiciais de "colorido penal", que, sobre pertencerem ao campo do Direito Administrativo sancionador, socorrem-se de princípios hauridos do Direito Criminal e Processual Criminal, até porque tocam no âmago de direitos e liberdades individuais dos cidadãos (patrimônio, trabalho, honra). Escrevi sobre o tema que:

"As ações de improbidade administrativa não são ações civis por excelência. Tratá-las como tal é um equívoco. São ações de conteúdo punitivo, participantes do microssistema do Direito Administrativo Sancionador. São ações 'penaliformes', subordinadas muito mais de perto à 'principiologia' — repito: à 'principiologia' — típica do Direito Penal e do Processo Penal. Nesse sentido, o STJ tem orientação firme de que 'o objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim — a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal —, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal" (REsp 885.836/MG (2006/0156018-0), relator ministro Teori Zavascki, 1ª T, DJ de 02/08/2007, p. 398) [2].

A constatação sobre a natureza sancionatória da ação de improbidade administrativa e sua submissão aos obstáculos constitucionais que incidem sobre as ações penais, aliadas ao disposto no novo artigo 1º, §4º [3], induzem ao reconhecimento da transcendência dos princípios do Direito Penal ao campo do Direito Administrativo sancionatório: "A lógica é evidente: o ordenamento jurídico não pode deslegitimar conduta que é benéfica a bem jurídico a que ele próprio confere valor diferenciado (para mais). A legitimidade da conduta, neste caso, deve ser compreendida de forma abrangente, englobando tanto o aspecto penal, como os aspectos cível e administrativo" (REsp 1123876/DF, relator ministro Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, julgado em 5/4/2011, DJe 13/4/2011).

Portanto, diante da repaginação do regime jurídico das improbidades, com profundas alterações na capitulação dos delitos e nos elementos constitutivos dos tipos não só a limitação da improbidade às práticas dolosas (artigo 1º, §1º) [4], mas também o seu afastamento pela mera voluntariedade e, especialmente, a exigência da finalidade ilícita no exercício doloso das competências funcionais (§§2º e 3º do artigo 1º), haverá de produzir é o que se espera uma tremenda reviravolta nas ações de improbidade administrativa em curso, notadamente por força do que dispõe o artigo 5º, XL, da Constituição a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

O STF já se pronunciou pela aplicação da lei mais benéfica em campo processual administrativo independente de sua consagração explícita pelo legislador infraconstitucional, verbis:

"A regra constitucional de retroação da lei penal mais benéfica (inciso XL do artigo 5º) é exigente de interpretação elástica ou tecnicamente 'generosa'. 2. Para conferir o máximo de eficácia ao inciso XL do seu artigo 5º, a Constituição não se refere à lei penal como um todo unitário de normas jurídicas, mas se reporta, isto sim, a cada norma que se veicule por dispositivo embutido em qualquer diploma legal. Com o que a retroatividade benigna opera de pronto, não por mérito da lei em que inserida a regra penal mais favorável, porém por mérito da Constituição mesma […]" (RE 596152, Relator(a): Ricardo Lewandowski, Relator(a) P/ Acórdão: Ayres Britto, Tribunal Pleno, Julgado Em 13/10/2011, Acórdão Eletrônico Dje-030, Divulg. 10/2/2012, Public 13/2/2012).

O reconhecimento explícito da novatio legis in mellius (implícito) no campo do Direito Administrativo sancionatório é consagrado também pela jurisprudência do STJ, cujas orientações prevalentes revelam que "o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no artigo 5º, XL, da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito administrativo sancionador" (RMS 37.031/SP, relatora ministra Regina Helena Costa, 1ª Turma, julgado em 8/2/2018, DJe 20/2/2018), bem como que "a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator. Constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa" (REsp 1153083/MT, relator ministro Sérgio Kukina, relatora p/acórdão ministra Regina Helena Costa, 1ª Turma, julgado em 6/11/2014, DJe 19/11/2014) [5].

Logo, a entrada em vigor da Lei 14.230/21 e seu inegável efeito retroativo tendem a trazer ares de mudança aos rumos das ações de improbidade administrativa em curso no país, exigindo reavaliação completa das imputações e das capitulações propostas pelos autores, especialmente pelo Ministério Público.

Caberá ao Poder Judiciário aquilatar, com a prudência de que dele se espera, as ações de improbidade administrativa, desta feita não sob a inspiração da jurisprudência que se vinha consolidando sobre o tema, senão sob o amparo das novas disposições veiculadas pelo Poder Legislativo, mediante a edição da Lei 14.230/21.

 


[1] A Emenda nº 40, do Senador Dário Berger, propôs a inclusão de artigo, onde coubesse, no Projeto de Lei nº 2.505, de 2021, para que as alterações dadas pela presente proposição, se aplicassem desde logo em benefício dos réus. O relator do projeto de lei, “rendendo homenagens ao Senador Dário Berger, deixou de acolher a proposta, tendo em vista que já é consolidada a orientação de longa data do Superior Tribunal de Justiça, na linha de que "considerando os princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado" (REsp nº 1.153.083/MT, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 19/11/2014).

[2] Ver, por todos, FERRAZ, Luciano. Ausência de Duplo Grau de Jurisdição obrigatório nas ações de improbidade administrativa. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-30/interesse-publico-ausencia-duplo-grau-jurisdicao-obrigatorio-acoes-improbidade.

[3] "Artigo 1º, §4º – Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador".

[4] A doutrina brasileira, em sua maioria, sempre sustentou a necessidade do dolo para a configuração da improbidade administrativa.

[5] No mesmo sentido, ver o precedente da Corte Superior do STJ na Ação Rescisória 1.304/RJ, na qual se verifica que: "Considerando os princípios do Direito Sancionador, a novatio legis in mellius deve retroagir para favorecer o apenado" (AR 1.304/rj, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Rel. P/ Acórdão Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, julgado em 14/05/2008, DJe 26/08/2008).

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