Opinião

Bloqueio de conteúdos e perfis nas redes sociais: censura privada na internet?

Autor

  • Gustavo Ferreira Santos

    é advogado professor de Direito Constitucional e do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco membro do Grupo de Pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC) e do Instituto Publius e pesquisador PQ 2-CNPq.

26 de outubro de 2021, 20h34

Um tema que é recorrente nos debates sobre as redes sociais é o temor, que alguns expressam, de que as redes sociais virem órgãos censores, retirando conteúdos e perfis de usuários. Isso ficou bem evidente, por exemplo, quando algumas redes baniram Donald Trump, após o episódio do ataque ao Capitólio. Nesta semana, Facebook e Instagram retiraram a live do presidente Bolsonaro na qual ele fez uma falsa associação entre vacinação e suscetibilidade à Aids. Críticos das redes sociais vêm, nesses atos, ataques à liberdade de expressão.

Mas isso tudo não passa de uma distorção do debate, que atinge, principalmente, o conceito de liberdade.

O que as redes fazem, em tais casos, é moderação de conteúdo, algo típico da internet, desde sempre. Quem já teve blog sabe que havia configurações de moderação. Você podia autorizar que os comentários dos leitores fossem ao ar imediatamente, podendo o responsável pelo blog retirar depois conteúdos que considerasse ofensivos, ou podia condicionar a publicação à sua leitura prévia e autorização. Assim funcionam as páginas da instituições públicas ou privadas.

Seria razoável, em nome da liberdade de expressão, deixar no ar um conteúdo de um comentarista de uma página pregando o assassinato de alguém ou incentivando o suicídio? É evidente que não. Da mesma forma que as páginas de instituições têm suas regras para a publicação de comentários, as redes sociais têm regras para seus usuários. Quem faz um perfil em uma rede social aceita os termos de uso.

Você acha as redes sociais ambientes insalubres? Você nem consegue imaginar o que elas seriam sem moderação de conteúdo. Essa atividade mantém um clima razoavelmente saudável nas redes. Todos os dias são impedidos compartilhamentos de cenas chocantes, como vídeos de decapitações, estupros e suicídios.

O primeiro filtro é feito por robôs, programados para identificar os conteúdos mais violentos. Mas, ainda, há um filtro humano. Essas pessoas são submetidas a imagens chocantes, com a missão de rapidamente bloquear os conteúdos. Uma pessoa responsável por moderação de conteúdo no YouTube processou, na Califórnia, Estados Unidos, a plataforma alegando ter desenvolvido ansiedade severa e estresse pós-traumático quando, no treinamento, teve de ver cenas de um crânio aberto esmagado sendo comido por pessoas, uma mulher decapitada por um cartel, a cabeça de uma pessoa sendo atropelada por um tanque, suicídios e automutilações, entre outras [1].

As redes tentam não interferir no conteúdo dos discursos, sendo pressionadas, no entanto, por terem sido omissas em momentos importantes, que trouxeram sequelas para as sociedades. Esse foi o caso do plebiscito do Brexit, no Reino Unido, e da eleição de Trump, nos EUA, em 2016, das eleições do Quênia, em 2017, do Brasil, em 2018, e da Índia, em 2019, onde os processos decisórios foram invadidos por mentiras intencionalmente orientadas a públicos específicos, que deturparam os resultados das votações. Também há vários casos de discursos de ódio contra minorias associados a ataques terroristas, como os ataques a uma sinagoga, em Pittsburg, EUA, em 2018 [2], ou a uma mesquita em Christchurch, Nova Zelândia, em 2019 [3], ou, ainda, ataques a minorias islâmicas na Índia, nos últimos anos [4].

Palavras podem ser veículos para diversas ações violentas ou perigosas. Nem toda expressão está acolhida pela liberdade de expressão. A legislação penal está cheia de crimes que são cometidos pela palavra. Não posso enganar alguém, vendendo algo que não tenho. Não posso instigar uma pessoa a se matar. Não posso mentir sobre uma pessoa atribuindo-lhe fato que viole sua honra. Da mesma forma, há limitações que protegem a sociedade, como, por exemplo, a repressão ao discurso do ódio que estigmatiza minorias e fomentam contra elas a discriminação e a violência. Isso está ressalvado nos tratados internacionais que protegem a liberdade de expressão.

Uma diferença fundamental entre a ação de moderação de conteúdo nas redes sociais e a censura clássica, estatal, é que ficamos sabendo logo dessas decisões de moderação de conteúdo, o que viabiliza um controle social maior. Há, nas próprias plataformas, espaço para que os que se sentem prejudicados apresentem defesa.

As duas democracias constitucionais que já criaram leis específicas contra a propagação de fake news e de discurso do ódio na internet, França e Alemanha, respectivamente, optaram por aumentar a pressão sobre as redes sociais, formalizando uma obrigação de retirada de postagens violadoras de normas jurídicas. Nos dois casos, os responsáveis pelas postagens terão garantido o devido processo legal e poderão apresentar defesa, mostrando que seus conteúdos não são ilegais, podendo serem os bloqueios levantados.

Não é razoável, em nome da liberdade de expressão, defender o "direito fundamental de mentir" ou o "direito fundamental de ofender". Quando Trump instigou seus apoiadores contra o Congresso, que discutia a legitimidade das eleições, fomentou violência, que levou a mortes. Quando o presidente Bolsonaro insinua que pessoas vacinadas estão mais suscetíveis à Aids, desincentiva pessoas a se vacinar e leva a mortes. Moderar tais conteúdos é uma ação importante para a manutenção da democracia constitucional, sob ataque severo nos últimos anos.

O que a sociedade precisa fazer é exigir que tais empresas tenham regras mais claras e práticas de moderação mais transparentes, que estejam submetidas à fiscalização por instituições independentes. O reconhecimento da necessidade da moderação não nos leva a aceitar qualquer tipo de prática. Há a possibilidade de nos depararmos com erros graves ou de manipulações dos instrumentos de moderação. Vamos conviver com riscos. Mas não podemos esquecer que, para além do nosso poder de denúncia à sociedade, vivemos em uma democracia constitucional na qual há universalidade de jurisdição, ou seja, que podemos levar ao Judiciário demandas contra tais políticas, quando entendermos que elas violam nossos direitos.

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    é advogado, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, membro do Instituto Publius e pesquisador do Grupo Recife Estudos Constitucionais (REC).

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