Opinião

Precisamos falar sobre a audiência de instrução virtual

Autores

  • Bruno Ponich Ruzon

    é mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina associado do Idec e advogado.

  • Thiago Caversan Antunes

    é doutor em Direito pela Universidade de Marília mestre em Direito Negocial e Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina e sócio da Caversan Antunes Advogados Associados.

26 de outubro de 2021, 6h33

Enquanto redigimos este texto vivemos a pandemia do coronavírus, tendo sido registrado neste dia (20 de outubro) 373 óbitos no Brasil. No entanto, já se vê um bom horizonte, pois contamos com 50% de nossa população totalmente vacinada, e vários setores da economia funcionam com plena capacidade. Comércio, escolas, transporte público etc. retomam aos poucos sua funcionalidade. Nessas circunstâncias, parece viável e mesmo necessário refletir detidamente sobre questões fundamentais que foram, até o presente momento, pouco debatidas; justamente por uma espécie de pacto implícito de todos contra o coronavírus e suas consequências mais deletérias, nos mais diversos aspectos. Parece que o Estado democrático de Direito começa a retomar o seu espaço neste país, que esteve temporariamente em uma espécie de "Estado do coronavírus", no qual regras constitucionais ficaram de lado para superar o problema que nos afligia com tanto impacto — para dar um único exemplo, tivemos a suspensão da validade dos concursos públicos, o que se deu, salvo melhor juízo, em flagrante afronta às regras do artigo 37, III e IV, da Constituição Federal.

O objeto de reflexão neste texto é a (in)compatibilidade da audiência de instrução através de videoconferência (aquilo que se denominou como audiência virtual) em relação ao sistema constitucional de garantias vigente. Nosso espaço de fala é o Processo Civil, mas acreditamos que nossas considerações possam ser aproveitadas, quiçá bem aproveitadas, pelo Processo do Trabalho ou pelo Processo Penal.

Algumas premissas devem ser estabelecidas para que se compreenda essa (in)compatibilidade, em respeito a um método desenvolvido de maneira lógica. São elas:

a) Premissa um: a prova oral é tão relevante quanto qualquer outra prova e precisa ser produzida com o devido rigor constitucional e legal. Pode parecer uma premissa óbvia, mas na verdade existem muitos advogados e juízes que pensam na prova oral como um estorvo, algo que apenas atravanca a marcha processual, sobretudo em algumas causas cíveis, ou de cunho empresarial;

b) Premissa dois: as regras para a produção de uma prova devem ser respeitadas e são fundamentais para que se configure o respeito ao devido processo legal, em sua acepção mais contemporânea, inclusive como direito fundamental de primeira dimensão das pessoas contra eventual arbítrio do Estado no exercício da função jurisdicional;

c) Premissa três: a prática de atos processuais eletronicamente e por videoconferência é, em princípio, compatível com o sistema procedimental vigente (artigo 193, 236, §6º, e 453, §1º, CPC), e não há aqui qualquer espírito contrário aos meios eletrônicos, ou qualquer nostalgia pela prática de atos físicos e presenciais.

Pois bem, para a produção da prova oral existem algumas regras — que para alguns tem até mesmo status de princípio — que visam a assegurar uma melhor qualidade do depoimento tomado, sobretudo no que tange à sua idoneidade. Para quem já leu um pouco sobre psicologia, sobretudo sobre a memória humana, não é difícil vislumbrar as razões além do Direito para a observância de tais regras.

O depoente, seja a parte, seja uma testemunha ou informante, não pode acompanhar as inquirições anteriores (artigo 385, §2º, CPC). Com efeito, se o réu já ouviu o depoimento do autor encontra-se em extrema vantagem, pois poderá adaptar suas respostas para dar maior credibilidade a sua fala. Se as testemunhas de defesa já tiverem ouvido o que disseram as testemunhas autorais o mesmo quadro de vantagem se apresenta. Ressalte-se que essa influência e adaptação ocorrem não só no campo consciente, mas também no inconsciente, ou seja, algo que sequer é racionalmente percebido pelo sujeito.

