Trabalho contemporâneo

Indignai-vos, pois não, não é normal!

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26 de outubro de 2021, 15h36

Semana passada assistimos ao julgamento da ADI 5766 pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a questão da constitucionalidade dos dispositivos da reforma trabalhista que autorizavam a cobrança de honorários advocatícios e periciais dos beneficiários de gratuidade de Justiça.

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A discussão técnica é perfeitamente compreensível, pois os trechos tidos por inconstitucionais partiam da presunção de que obter sucesso em uma demanda trabalhista automaticamente retiraria a condição de miserabilidade do litigante, o que sabemos não ser uma verdade absoluta.

Há casos em que um trabalhador reclamante consegue, sim, uma condenação milionária, ou na casa das dezenas de milhares de reais, o que pode alterar sua condição financeira. A regra, entretanto, é de ações de valores que não causam tal impacto na vida de uma pessoa.

A questão, portanto, que vale comentar é a possível consequência dessa alteração, já que antes da reforma trabalhista o panorama da litigiosidade, além de quantitativamente alarmante, igualmente assustava sob a ótica qualitativa. Como já abordei neste espaço, era a época do "se colar, colou".

Passamos décadas normalizando situações que, a rigor, precisam causar indignação a todos da comunidade jurídica. Padecemos de um mal que atinge toda a sociedade e, pior do que se poderia imaginar, alcança todas as áreas da convivência humana: a normalização do errado.

Não é normal postular aquilo que não é seu. Criar uma demanda para tentar obter algo que não lhe pertence traduz uma falha de caráter que remonta à educação familiar. Desde que possa me lembrar, meus pais sempre ensinaram que não devo ficar com o que não é meu. Ainda que fosse um troco errado a maior, uma conta cobrada a menor, simplesmente não está certo se aproveitar da situação. Jamais conseguiria ter paz de espírito ao ficar com algo que não me pertence, ainda que não tivesse provocado a situação.

Normalizar condutas erradas parece ser um mal do século, decorrente da dificuldade que as pessoas hoje possuem em enfrentar adversidades, superando obstáculos éticos para obter uma Justiça enviesada por um atalho imoral.

E o problema começa efetivamente em casa. Da mesma forma que a geração atual não consegue suportar reveses, optando pelo suicídio quando a vida lhes cobra a dívida da ingratidão, os que estão na condição de educadores devem estar cientes da responsabilidade que lhes assoma, pois nada é mais confortável e fácil que evitar conflitos através de concessões pseudoamorosas.

Afagar, ao invés de educar, produz seres humanos que não conseguem sequer entender os limites mínimos da convivência solidária, ensimesmados que ficam num círculo egoísta alimentado por um mundo virtual que explora o politicamente correto.

E a área trabalhista precisa acordar para não continuar no mesmo erro. Usar o discurso de minoria oprimida para permitir litigância de má-fé, aceitar desvios de comportamento por uma tolerância social, ainda mais de forma consciente, é ser cúmplice no chafurdar do aproveitamento de uma condição de vulnerabilidade.

Da mesma forma, não é normal apresentar argumentos de defesa falsos, forjar situações processuais favoráveis, procrastinar o cumprimento de obrigações, deixar de cumprir determinações judiciais, evadir-se no momento da cobrança, impedindo a satisfação do crédito de outrem, ainda mais de natureza alimentar.

Como atores diretamente ligados ao exercício de um poder, nós da comunidade jurídica trabalhista precisamos resgatar a indignação pelos desvios éticos que permeiam nosso cotidiano.

Da há muito, como magistrado, sinto que meu principal papel não é de ser um grande conhecedor de temas complexos do Direito, para sanar controvérsias jurídicas, mas de mero investigador que precisa estar atento na descoberta do mentiroso.

O bom juiz, portanto, deve empregar todos os esforços para tentar descobrir quais das narrativas das partes não correspondem à verdade. Não se trata de uma dúvida legítima sobre um fato, mas mera alegação contrariada frontalmente pela outra parte, ou seja, um dos dois mente. Quando não ambos.

Não há possibilidade de avançarmos em um sistema minimamente racional quando a amostra prática denota desvios comportamentais que, de tanto se repetirem, acabaram sendo normalizados. E todos que utilizam corretamente o Poder Judiciário acabam pagando pelos erros alheios, às vezes literalmente.

A sinalização feita com o julgamento do STF sobre gratuidade, portanto, jamais pode ser interpretada como um retorno ao estado de irresponsabilidade que permeava a Justiça do Trabalho antes da reforma trabalhista.

O beneficiário de gratuidade de Justiça deve, sim, ser responsabilizado pelo custo provocado indevidamente ao erário e à outra parte, em caso de sucumbência, analisando-se, no caso concreto, se no momento da cobrança o estado de miserabilidade permanece ou se houve alguma modificação, o que deve ser provado pela parte interessada.

Nada impede, aliás, recomenda, que o próprio sucesso na demanda, ainda que parcial, possa ser justificador da mudança da condição financeira do beneficiário da gratuidade, sob pena de novamente imunizarmos por um argumento socialmente relevante o exercício de uma injustiça.

O principal pilar das alterações introduzidas no Processo do Trabalho nos últimos anos, a responsabilidade, não pode ser considerado abalado, mas aprimorado, pela decisão do STF. A responsabilização de todos os atores sociais envolvidos numa demanda trabalhista, incluindo a própria magistratura, constitui uma conquista civilizatória que não pode retroceder.

Afinal de contas, como bem lembrado pelo ministro Barroso durante o julgamento da ADI 5.766, gratuidade é uma falácia, pois sempre alguém assume o custo pelo exercício de um direito. No caso da Justiça do Trabalho, pagamos todos nós, já que dinheiro público não passa de dinheiro arrecadado dos cidadãos, ricos e pobres.

Indignai-vos, assim, com toda sorte de má-fé, pois não, não é normal.

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  • Brave

    é juiz do Trabalho no TRT-RJ, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e diretor da escola associativa da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT).

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