Opinião

O problema não resolvido na 'nova' Lei de Improbidade Administrativa

Autor

  • Tiago do Carmo Martins

    é juiz federal do TRF-4 doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2016) diretor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) professor do curso regular da Esmafesc na disciplina de Direito Administrativo e autor dos livros "Anotações à Lei de Improbidade Administrativa" (Editora Verbo Jurídico 2012 e 2017) e "Improbidade Administrativa: Análise da Lei 8.429/92 à luz da doutrina e da jurisprudência atualizada segundo a Lei 14.230/2021" (Editora Alteridade 2022).

26 de outubro de 2021, 15h13

O Congresso Nacional aprovou sensíveis alterações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), através do PL 10.887/2018, iniciado na Câmara, rotulado no senado como PL 2.505/2021. Embora, formalmente, a LIA seja a mesma, com o mesmo número, inclusive, as alterações foram tantas e tão profundas que é possível dizer que haverá, agora, uma "nova" Lei de Improbidade [1].

Por exemplo, e apenas para ficar nos mais eloquentes:

1) Deixa de existir a improbidade culposa por dano ao erário ("Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa…");

2) Surge um requisito novo para a configuração do elemento volitivo, o dolo específico ("Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente");

3) As hipóteses de improbidade por violação de princípios passam a vir enumeradas de modo taxativo ("Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas");

4) Nesses casos, apenas as sanções de multa e proibição de contratar com o poder público são aplicáveis, passando a ser inviável impor as penas de suspensão de direitos políticos e perda do cargo, emprego ou função pública (artigo 12, III);

5) Apenas o Ministério Público poderá propor a ação por improbidade, excluída a legitimidade concorrente da pessoa jurídica lesada ("A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público");

6) A descrição fática trazida na inicial deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos e será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo, sob pena de rejeição liminar, sendo que, após a réplica, o juiz deve fixar a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor;

7) Criação de novas nulidades, que deverão ser pronunciadas, quando o juiz condenar o réu por tipo diverso daquele definido na petição inicial ou sem a produção das provas por ele tempestivamente especificadas.

8) É estabelecido um novo regime prescricional, com prazo de oito anos da data do fato, independentemente da natureza do vínculo mantido pelo agente com o Estado; e

9) São criados marcos interruptivos da prescrição e a prescrição intercorrente, que impõe que entre a inicial e a sentença não decorra prazo superior a quatro anos (a média de tempo entre o ajuizamento e o julgamento é de quatro anos e três meses e em 25% dos casos o julgamento só inicia quando já passados mais de cinco anos [2]).

Contudo, não obstante o esforço empreendido para tão profundas alterações, das quais as acima destacadas são apenas uma amostra, pois a totalidade não é comporta nos limites deste ensaio, não houve energia ou ambiente para enfrentar o principal problema do regime legal de proteção à probidade: a baixíssima recuperação de ativos desviados do Estado por ímprobos.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, após tramitarem por longo tempo e serem, finalmente, executadas, quase 90% das ações não resulta em um real sequer em benefício para o erário. A cada dez ações, nove não trazem nenhum ressarcimento em favor do ente lesado [3], mesmo que 63,8% das ações por improbidade terminem com julgamento de procedência ou parcial procedência [4]; entre um universo de 18,7 mil condenações nos últimos dez anos [5].

Diante desse cenário, seria natural que o Parlamento tivesse cuidado de aprimorar um instrumento essencial para a recuperação de ativos desviados do Estado, a indisponibilidade de bens. No entanto, embora a medida tenha sido objeto de alterações, estas não parecem ter aperfeiçoado o regime anterior.

Ao contrário, para que a indisponibilidade venha a ser decretada, será necessária a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo. Assim, para que a medida tenha lugar, e tendo em conta que, geralmente, tais pedidos são feitos liminarmente, ou mesmo antes do ajuizamento da ação principal, o Ministério Público terá de comprovar, sumariamente, que o réu está dilapidando ou ocultando seu patrimônio, a fim de frustrar eventual condenação futura.

Note-se que essa alteração vai de encontro a um dos critérios que basearam o anteprojeto original, desenhado por eminente comissão de juristas, presidida pelo ministro Mauro Campbell, do STJ. Naquele estudo, que se tornou o texto original do PL 10.887/2018, se tinha o intuito de adaptar o texto da LIA a decisões consolidadas pelos tribunais. E a desnecessidade de demonstrar risco concreto de dilapidação ou ocultação patrimonial era um desses temas já pacificados pelo Superior Tribunal de Justiça [6].

Desse modo, distanciando-se da sugestão dos especialistas, o texto afinal aprovado pelo Congresso termina por trazer requisito adicional e de difícil cumprimento prático, o que não vai contribuir para incrementar a recuperação de valores desviados do Estado.

