O problema não resolvido na 'nova' Lei de Improbidade Administrativa
26 de outubro de 2021, 15h13
O Congresso Nacional aprovou sensíveis alterações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), através do PL 10.887/2018, iniciado na Câmara, rotulado no senado como PL 2.505/2021. Embora, formalmente, a LIA seja a mesma, com o mesmo número, inclusive, as alterações foram tantas e tão profundas que é possível dizer que haverá, agora, uma "nova" Lei de Improbidade [1].
1) Deixa de existir a improbidade culposa por dano ao erário ("Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa…");
2) Surge um requisito novo para a configuração do elemento volitivo, o dolo específico ("Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente");
3) As hipóteses de improbidade por violação de princípios passam a vir enumeradas de modo taxativo ("Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas");
4) Nesses casos, apenas as sanções de multa e proibição de contratar com o poder público são aplicáveis, passando a ser inviável impor as penas de suspensão de direitos políticos e perda do cargo, emprego ou função pública (artigo 12, III);
5) Apenas o Ministério Público poderá propor a ação por improbidade, excluída a legitimidade concorrente da pessoa jurídica lesada ("A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público…");
6) A descrição fática trazida na inicial deverá individualizar a conduta do réu e apontar os elementos probatórios mínimos e será instruída com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo, sob pena de rejeição liminar, sendo que, após a réplica, o juiz deve fixar a tipificação do ato de improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor;
7) Criação de novas nulidades, que deverão ser pronunciadas, quando o juiz condenar o réu por tipo diverso daquele definido na petição inicial ou sem a produção das provas por ele tempestivamente especificadas.
8) É estabelecido um novo regime prescricional, com prazo de oito anos da data do fato, independentemente da natureza do vínculo mantido pelo agente com o Estado; e
9) São criados marcos interruptivos da prescrição e a prescrição intercorrente, que impõe que entre a inicial e a sentença não decorra prazo superior a quatro anos (a média de tempo entre o ajuizamento e o julgamento é de quatro anos e três meses e em 25% dos casos o julgamento só inicia quando já passados mais de cinco anos [2]).
Contudo, não obstante o esforço empreendido para tão profundas alterações, das quais as acima destacadas são apenas uma amostra, pois a totalidade não é comporta nos limites deste ensaio, não houve energia ou ambiente para enfrentar o principal problema do regime legal de proteção à probidade: a baixíssima recuperação de ativos desviados do Estado por ímprobos.
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, após tramitarem por longo tempo e serem, finalmente, executadas, quase 90% das ações não resulta em um real sequer em benefício para o erário. A cada dez ações, nove não trazem nenhum ressarcimento em favor do ente lesado [3], mesmo que 63,8% das ações por improbidade terminem com julgamento de procedência ou parcial procedência [4]; entre um universo de 18,7 mil condenações nos últimos dez anos [5].
Diante desse cenário, seria natural que o Parlamento tivesse cuidado de aprimorar um instrumento essencial para a recuperação de ativos desviados do Estado, a indisponibilidade de bens. No entanto, embora a medida tenha sido objeto de alterações, estas não parecem ter aperfeiçoado o regime anterior.
Ao contrário, para que a indisponibilidade venha a ser decretada, será necessária a demonstração no caso concreto de perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo. Assim, para que a medida tenha lugar, e tendo em conta que, geralmente, tais pedidos são feitos liminarmente, ou mesmo antes do ajuizamento da ação principal, o Ministério Público terá de comprovar, sumariamente, que o réu está dilapidando ou ocultando seu patrimônio, a fim de frustrar eventual condenação futura.
Note-se que essa alteração vai de encontro a um dos critérios que basearam o anteprojeto original, desenhado por eminente comissão de juristas, presidida pelo ministro Mauro Campbell, do STJ. Naquele estudo, que se tornou o texto original do PL 10.887/2018, se tinha o intuito de adaptar o texto da LIA a decisões consolidadas pelos tribunais. E a desnecessidade de demonstrar risco concreto de dilapidação ou ocultação patrimonial era um desses temas já pacificados pelo Superior Tribunal de Justiça [6].
Desse modo, distanciando-se da sugestão dos especialistas, o texto afinal aprovado pelo Congresso termina por trazer requisito adicional e de difícil cumprimento prático, o que não vai contribuir para incrementar a recuperação de valores desviados do Estado.
Além disso, a norma faz regra geral a necessidade de oitiva do acusado antes da decretação da cautelar, só podendo ser excepcionada quando o contraditório prévio puder comprovadamente frustrar a efetividade da medida. Então, cria-se a seguinte situação: a indisponibilidade só é cabível se houver risco de dilapidação de patrimônio, mas, mesmo assim, antes de decretá-la, o réu deverá ser avisado dessa possibilidade. A incongruência é evidente e há grande risco de que, decretada a indisponibilidade sem contraditório prévio, abra-se flanco para intermináveis discussões, com sério risco à efetividade da cautelar.
