Segunda Leitura

A polêmica alteração do CNMP através da PEC 5/2021

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

24 de outubro de 2021, 8h00

O Ministério Público brasileiro tornou-se mais forte e independente com os poderes que lhe foram atribuídos na Constituição de 1988. Seus membros gozam de idênticas garantias atribuídas à magistratura, são muito bem remunerados e, ao contrário da maioria absoluta dos países, têm atribuições que vão muito além da área criminal.

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Assim, muito embora formalmente na clássica divisão de Montesquieu a instituição não possa ser considerada um poder de Estado, na prática acaba sendo o equivalente.

Como a todo poder correspondem obrigações, aos membros do Ministério Público impõem-se também regras de conduta. E para que elas pudessem ter um controle social que fosse além de seus órgãos internos (corregedorias), criou-se o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por meio da Emenda Constitucional 5/2004, que introduziu o artigo 130-A na Constituição Federal.

O que a PEC pretende mudar é a composição do CNMP, atribuindo-lhe a pecha de corporativa e condescendente nos seus julgamentos. O jornal O Estado de São Paulo exibiu o quadro das punições a partir de 2005 [1]. Foram 6.438 reclamações, das quais resultaram 308 penas disciplinares aplicadas. Destas, além de sanções menores (e.g., censura), foram impostas 96 suspensões, oito remoções compulsórias, 19 cassações de disponibilidade, 22 demissões/exonerações e 12 cassações de aposentadoria.

Essa é a razão alegada para a pretendida mudança do CNMP. No quando abaixo, vê-se qual é a composição atual e qual é a que a PEC pretende:

Composição atual CF, artigo 130
 O procurador-geral da República, que o preside;
II 
 Quatro membros do Ministério Público da União, assegurada a representação de cada uma de suas carreiras;
III 
 Três membros do Ministério Público dos Estados;
IV 
 Dois juízes, indicados um pelo Supremo Tribunal Federal e outro pelo Superior Tribunal de Justiça;
 Dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI 
 Dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

 

Composição da PEC 5/2021
 O procurador-geral da República, que o presidirá;
II
 Três membros, cada um escolhido dentre as carreiras do Ministério Público Federal, do Ministério do Trabalho e do Ministério Público Militar;
III
 Três membros do Ministério Público dos Estados e do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios;
IV
 Dois ministros ou juízes, indicados um pelo Supremo Tribunal Federal e um pelo Superior Tribunal de Justiça;
V
 Dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI
 Dois cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal;
VII
 Um membro do Ministério Público, oriundo de quaisquer de seus ramos, indicado alternadamente para cada mandato pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, nessa ordem.

Percebe-se, com facilidade, que o Congresso pretende ter maior influência no CNMP, podendo escolher quem será o corregedor e indicar mais três membros, que passariam dos dois atuais para quatro. Nessas quatro vagas, duas são as já previstas na CF (artigo 130, inciso VI), uma seria tirada do MPF e outra do próprio conselho, que é a escolha do corregedor nacional (CF, artigo 130, §3º).

Vejamos as situações separadamente.

O corregedor exerce um papel decisivo, pois é ele quem faz as triagens do que será arquivado de plano e do que será submetido aos membros do conselho, com proposta de abertura de processo administrativo. Um corregedor condescendente transforma corregedorias em um órgão burocrático e inútil. Um corregedor de severidade extrema é um risco, investe contra tudo e contra todos, criando um clima de terror que não dá bons resultados. Óbvio que a virtude está no meio, exercício com coragem serena e eficiência que não precisa ser demonstrada a cada 30 minutos.

Mas, para ser corregedor, é preciso conhecer a instituição. O melhor procurador da República não seria um bom corregedor da Polícia Federal, simplesmente porque não saberia como atua a administração interna, como se faz uma operação ou como se investiga um traficante de entorpecentes com atuação internacional. Um juiz de Direito não teria competência para ser corregedor da Polícia Militar e um deputado não reeleito seria um mau corregedor do Ministério Público.