Além disso, a norma faz regra geral a necessidade de oitiva do acusado antes da decretação da cautelar, só podendo ser excepcionada quando o contraditório prévio puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida. Então, cria-se a seguinte situação: a indisponibilidade só é cabível se houver risco de dilapidação de patrimônio, mas, mesmo assim, antes de decretá-la, o réu deverá ser avisado dessa possibilidade. A incongruência é evidente e há grande risco de que, decretada a indisponibilidade sem contraditório prévio, abra-se flanco para intermináveis discussões, com sério risco à efetividade da cautelar.

Há outros problemas, ainda. Outra vez se distanciando do propósito de adaptar a norma ao entendimento dos tribunais, o texto aprovado circunscreve o objeto da indisponibilidade ao ressarcimento do dano e à devolução do proveito ilícito, excluindo a garantia de eventual multa civil a ser aplicada, tema já pacificado pelo STJ [7].

A redação do artigo 16, §10 ("A indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita") é particularmente preocupante, pois abre a possibilidade de que valores decorrentes de propina, se empregados no desempenho de atividade legal, possam ficar a salvo da indisponibilidade.

O parágrafo 5º, por falta de clareza, traz dificuldade adicional. Ao dizer que, em caso de litisconsórcio passivo, o montante indisponibilizado não poderá superar o montante indicado na petição inicial como dano ao erário ou como enriquecimento ilícito, deixa dúvida do momento em que essa aferição deva ser feita: quando o juiz ordena o bloqueio ou quando este se efetiva. A vingar a primeira opção, ao se deparar com um dano estimado de R$ 100 mil atribuído a dois agentes, o juiz deverá ordenar a indisponibilidade R$ 50 mil de cada acusado. Se um tiver patrimônio e o outro não, o dano fica a descoberto. Melhor seria que a lei tivesse esclarecido que eventual excesso seria liberado após as constrições, pois assim seria preservada a natureza solidária da obrigação de reparar o dano ao erário [8] e o imperativo de ressarcimento integral do dano.

Com relação à indisponibilidade de pessoa jurídica privada, associada ao agente público, a lei cria outro problema desnecessário: a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Ora, se o terceiro dispõe de bem ou valor que decorre do ato de improbidade, está inserido na cadeia causal do ato, como agente privado que induz ou concorre para o ato (artigo 3º), razão bastante para o colocar no polo passivo da ação, sem qualquer necessidade do incidente em questão.

A disposição do parágrafo 11 também causa espécie, pois inverte a ordem de preferência estabelecida no artigo 835 do CPC, estabelecendo, para a ação de improbidade, uma regra especial, em que bens menos líquidos devem ser indisponibilizados antes dos mais líquidos.

Já o parágrafo 13 blinda valores de até 40 salários mínimos: "É vedada a decretação de indisponibilidade da quantia de até 40 (quarenta) salários mínimos depositados em caderneta de poupança, em outras aplicações financeiras ou em conta-corrente". Então, se alguém se enriquecer ilicitamente ou lesar o erário até esse teto, ou mesmo em valor maior, mas o reparta em investimento distintos, poderá invocar a proteção legal para não reparar o dano ou devolver o proveito ilícito. Um cenário nada alvissareiro e de todo contrastante com a moralidade e a necessidade de desfazimento dos efeitos do ilícito.

E o parágrafo seguinte arremata, outra vez contrariando a jurisprudência solidificada [9], para enunciar que é "vedada a decretação de indisponibilidade do bem de família do réu, salvo se comprovado que o imóvel seja fruto de vantagem patrimonial indevida".

O quadro narrado levanta dúvidas sobre a constitucionalidade das mudanças promovidas e enseja conclusão no sentido da inadequação e impertinência das alterações procedidas no regime de indisponibilidade de bens. O histórico problema da baixa recuperação de ativos drenados do erário só tende a se agravar com a "nova" Lei de Improbidade.

 

[1] Ao tempo da redação deste artigo, o prazo para sanção do PL ainda estava em curso.

[2] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 100.

[3] BRASIL. Câmara dos Deputados – Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei Nº 10.887, de 2018. Relatório Final. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2028078. Acesso em: 24/10/2021. 

[4] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 100.

[5] BRASIL. Câmara dos Deputados – Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei Nº 10.887, de 2018. Relatório Final. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2028078. Acesso em: 24/10/2021.

[6] Tema Repetitivo 701: É possível a decretação da "indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro."

[7] Tema Repetitivo 1055: É possível a inclusão do valor de eventual multa civil na medida de indisponibilidade de bens decretada na ação de improbidade administrativa, inclusive naquelas demandas ajuizadas com esteio na alegada prática de conduta prevista no artigo 11 da Lei 8.429/1992, tipificador da ofensa aos princípios nucleares administrativos.
 
[8] STJ, REsp 1837848/SC, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/03/2020, DJe 10/03/2020.
 
[9] STJ, AREsp 1573799/RN, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/03/2020, DJe 19/03/2020.

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    é juiz federal, doutorando, mestre em Ciência Jurídica pela UNIVALI (Universidade do Vale do Itajaí), diretor e professor de Direito Administrativo da ESMAFESC (Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina).

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