Há outros problemas, ainda. Outra vez se distanciando do propósito de adaptar a norma ao entendimento dos tribunais, o texto aprovado circunscreve o objeto da indisponibilidade ao ressarcimento do dano e à devolução do proveito ilícito, excluindo a garantia de eventual multa civil a ser aplicada, tema já pacificado pelo STJ [7].
A redação do artigo 16, §10 ("A indisponibilidade recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, sem incidir sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita") é particularmente preocupante, pois abre a possibilidade de que valores decorrentes de propina, se empregados no desempenho de atividade legal, possam ficar a salvo da indisponibilidade.
O parágrafo 5º, por falta de clareza, traz dificuldade adicional. Ao dizer que, em caso de litisconsórcio passivo, o montante indisponibilizado não poderá superar o montante indicado na petição inicial como dano ao erário ou como enriquecimento ilícito, deixa dúvida do momento em que essa aferição deva ser feita: quando o juiz ordena o bloqueio ou quando este se efetiva. A vingar a primeira opção, ao se deparar com um dano estimado de R$ 100 mil atribuído a dois agentes, o juiz deverá ordenar a indisponibilidade R$ 50 mil de cada acusado. Se um tiver patrimônio e o outro não, o dano fica a descoberto. Melhor seria que a lei tivesse esclarecido que eventual excesso seria liberado após as constrições, pois assim seria preservada a natureza solidária da obrigação de reparar o dano ao erário [8] e o imperativo de ressarcimento integral do dano.
Com relação à indisponibilidade de pessoa jurídica privada, associada ao agente público, a lei cria outro problema desnecessário: a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Ora, se o terceiro dispõe de bem ou valor que decorre do ato de improbidade, está inserido na cadeia causal do ato, como agente privado que induz ou concorre para o ato (artigo 3º), razão bastante para o colocar no polo passivo da ação, sem qualquer necessidade do incidente em questão.
A disposição do parágrafo 11 também causa espécie, pois inverte a ordem de preferência estabelecida no artigo 835 do CPC, estabelecendo, para a ação de improbidade, uma regra especial, em que bens menos líquidos devem ser indisponibilizados antes dos mais líquidos.
Já o parágrafo 13 blinda valores de até 40 salários mínimos: "É vedada a decretação de indisponibilidade da quantia de até 40 (quarenta) salários mínimos depositados em caderneta de poupança, em outras aplicações financeiras ou em conta-corrente". Então, se alguém se enriquecer ilicitamente ou lesar o erário até esse teto, ou mesmo em valor maior, mas o reparta em investimento distintos, poderá invocar a proteção legal para não reparar o dano ou devolver o proveito ilícito. Um cenário nada alvissareiro e de todo contrastante com a moralidade e a necessidade de desfazimento dos efeitos do ilícito.
E o parágrafo seguinte arremata, outra vez contrariando a jurisprudência solidificada [9], para enunciar que é "vedada a decretação de indisponibilidade do bem de família do réu, salvo se comprovado que o imóvel seja fruto de vantagem patrimonial indevida".
O quadro narrado levanta dúvidas sobre a constitucionalidade das mudanças promovidas e enseja conclusão no sentido da inadequação e impertinência das alterações procedidas no regime de indisponibilidade de bens. O histórico problema da baixa recuperação de ativos drenados do erário só tende a se agravar com a "nova" Lei de Improbidade.
[1] Ao tempo da redação deste artigo, o prazo para sanção do PL ainda estava em curso.
[2] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 100.
[3] BRASIL. Câmara dos Deputados – Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei Nº 10.887, de 2018. Relatório Final. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2028078. Acesso em: 24/10/2021.
[4] COSTA, Suzana Henriques da; SILVA, Paulo Eduardo Alves da (Coordenadores). Improbidade Administrativa. Brasília, Ministério da Justiça, Universidade de São Paulo, Série Pensando o Direito, 2010, p. 100.
[5] BRASIL. Câmara dos Deputados – Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer ao Projeto de Lei Nº 10.887, de 2018. Relatório Final. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2028078. Acesso em: 24/10/2021.
[6] Tema Repetitivo 701: É possível a decretação da "indisponibilidade de bens do promovido em Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa, quando ausente (ou não demonstrada) a prática de atos (ou a sua tentativa) que induzam a conclusão de risco de alienação, oneração ou dilapidação patrimonial de bens do acionado, dificultando ou impossibilitando o eventual ressarcimento futuro."
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