É por isso que um corregedor nacional do Ministério Público precisa pertencer ao órgão. Não por espírito de corpo, mas simplesmente porque só ele tem percepção de representações que não passam de vinganças por uma posição tomada ou dos pouco claros limites entre a legalidade e o abuso de poder. E também só ele sabe tratar com pessoas com desvios mentais, que endereçam contínuas mensagens aos órgãos de controle, algo que sempre existiu, mas que agora se torna mais comum a cada dia.

No entanto, esse corregedor não deve ser, como hoje, escolhido entre os membros do CNMP, nem deve ser da primeira instância. Se o procurador-geral da República é o presidente do CNMP, nada mais natural que o corregedor seja do Ministério Público dos estados. Na mesma simetria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em que o presidente do STF é o presidente do órgão e um ministro do STJ, o seu corregedor nacional.

A escolha pode ser feita pelo Conselho Nacional do Ministério Público, composto por todos os procuradores-gerais de Justiça. Mas seria essencial que tivesse como requisitos ter o indicado exercido as funções de corregedor ou de promotor auxiliar da corregedoria por prazo não inferior a um ano.

Quanto às mudanças envolvendo os demais componentes, vejamos:

a) O atual inciso IV fala em dois juízes indicados pelo STF e STJ, a PEC sugere dois ministros ou dois juízes. Será que um ministro do STF gostaria de ser um membro do CNPQ, função de status notoriamente inferior ao seu? E os ministros do STJ? E seriam melhores que juízes? Em quê? Atuando em Brasília, na maioria das vezes sem experiência na magistratura de carreira ou no MP, seriam melhores? Se a reforma pretende pessoas mais experientes, claro está que a opção deveria ser desembargadores;

b) A PEC diminui as indicações de membros do MP Federal de quatro para três e inclui um desses como indicação da Câmara ou do Senado. Qual a vantagem? Criar um ator vinculado a um partido político, que decidirá ao sabor de sua ideologia?

Pois bem, essas são as transformações pretendidas, que vêm causando enorme polêmica, colheita de assinaturas, apaixonadas manifestações na mídia.

Curiosamente, elas vêm acompanhadas da inusitada punição com proposta de demissão do procurador da República Diogo Castor de Mattos, por ter colocado uma placa nas proximidades do aeroporto de Curitiba, enaltecendo os feitos da "lava jato", operação à qual ele pertencia. Ora, qualquer terceiranista de Direito percebe o exagero da reprimenda por um ato que, acima de tudo, não passa de um rompante juvenil sem maiores consequências. O princípio da proporcionalidade foi esquecido no julgamento.

Em suma, desse embate entre a Câmara dos Deputados e o Ministério Público, no qual os primeiros rounds revelam a vitória do segundo, tudo a indicar que na próxima semana se dará o desfecho, podem ser tiradas duas lições:

a) Se o CNMP é tão importante, isto se dá pela fraqueza das corregedorias do MP, federal e estaduais. Depois que as eleições pela classe passaram a ser a tônica da escolha dos procuradores-gerais, a política corporativa assumiu maior relevância. Exemplo típico foi a infeliz reivindicação de um PGJ de que membros do MP de certo estado tivessem preferência na vacinação contra a Covid-19. Por outro lado, boa parte dos corregedores passou a agir com os olhos postos na eleição para PGJ. E as apurações disciplinares, por óbvio, passaram a ser mais flexíveis. Agora a fatura está sendo cobrada;

b) Um CNMP politizado significará um passo a mais no enfraquecimento do combate à corrupção, luta esta em que as instituições vêm perdendo espaço a cada dia, tudo se direcionando para que o Brasil seja, como alguns países latino-americanos, dominado por organizações criminosas.

Pois bem, do que aqui foi exposto e do que vem a mídia noticiando, espera-se que o resultado seja o que mais atenda aos interesses do Brasil. E estes, nos termos em que foi redigida a PEC 5/2021, merecem o NÃO da Câmara Federal ou, se for o caso, uma terceira via razoável, que concilie os interesses divergentes.


[1] O Estado de São Paulo – Política, 20 out. 2021, p. A12.

Autores

  • Brave

    é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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