Opinião

A ação rescisória fundada em erro e o requisito de admissibilidade de recurso

Autor

  • William Akerman

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro (DPE-RJ) assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) membro do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) professor da Escola Superior de Advocacia Nacional e ex-procurador do estado do Paraná (PGE-PR).

26 de outubro de 2021, 9h14

O tema é novo e ainda demanda análise mais acurada pela jurisprudência. Os casos de rescisória manejada em razão de erro de fato envolvendo requisito de admissibilidade — como, por exemplo, recurso considerado intempestivo quando formalizado dentro do prazo legal — não são comuns.

O mandado de segurança tem sido a via mais comumente utilizada em casos desse jaez [1] [2], nada obstante o teor do verbete nº 267 da súmula do STF [3].

É certo também que o mandado de segurança não pode ser manejado contra decisão transitada em julgado (súmula STF, verbete nº 269 [4]). E daí surge a questão: cabe ação rescisória?

A questão não se colocaria durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973. Isso porque o artigo 485 exigia, como pressuposto, que o pronunciamento rescindendo fosse de mérito.

O Código de Processo Civil de 2015 inovou ao permitir, no artigo 966, §2º, II, ação rescisória em face de ato judicial que, embora sem veicular apreciação do mérito, impeça a admissibilidade de recurso. Vejamos o teor do dispositivo:

"Artigo 966 — A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
[…]
§2º. Nas hipóteses previstas nos incisos do caput, será rescindível a decisão transitada em julgado que, embora não seja de mérito, impeça:
I — nova propositura da demanda; ou
II — admissibilidade do recurso correspondente […]"
.

Se assim o é, ao contrário do que se dava na vigência do Código Buzaid, indaga-se: haveria razão jurídica para não se admitir a rescisória, contra decisão que, embora não tenha apreciado o mérito, não tenha conhecido do recurso em virtude de erro de fato quanto a um dos requisitos de admissibilidade?

Antes de responder à indagação, vale lembrar que o erro de fato, a autorizar o ajuizamento de ação rescisória, implica conter o ato que se busca desconstituir afirmação de circunstância inexistente ou negação de situação efetivamente ocorrida (CPC, art. 966, VIII e § 1º):

"[…]
Artigo 966 — A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

[…]
VIII — for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.

§1º. Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado.

[…]".

Nesse cenário normativo, o erro de fato configurador do vício de rescindibilidade pode, segundo nos parece claro, recair sobre circunstância atinente a requisito de admissibilidade.

O tema estreou na jurisprudência do Supremo na sessão do plenário virtual encerrada em 1º de outubro deste mês. O caso versava agravo interno contra pronunciamento individual mediante o qual o ministro Alexandre de Moraes negou seguimento a ação rescisória voltada a desconstituir, sob o fundamento de erro de fato, decisão na qual o presidente do Supremo negou seguimento a recurso extraordinário por ausência de preparo.

Eis os fundamentos da decisão agravada, na qual tida a ação rescisória como incabível:

"[…]
Segundo dispõe o art. 102, I, o, da Constituição Federal, compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I — processar e julgar, originariamente: […]

j) a revisão criminal e a ação rescisória de seus julgados".

Já o Código de Processo Civil de 2015, em seu artigo 966, ao regulamentar a ação rescisória, vincula seu cabimento à desconstituição de decisão judicial de mérito, transitada em julgado, uma vez presentes as hipóteses taxativamente previstas nos incisos do referido dispositivo processual, entre os quais são destacados nesta ação os seguintes:

"VIII — for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.
[…]
§2º. Nas hipóteses previstas nos incisos do caput, será rescindível a decisão transitada em julgado que, embora não seja de mérito, impeça:

[…]
II — admissibilidade do recurso correspondente"
.

Contudo, na presente hipótese, a viabilidade da ação rescisória, independentemente do fundamento específico invocado pelo autor (fundada em erro de fato), encontra óbice insuperável no fato de que a ação rescisória não pode ser usada como mero sucedâneo recursal. Ora, a ação rescisória é meio autônomo de impugnação da decisão judicial no bojo da qual se forma nova relação jurídico-processual, com base em hipóteses taxativamente definidas em lei, dentre as quais não se encontra a sua utilização como sucedâneo de recurso.

Mais precisamente pela via excepcional da ação rescisória, se pretende a rescisão de decisão proferida no julgamento do RE 1.305.105, relator ministro Luiz Fux, no exercício da presidência, na qual o relator negou seguimento ao recurso extraordinário em razão da ausência de preparo.

Verifico que, na presente hipótese, não assiste razão aos autores, sendo incabível a ação rescisória, pois, diante das peculiaridades do caso, o erro de fato, ainda que se tenha configurado, não se deu sobre os fatos que se relacionam à lide, mas, sim, sobre a apreciação de um dos pressupostos recursais objetivos, qual seja, a ausência de preparo. Em juízo de admissibilidade recursal, decidiu-se, frise-se, monocraticamente, pela negativa de seguimento do recurso. Ainda que tal pronunciamento tenha se embasado em possível erro de fato quanto ao efetivo recolhimento do preparo, o certo é que a parte sucumbente, a despeito do pleno conhecimento do equívoco, não se valeu do recurso apropriado para invocá-lo, no caso, o agravo regimental. Não se desincumbindo desse ônus, deixou que a questão de direito material se estabilizasse, situação que não pode ser alterada pela via da ação rescisória, sob pena de conversão desse excepcional meio autônomo de impugnação em sucedâneo recursal.

