Opinião

Os parques eólicos e as contradições no seu modelo de expansão

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27 de outubro de 2021, 7h14

A energia eólica é apresentada como a alternativa mais eficaz em termos de baixo consumo de carbono, de baixo potencial poluidor e de matriz energética, ao menos em comparação com as demais — petróleo e carvão —, mais limpa e, por isso, seria a maneira mais fácil de se atingirem as metas do Acordo de Paris e de se cumprir a Lei nº 12.187/2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), além das metas estipuladas para o setor de energia nos artigos 18 e 19 do Decreto nº 9.578/2018, que regulamenta essa lei. É o senso comum estabelecido na Resolução nº 462/2014 do Conama, a qual trata dos procedimentos de licenciamento ambiental de parques eólicos terrestres, e verberado a todo tempo pelos principais veículos de comunicação. Contudo, não obstante se tratar de energia renovável, há impactos ambientais que não podem deixar de ser considerados.

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Entre 2011 e 2019, foram realizados investimentos no Brasil da ordem de R$ 187,1 bilhões (apenas em aerogeradores) [1], sendo que, até 2029, espera-se que este valor sofra novo aporte de R$ 72,3 bilhões. A partir dos investimentos realizados, atualmente, segundo dados da Aneel [2], o Brasil dispõe de 19,7 gw de capacidade real de eletricidade gerada pelos aerogeradores, distribuídos em 752 empreendimentos em operação e correspondendo a 10,87% da energia elétrica produzida no país em outubro de 2021. Ressalte-se que esses dados não incluem os empreendimentos autorizados, com construção não iniciada e nem em construção, o que mostra que a participação da energia eólica na matriz energética brasileira só tende a crescer nos próximos anos.

Entretanto, qualquer exame mais crítico mostra que, por trás desses números, persistem as contradições interfinanceiras do capitalismo global. Particularmente em relação aos recursos energéticos não renováveis, entre estes o petróleo, fonte de sustentação não apenas energética da revolução tecnológica, mas de sustentação objetiva do dólar como equivalente universal nas trocas de mercadorias globais, existe uma ameaça de que seu esgotamento comprometa a capacidade de projeção de poder dos Estados Unidos no globo. Isso força as grandes corporações multinacionais a buscarem fontes alternativas de energia, o que implica estoque de terras, expansão e privatização sobre bens comuns, a exemplo do ar, da água e das florestas, implicando estratégias legais, mas não menos enfáticas, de redução de direitos e de serviços básicos sobre esses bens comuns a direitos exclusivos de propriedade privada. É isso o que David Harvey [3] chama de acumulação por despossessão. Mariana Traldi [4] vai denominar de green grabbing a despossessão verificada em extensas áreas de terra a pretexto de se assegurar o "desenvolvimento sustentável", o combate à "crise hídrica" ou a defesa de uma "agenda verde".

A implantação dos parques eólicos no Brasil, principalmente no Nordeste (17,5 gw de geração de eletricidade pelos parques eólicos, em pleno funcionamento, estão concentradas nessa região) [5], passa por estocagem de terras, faz-se a partir da subtração do direito de exploração econômica dos agricultores sobre suas terras e constitui um novo movimento de reconcentração fundiária no Brasil, particularmente no semiárido. Existem exemplos, fruto de observação junto a agricultores, no entorno das serras íngremes que cercam Santa Luzia, São José do Sabugi e Junco do Seridó, no seridó ocidental da Paraíba, de toda uma situação de penetração de grandes empresas de energia eólica. São áreas em que já existem parques eólicos, em que novas torres de medição estão sendo instaladas e novas estradas começando a ser abertas. Trata-se de região com múltiplas situações de propriedade, desde agricultores individuais com a posse titulada, passando por agricultores familiares e por assentados de crédito rural, terras sob controle do Incra, comunidades quilombolas, indo até a terras de sítios históricos com títulos de propriedade. Relatos apontam assédio de representantes de empresas de energia para que os agricultores assinem contratos de adesão de cessão de uso da terra, individuais ou coletivos, para a instalação de parques eólicos, muitas vezes com assistência de advogado da própria empresa, pagando valores baixos para aluguéis, alguns chegando a meros R$ 400 por família, com prazo inicial de pesquisa de três anos para medição de vento e, na sequência, início imediato de prazos longos de 49 anos e sem nenhuma garantia de instalação do aerogerador. Além do mais, em função da operação técnica das torres eólicas, seja para a correta captação da força dos ventos, seja por razões de segurança, os contratos impõem restrição de uso econômico da terra pelos agricultores e sem nenhuma compensação pelos lucros cessantes. Os agricultores são iludidos com promessas de ganho real mensal e imediato que, na maioria das vezes, não se realiza como esperado. Inclusive, são impedidos de divulgar os termos dos contratos com seus pares. Estamos diante de um novo processo de expansão do capitalismo em nível global, nova fase da financeirização a partir das energias renováveis, que está forçando nova divisão da produção e do trabalho no campo, com modificação nas relações de produção agrárias e reconcentração fundiária. Para fazer uma analogia, estão transformando o nosso semiárido numa verdadeira "Serra Pelada dos ventos".