Além disso, é importante evitar o contato entre quem já depôs e quem ainda deporá, justamente para evitar a troca de informações e, assim, assegurar um depoimento mais idôneo (artigo 456, CPC). É o que se chama de incomunicabilidade das testemunhas. De fato, a segunda testemunha, se for devidamente informada, tenderá a confirmar o depoimento da primeira, e distorcer ou evitar respostas que fossem contraditórias. Mais uma vez é importante destacar que isso ocorre mesmo inconscientemente, isto é, independentemente de uma eventual má-fé deliberada do depoente — mas em evidente prejuízo à qualidade da prova que, afinal, influenciará a formação de convicção por parte do julgador.

Por fim, deve-se buscar a autenticidade dos depoimentos e por isso se veda o uso de escritos preparados, permitindo-se apenas a consulta a notas breves (artigo 387, CPC).

Então, diante desse cenário normativo, por que a audiência de instrução virtual é incompatível com o nosso sistema?

a) Ausência de controle pela autoridade judicial
A relação das partes com o juiz é de certo grau de subordinação. O juiz, afinal, é quem profere as decisões, e isso inclusive porque se encontra investido da função jurisdicional. O juiz, assim, representa o próprio Estado e, nesse sentido, está imbuído de autoridade que inclui poder para efetivamente "controlar" a audiência de instrução (artigo 360, CPC). É uma função sua que não pode ser delegada ou transferida aos advogados empenhados na causa. As testemunhas, de maneira semelhante, também estão submetidas ao poder institucional do magistrado no contexto da audiência de instrução.

A relação da parte com o advogado não é de subordinação. Pelo contrário, respeitada a independência do advogado (artigo 7º, I, Lei 8.906/94), o fato é que o cliente dá a palavra final, pois, em última análise, é ele o titular do direito em litígio. Quantas vezes o advogado recomenda não celebrar um acordo, mas o cliente insiste na transação — ou o contrário. Em suma, o advogado não tem exatamente controle sobre os atos de seu cliente, pois não exerce sobre ele poder algum. Sobretudo advogados em começo de carreira, neste mercado com excesso de oferta de serviços advocatícios, encontram-se em uma delicada posição. Com ainda mais evidência, é possível inferir que o advogado não exerce poder e muito menos controla testemunha alguma.

Assim, não há como impor ao advogado a adoção de medidas que, aparentemente, exigiriam um poder próprio do magistrado, investido que está da autoridade própria à atividade jurisdicional. Embora possa eventualmente encaminhar seu cliente e as testemunhas para um ambiente apartado (quando há condições para tanto, o que, conforme se verá adiante, na realidade muitas vezes não ocorre), não tem como mantê-las lá e muito menos tem como evitar o contato de quem já depôs com quem ainda deporá.

Em outros termos, em uma audiência de instrução o poder do magistrado é fundamental (artigo 139, VII, CPC), mas ele inexiste na via remota. Esse é um ponto muito importante, não há controle algum da autoridade judicial acerca das circunstâncias correlatas à produção probatória na audiência virtual.

b) Ausência de estrutura física e humana
Além dessa deficiência pela falta de poder e efetivo controle jurisdicional contemporâneo do ato (pois partes e testemunhas não se submetem ao advogado, que não exerce qualquer poder sobre elas), o fato é que a advocacia brasileira não conta com estrutura física e humana minimamente compatível com a estrutura física e humana disponibilizada nos fóruns brasileiros.

Obviamente existem grandes escritórios privados com estruturas muito mais avançadas do que a própria estrutura pública, mas uma diretriz importante é sempre pensar pela regra, e não pela exceção. Há mais de 1,1 milhão de advogados espalhados nos 5.570 municípios do nosso país, e a maior parte deles atua em pequenos escritórios. Aliás, apenas para ilustrar essa realidade, a OAB do Paraná tem um programa no qual disponibiliza escritórios compartilhados, justamente para atender a essa demanda por estrutura de uma grande gama de advogados.

Ou seja, muitos advogados não têm condições materiais mínimas para atender simultaneamente clientes e testemunhas, e muito menos de assegurar o cumprimento das regras procedimentais já mencionadas (artigo 385, §2º, 387, 456, CPC), simplesmente porque não têm estrutura física minimamente adequada para tanto.