Importante realçar a premissa de que a coisa julgada, como garantia constitucional erigida a cláusula pétrea, confere estabilidade às decisões judiciais que dirimem conflitos de interesses, sendo portanto, essencial à segurança jurídica exigida em um Estado democrático de Direito. Daí a razão de se ver com cautela a possibilidade de sua relativização, em parte admitida pelo próprio direito positivo por meio da ação rescisória. É do sistema, portanto, que se confira interpretação restritiva às suas hipóteses de cabimento.

Nesses termos, já decidiu a corte:

"Agravo regimental na ação rescisória. Artigo 485, incisos II, IV, V e IX, do Código de Processo Civil. Ausência de afronta à competência do Superior Tribunal de Justiça e de ofensa à coisa julgada material. Inexistência de violação literal de lei. Ausência de erro de fato na decisão rescindenda. Utilização da via rescisória como sucedâneo de recurso. Impossibilidade. Agravo regimental não provido. (…) 3. O questionamento quanto aos pressupostos de admissibilidade do apelo extremo – no bojo do qual se prolatou a decisão rescindenda — deveria ter sido objetada pelos meios recursais disponíveis na ação originária, não sendo apto a justificar a utilização da via rescisória, cujas hipóteses de cabimento (AR 2.353-AgR, Rela. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJe 11/4/2016).
Diante do exposto, com base no artigo 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, NEGO SEGUIMENTO à presente ação rescisória".

O ministro Nunes Marques inaugurou divergência, provendo o agravo para dar sequência à ação rescisória.

O voto contém interpretação atualizada quanto às novas hipóteses de cabimento, conjugadas com os vícios de rescindibilidade.

Destacou o ministro que o pagamento das custas foi efetivamente realizado e a guia juntada ao processo, embora a decisão tenha se fundado na ausência de preparo, o que revela o erro quanto a fato verificado e considerado não ocorrido.

Ao contrário do que consignado no pronunciamento agravado, aduziu o ministro Nunes Marques que "não configura óbice ao exame da rescisória a circunstância de o erro ter recaído sobre requisito de admissibilidade" [5].

A ilustrada divergência, ao final do bem lançado voto, fez ver também, suplantando argumentos laterais utilizados como óbices ao prosseguimento da ação rescisória, o seguinte:

"Não se está diante de mera pretensão de reapreciação de matéria acobertada pelo manto da coisa julgada, em afronta à garantia concretizadora da segurança jurídica. Trata-se, na verdade, de hipótese na qual admitida, em caráter excepcional e, ao menos, em tese, a rescisão, nos termos do art. 966, VIII e §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil.
Por fim, configura elemento neutro, quanto à (in)admissibilidade da rescisória, não ter sido o pronunciamento rescindendo combatido mediante recurso, na medida em que o art. 966 do diploma processual não erige a pressuposto de rescindibilidade o esgotamento dos recursos cabíveis contra a decisão que a parte pretende ver desconstituída" [6].

Os ministros Rosa Weber e Ricardo Lewandowski acompanharam a divergência, apesar de se tratar de julgamento virtual, sem o amplo debate entre os integrantes do tribunal.

O ministro Lewandowski ressaltou, ainda, ao acompanhar o ministro Nunes Marques, que "independentemente do conceito adotado, o desafio que temos diante de nós implica concretizar o direito à prestação jurisdicional efetiva, que assegure acesso às portas de entrada (correspondentes ao ingresso em juízo) e de saída (correspondentes à efetivação do direito) do sistema de justiça para todos. Esta perspectiva expressa, nas palavras de Carlos Alberto de Salles, 'uma preocupação prioritária do sistema processual com a realização do direito material'" [7].

Apesar dos judiciosos fundamentos da divergência, atualizados sob a óptica do novo Código de Processo Civil — que não é mais tão novo assim —, o Supremo, então, por maioria, desproveu o agravo, confirmando a decisão proferida — ao que nos parece, data vênia — de forma irrefletida, por meio da qual negado seguimento à rescisória.

Contamos que o tema volte à pauta da corte, desta vez em sessão presencial, viabilizando amplo debate. Acreditamos, então, que o resultado será outro.


[1] "MANDADO DE SEGURANÇA – ATO JUDICIAL – EXCEÇÃO – RECURSO – TEMPESTIVIDADE. Pronunciamento mediante o qual assentada a intempestividade de recurso interposto dentro do prazo legal pode ser, considerada a excepcionalidade, impugnado por meio de mandado de segurança" (MS 31139, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 03/10/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 24-10-2019 PUBLIC 25-10-2019).

[2] "Recurso ordinário em mandado de segurança. 2. Mandado de segurança contra ato judicial. Existência de teratologia. Caso excepcional. 3. Recurso especial julgado intempestivo. Tempestividade manifesta. 4. Recurso ordinário provido" (RMS 30550, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 24/06/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-176 DIVULG 10-09-2014 PUBLIC 11-09-2014).

[3] "Sumula STF, verbete nº 267. Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição".

[4] "Súmula STF, verbete nº 268. Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial com trânsito em julgado".

[5] Voto disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6181182. Acesso em 22 de outubro de 2021.

[6] Voto disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6181182. Acesso em 22 de outubro de 2021.

[7] Voto disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6181182. Acesso em 22 de outubro de 2021.

Autores

  • é defensor público do Estado do Rio de Janeiro (DPE/RJ), assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e de ministro membro substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), membro do Grupo de Trabalho sobre Reconhecimento de Pessoas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e professor da Escola Superior de Advocacia Nacional.

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