Em nossa opinião, o maior problema não está no licenciamento ambiental dos parques eólicos, posto na Resolução nº 462/2014 do Conama, que disciplinou o assunto. A despeito disso, o procedimento não pode ficar alheio aos efeitos desses empreendimentos, que têm causado uma espécie de gentrificação rural, com efeitos econômicos e sociais bastante nítidos, uma vez que o conceito de impacto ambiental também abarca o bem-estar da população e os desdobramentos sociais e econômicos [6]. Contudo, o entrave está mesmo no modelo de negociação permitido, particularmente nos seus desdobramentos no campo do direito da energia e no regime jurídico que envolve a política energética. Com efeito, nenhuma política ambiental ou energética pode renegar o viés social a um segundo plano.

Do ponto de vista geral, tudo passa por rediscutir a atual política econômica e ambiental a partir de uma perspectiva soberana, popular e participativa, bem como de sistemas alternativos de forças produtivas, autônomos e socialmente sustentáveis de geração de energia elétrica eólica. Especificamente, é fundamental mudar o marco regulatório dos contratos de cessão de uso da terra para a instalação dos parques eólicos. Particularmente em relação aos contratos de arrendamento, estes foram regulados pelo Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1965) em uma época em que os pequenos agricultores eram meros arrendatários, em uma situação desequilibrada face aos proprietários de terra. O intuito do Estatuto da Terra foi proteger os vulneráveis diante de situações de desequilíbrio e de abuso. O problema é que a expansão dos parques eólicos no semiárido está sendo feita por esse marco jurídico, notadamente pelo seu Decreto nº 59.566/1966. Se considerarmos que são as grandes empresas de energia eólica que figuram como arrendatárias, assiste-se a uma inversão na relação jurídica original pensada pelo estatuto. Os arrendadores de terras, no atual contexto, são os agricultores, que são a parte mais fraca da relação, mas estão sendo tratados como a mais forte, e as empresas de energia eólica estão se aproveitando do Estatuto da Terra, para aprofundar o desequilíbrio contratual.

O marco jurídico que regula a relação contratual entre agricultores e empresas de energia eólica para a instalação de parques eólicos precisa ser repensado e alterado com urgência. É preciso corrigir o desequilíbrio diante do impacto das revoluções tecnológicas nas forças produtivas do capitalismo no campo. As empresas precisam da terra, por enquanto, apenas para a fixação dos aerogeradores para transformar a força dos ventos em eletricidade, mas o ganho que elas auferem com a venda da energia é infinitamente maior que qualquer benefício pago aos arrendadores-agricultores. Estes ficam apenas com uma ínfima parte da renda da terra. A redução das desigualdades regionais e sociais, princípio da ordem econômica previsto no inciso VII do artigo 170 da Lei Fundamental, também deve ser preocupação da Aneel e do MME. Se, na política de biodiesel (também uma energia renovável), o Ministério da Agricultura demonstra uma preocupação com a inserção de agricultores familiares e da produção agrícola do Norte e Nordeste [7], não há razões para a energia eólica não demonstrar a mesma sensibilidade.