Nesse particular, ademais, vale recordar que, segundo a sistemática vigente, cada parte tem assegurado o direito de arrolar até dez testemunhas (artigo 357, §6º, CPC), sendo mais do que óbvio que tal direito não pode sofrer limitação por eventual insuficiência estrutural do escritório do advogado, por um lado, mas também igualmente evidente que à parte adversa também não podem ser impingidos os prejuízos decorrentes da produção da prova sem garantias mínimas de efetiva incomunicabilidade.

Ainda em relação à estrutura física, há, na realidade, uma disparidade gigantesca no que tange a equipamentos e a banda de internet dos fóruns e de parte muito significativa (senão, mesmo, da maioria) dos escritórios de advocacia.

Mas o ponto mais sensível talvez seja a ausência de estrutura humana. Mesmo escritórios de médio porte não contam com um profissional fixo especializado em tecnologia da informação. O advogado, então, se vê na necessidade de resolver problemas técnicos, sem que tenha condições minimamente adequadas, inclusive de formação específica para tanto. Não só. O juiz conta com todo um aparato para a realização de audiências, o que inclui seus assessores, servidores, pessoas que estão submetidas a sua autoridade e o auxiliam a assegurar o cumprimento das regras processuais. A maioria dos advogados não tem toda essa estrutura humana de auxílio.

Mesmo para um advogado sinceramente empenhado e eticamente comprometido é, assim, na prática, muito difícil assegurar o cumprimento das regras processuais para a produção da prova oral (artigo 385, §2º, 387, 456, CPC), enquanto não conta com estrutura física e humana minimamente adequadas para isso — até porque esse escopo foge completamente das finalidades para as quais concebidas tais estruturas privadas.

Veja, não se ignora que a boa-fé e mesmo o espírito colaborativo são imposições legais, mas certas atribuições são do Estado e não cabe ao advogado fazer as vezes. Fechar os olhos para a realidade, supondo um romântico mundo cor-de-rosa em que os litigantes dão as mãos e deixam seus interesses de lado em busca do bem comum é uma grande ilusão — e parece contrariar obviamente o próprio modelo constitucional de relação jurídica processual desenvolvida em… Contraditório (artigo 5º, LV, CF)!

Obviamente, em causas que admitam autocomposição, se todas as partes concordarem com a realização da audiência de instrução pela modalidade virtual, não haverá óbice a tanto, por força da legalidade, em princípio, dos negócios jurídicos processuais (artigo 190, CPC). Mas nas demais situações não pode pairar dúvida alguma acerca do direito do jurisdicionado à realização da audiência de instrução presencial, com o controle da autoridade jurisdicional e com a estrutura física e humana mantida pelo Estado.

Registre-se aqui a existência de opiniões contrárias, que reputam compatível a audiência de instrução virtual com as regras processuais vigentes, como, se vê, por exemplo do texto "Audiência de instrução virtual em tempos de epidemia", de Luiz Fernando Casagrande Pereira e Caio César Bueno Schinemann, de 12 de maio de 2020.

Não se nega, aliás, que as soluções que se precisou adotar provisoriamente em tempos de pandemia podem, inclusive, significar grandes avanços definitivos rumo a um acesso mais efetivo e qualificado à jurisdição, por força mesmo das premissas anteriormente firmadas neste texto — o que ocorre, por exemplo, com a possibilidade de sustentação oral exatamente por videoconferência, especialmente para partes representadas por advogados que se encontram muitas vezes a centenas de quilômetros das sedes dos tribunais.

De toda forma, especificamente no que diz respeito às audiências de instrução em que se pretende a tomada de depoimentos de partes e testemunhas, diante das premissas anteriormente expostas e considerando a importante função do respeito ao devido processo legal como instituição de garantia, que se aplica também, evidentemente, ao Processo Civil, parece possível afirmar a urgência da retomada das audiências de instrução presenciais, ainda que com as cautelas ainda recomendadas neste momento da pandemia, de maneira a restabelecer a estrita constitucionalidade e legalidade da produção da prova oral, mitigada até o presente momento. É nesse sentido que se saúda a posição da OAB nacional ao pleitear a retomada da atividade presencial dos tribunais.

Autores

  • é mestre em Direito Negocial, especialista em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina e sócio da Felizardo e Ruzon Advogados Associados.

  • é doutor em Direito pela Universidade de Marília, mestre em Direito Negocial e Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina e sócio da Caversan Antunes Advogados Associados.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!