Faz-se necessário estabelecer uma regulação do setor que considere os modos de viver e de fazer dessa população, buscando o equilíbrio negocial. Nesse contexto, os contratos de arrendamento devem sair do campo do direito privado para o do direito público, de forma a limitar a autonomia da vontade dos contratantes, particularmente das empresas estrangeiras, em impor cláusulas que comprometam a situação dos arrendadores-agricultores. A direção da limitação desta autonomia da vontade deve ser, principalmente, de: 1) impedir a celebração de contratos por prazo longo e com cláusula de renovação automática, inclusive a extensiva aos herdeiros. Os prazos não deveriam exceder a 36 meses, não deve ser permitida a cláusula automática de renovação e nem multas rescisórias excessivas; 2) vincular a contrapartida da empresa pelo uso da terra do agricultor a um percentual de pagamento mensal pelo comércio da energia elétrica sobre a renda da venda da eletricidade obtida por cada aerogerador, além de um piso mínimo fixo, e com o direito à rescisão automática pelo agricultor, sem multa, à custa da empresa, caso estes valores venham a se tornar insuficientes para a sua mantença, obrigando a empresa à negociação e ao reajuste permanente da remuneração pelo uso da terra [8]; 3) indenização por lucros cessantes, decorrentes das restrições impostas ao uso da terra, aos agricultores, enquanto durar o contrato; 4) ampla publicidade dos contratos, com divulgação prévia das suas cláusulas em órgãos competentes e com acesso público para consulta; 5) obrigatoriedade da mediação de sindicatos de trabalhadores rurais e de associações de agricultores na celebração dos contratos com as empresas estrangeiras.

* Este artigo tem apoio do Edital de Produtividade – Chamada Interna Produtividade em Pesquisa (PROPESQ/PRPG/UFPB nº 03/2020).


[1] GOMES, Luiz Henrique. Investimentos na matriz eólica superam 187,1 bi na última década. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 jul. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mpme/2021/07/investimentos-na-matriz-eolica-superam-r-1871-bi-na-ultima-decada.shtml. Acesso em 17 out. 2021.

[3] HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 121-133.

[4] TRALDI, Mariana. Acumulação por despossessão: a privatização dos ventos para a produção de energia eólica no semiárido brasileiro. 2019. Tese (Doutorado em Geografia) — Instituto de Geociências. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/335160. Acesso em: 20 ago. 2020.

[6] Sobre o assunto, o art. 1º da Resolução n. 001/1986 do CONAMA dispõe que "Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: I – a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II – as atividades sociais e econômicas; III – a biota; IV – as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V – a qualidade dos recursos ambientais". Em sentido parecido, o inciso III do artigo 3º da Lei n. 6.938/1981 estabelece que poluição é "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos".

[7] O Decreto nº 10.527/2020, na esteira do Decreto nº 5.297/2004 (revogado por aquele), disciplinou o "Selo Combustível Social", que é o conjunto de medidas específicas que visam incentivar a inclusão social da agricultura nessa cadeia produtiva. Além da desoneração tributária, o selo é pré-requisito para a concorrência em leilões de compra de biodiesel da ANP e para a obtenção de melhores linhas de financiamento junto ao BNDES e a outras instituições financeiras por parte de empresas ou projetos de produção de biodiesel. No entanto, para obter tais benesses, é preciso adquirir percentuais mínimos de matéria-prima oriunda da agricultura familiar, assumir compromisso de adquirir produção com preços previamente determinados e cumprir obrigações de prestações de serviço, a exemplo da assistência técnica aos agricultores.

[8] Na Galícia/Espanha, por exemplo, em alguns casos, o percentual de remuneração chega 4%, mas por ano, o que é um dos motivos de vários questionamentos e protestos de agricultores (SIMÓN, Xavier; MONTERO, Maria; COPENA, Damián; PÉREZ-NEIRA, Davi. Guia para o incremento do valor social e do valor econômico da enerxia eólica nas comunidades rurais. Vigo: Observatorio Eolico de Galicia, 2021. Disponível em: http://observatorio.eolico.webs.uvigo.es/wp-content/uploads/2021/02/Guia-eolica-OEGA.pdf. Acesso em: 12 set. 2021).

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